quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Bicentenário da Independência eclipsa os milhões que passam fome

 

Com pompa e circunstância o Brasil celebra o bicentenário da independência. O ponto de honra da celebração é a peregrinação do coração do imperador D. Pedro I (Pedro IV de Portugal), obreiro da independência, da igreja da Lapa (Porto, em Portugal) para Terras de Vera Cruz, onde foi recebido com honras de chefe de Estado visitante. Obviamente, como faz quem está no poder, a peregrinação petrina é usada pela causa do presidente recandidato em campanha eleitoral, com os protestos das oposições, suavizados pela índole nacional e histórica dos festejos.    
Entretanto, a 24 de agosto, Alexandra Prado Coelho, colunista do Público oferece desmancha-prazeres oportuno ao clamar que 33 milhões de brasileiros passam fome num país que “alimenta o mundo”. Além disso, o campo, que produz alimentos, faz vítimas da fome (feita de obesidade) 21,8% de famílias dedicadas à agricultura, pois, como no passado a monocultura elegeu a cana-de-açúcar, hoje elege a cultura da soja e do milho, servindo cada vez menos a área agrícola do país à produção de feijão, de arroz e de mandioca (produtos básicos). É de meditar e revolta.
O Brasil espelha a asserção “metade da humanidade não come e a outra metade não dorme com medo da que não come”, de Josué de Castro, no livro Geografia da Fome (1946), que retratava a fome no Brasil. E a frase ressoa nos números da insegurança alimentar, de junho, revelando que, em 2022, são 33 milhões os que sofrem de fome. Só quatro em cada 10 famílias têm acesso pleno à alimentação, como indica o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN). Enfim, todos têm dentes, mas poucos têm nozes!
Os números assustam pelo valor absoluto e pela velocidade de crescimento: em pouco mais de um ano mais 14 milhões passaram a sofrer de insegurança alimentar grave. E, incluindo os casos de insegurança alimentar leve e moderada, fica 58,7% da população afetada.
A pandemia só agravou o quadro que se vinha desenhando. Em 2020, o primeiro inquérito do tipo revelava que, após sair, em 2014, do Mapa da Fome das Nações Unidas, o país retrocedeu, regressando à situação de 2004. Desta vez, o Brasil está em valores equivalentes aos da década de 1990, com um senão: a fome, associada sobretudo à região nordestina (continua a ser das mais atingidas), democratizou-se. E, se o quadro da cidade é dramático, o do campo, que produz os alimentos, é-o ainda mais, com 21,8% dos lares que se dedicam à agricultura a passarem fome. A população negra é a mais atingida (65% dos seus lares têm algum nível de restrição alimentar contra 46,8% dos de brancos), tal como a dos núcleos familiares chefiados por mulheres (passou de 11,2% para 19,3%) comparados com os de homens (de 7% para 11,9%). E é muito preocupante o facto de a fome ter duplicado nas famílias com crianças menores de 10 anos (de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022). Tudo isto sucede quando o Brasil se posiciona como um dos maiores produtores mundiais de grãos (sobretudo de soja e de milho) e um dos maiores exportadores de commodities agrícolas, sendo o agro-negócio uma das principais bases da sua economia.
A explosão do agro-negócio deu-se na década de 1970, num país que, nos primeiros tempos do domínio colonial, revelou enorme potencial para a produção agrícola e animal, potencial iniciado com a cana-de-açúcar que desdobrou nos ciclos do café, do algodão e da borracha. Foi a Revolução Verde na agricultura que guindou o Brasil a potência do agro-negócio.
De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), de 46 milhões de toneladas de grãos em 1977, passou-se à projeção de 285 milhões nas colheitas de 2021/22 (o Brasil é capaz de duas colheitas no ano). O fenómeno deve-se ao aumento da eficiência pelo uso intensivo de fertilizantes e de pesticidas e ao crescimento da área agrícola plantada, que passou de 37 milhões de hectares para 73 milhões, à custa da destruição de zonas que são reservas de biodiversidade do planeta, como a Amazónia, que só em junho sofreu desmatamento na área de 1120 mil quilómetros quadrados (equivale a 74% do município de São Paulo). Crime ecológico!
A par da Amazónia, o Cerrado, a área mais importante do agro-negócio, com enormes extensões de campos de soja, vem sofrendo destruição sistemática. Segundo a The Economist, “o Cerrado alimenta oito das 12 maiores bacias de rios do Brasil”, mas, como depende da humidade no ar, proveniente da floresta, para o abastecimento de água, a desflorestação agrava as alterações climáticas e destrói as condições de produção de alimentos.
Nos últimos 20 anos, o crescimento chinês moldou a atividade agropecuária brasileira, com realce para o apetite de proteínas vegetais e animais. O setor agropecuário, que representa 40% das suas exportações, destina um terço ao mercado chinês. Assim, não é, preferencialmente, para o Brasil que o agro-negócio produz alimento. E, enquanto nas áreas rurais os campos de soja crescem, nas cidades brasileiras a pobreza é fenómeno cada vez mais visível. Exploração pelo mercado chinês!
Mas há outras confirmações da pobreza que deixam marcas profundas. O site “O Trigo e o Joio” fez reportagens e podcasts sob o tema da fome no Brasil, em que, entre outras informações, liga fome e agro-negócio, concluindo que a produção de grãos na colheita é de mais de uma tonelada por pessoa, o que daria mais de três quilos de comida por dia em grãos, se isto fosse comida de humanos e não ração de animais. Um dos dados referidos é o aumento do número dos que, devido ao preço incomportável dos combustíveis, substituem o gás nas cozinhas pela lenha e pelo carvão e recorrem a líquidos inflamáveis como o etanol. Um perigo em casas de construção precária…
