segunda-feira, 29 de agosto de 2022

A humildade alavanca a concretização do Reino de Deus no mundo

O Evangelho do XXII domingo do Tempo Comum no Ano C (Lc 14,1.7-14) propõe a reflexão sobre alguns valores basilares na resposta ao desafio do Reino: humildade, gratuidade e amor desinteressado. No “caminho de Jerusalém”, Jesus aparece como comensal, em dia de sábado, na casa de um dos chefes dos fariseus. Seria a refeição solene que se tomava por volta do meio-dia, ao voltar da sinagoga, para a qual se convidam os hóspedes e durante a qual persiste a discussão em torno das textos proclamados e escutados no culto sinagogal.
Enquanto Marcos e Mateus apresentam os fariseus como adversários de Jesus, Lucas mostra-os próximos de Jesus, que até O convidam para casa e se sentar à mesa com eles.
Os fariseus, um dos principais grupos religioso-políticos daquela sociedade, dominavam o culto sinagogal e estavam presentes em todos os passos religiosos dos israelitas, com a preocupação de transmitir a todos o amor pela Torah, quer escrita, quer oral. Porém, absolutizando a Lei (Torah), esqueciam as pessoas e ultrapassavam o amor e a misericórdia; considerando-se puros, desprezavam o povo, que não podia, por causa da ignorância e da vida dura que levava, cumprir integralmente os preceitos da Torah. Ciosos da sua capacidade, integridade e superioridade, não eram modelos de humildade, o que explicará a sua luta pelos lugares de honra.
Para o mundo, o banquete é o espaço do encontro fraterno, onde os convivas partilham do alimento e criam laços de comunhão, de proximidade, de familiaridade, de irmandade. Jesus surge, não raro, em banquetes, não por ser “comilão e bêbedo” (cf Mt 11,19), mas porque, sendo sinal de comunhão, de encontro, de familiaridade, o banquete anuncia a realidade do Reino.
No enquadramento do banquete do passo evangélico em causa, Jesus fala do banquete