A reportagem “A pobreza pode queimar”, no site Bocado”, rede de jornalismo latino-americana, apresenta Fabiana Moraes e Mateus Moraes Cavalcante a lembrar que o preço do “botijão” de gás subiu “16 vezes” entre abril de 2020 e o mesmo mês de 2021. Segundo os dados disponíveis, “em junho de 2018, 90% das pessoas internadas na ala dos queimados do Hospital da Restauração em Pernambuco”, foi por terem usado líquidos inflamáveis para cozinhar. Com a agravante de as famílias que usam o etanol viverem muitas vezes em barracas de madeira.
O relatório da agência das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), de 2014, é otimista quanto à possibilidade de o mundo erradicar a fome até 2025, destacando o Brasil como exemplo a seguir. Foi, segundo a FAO, resultado de políticas públicas dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, que anunciou, em 2003, no seu discurso de tomada de posse, o objetivo de cada brasileiro ter três refeições por dia. Para tanto, implementou o programa Fome Zero e medidas como a Bolsa Família (substituída pelo Auxílio Brasil), que retiraram da miséria muitas famílias. No início de agosto, no Estado do Piauí, onde lançara o Fome Zero, Lula prometeu acabar com a fome, se for eleito nas presidenciais de outubro. O principal fator de sucesso foi a estratégia de coordenação entre 19 ministérios, “ligando proteção social a políticas para a promoção da igualdade de rendimentos, emprego, produção agrícola familiar e nutrição”.
Muitas destas medidas vêm sendo desmanteladas pelo governo de Jair Bolsonaro, entre as quais o fim, em janeiro de 2019, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que teve papel fundamental a coordenar os programas ligados a estes temas e a combater os agrotóxicos.
A utilização de pesticidas no Brasil é muito elevada. O Atlas da Carne 2021, da fundação Heinrich Böll, frisa que o Brasil está entre os principais consumidores de pesticidas do mundo, sendo 52% aplicados nos campos de soja. Ora, o crescimento da área de soja, seis vezes maior se comparada com 1990, levou os pesticidas a aumentar nove vezes, sobretudo após a introdução, no final da década de 90, da soja geneticamente modificada, mais resistente ao glifosato, herbicida de largo espectro e potencialmente cancerígeno.
O capítulo do Atlas da Carne sobre destruição de floresta para a criação de pastagens estima que 150 a 200 milhões hectares de terra (o total da área agrícola da União Europeia) são usados para a criação de gado. O Brasil é o maior exportador mundial de carne de frango, de porco e de vaca.
Os preços das commodities alimentares e as políticas de incentivo às exportações fazem com que o agro pretenda vender tudo para fora e se especialize na produção de quatro ou cinco produtos, o que induz a corrida à substituição de culturas alimentares para a produção de commodities.
Os produtos da cesta básica da alimentação, como feijão, arroz e mandioca, foram substituídos por soja e milho, passando de 24,7% da área agrícola, em 1988, para 7,7%, em 2018. Mas os brasileiros não enchem os seus pratos de grãos de soja e de milho.  
O óleo de soja no país, o maior produtor do grão, subiu 104%. As carnes subiram 17,9%. E outros alimentos padecem do mesmo: arroz e feijão-fradinho subiram, respetivamente, 76% e 68%; leite longa vida, 26,9%; batata inglesa, 67,2%; frutas, 25,4%; laranja-lima, 53,1%; e tomate, 52,7%”.
A revista Piauí refere outro dado relevante para se perceberem os desequilíbrios do país: “A fome persistente convive com a crescente epidemia de obesidade, e os dois fenómenos atingem a população mais vulnerável”. Dados compilados pela Piauí e pela agência de dados públicos, com base no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), mostram que a proporção de crianças de cinco a 10 anos acima do peso explodiu nos últimos 13 anos. A taxa de crianças com obesidade subiu 70% de 2008 a 2021. Uma em cada cinco crianças atendidas pelo sistema público de saúde, em todos os Estados brasileiros, é obesa. Os peritos não duvidam da ligação entre o empobrecimento e a insegurança alimentar, por um lado, e o aumento da obesidade infantil, pelo outro. Os ultraprocessados, produzidos em larga escala, em vez dos frescos, são “mistura de sal, açúcar, gordura e conservantes”, e têm baixo custo. E, além de obesas, as crianças vulneráveis estão baixas. A má alimentação afeta o crescimento de forma irreversível. A baixa estatura revela fome crónica. E o Fome Zero fizera cair a desnutrição infantil em mais de 70%.
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É legítimo organizar campanhas eleitorais e querer vencer, pois é salutar a prática formal da democracia em diálogo construtivo e em ambiente de festa. Porém, é absurdo e apolítico desprezar a democracia económica e social, hipotecando a vida e o futuro de tantas gerações à fome, à subnutrição e à miséria. São gerações irmanadas pela “democracia” da pobreza e reprimidas de tal modo que os rurais não podem clamar por um pouco de “terra a quem a trabalha” e os citadinos não podem exigir uma circulação e distribuição de bens que dê a todos aquilo de que precisam. Basta de engordar a avidez dos marcados e de continuarem alguns a enriquecer ilicitamente!

2022.08.24 – Louro de Carvalho


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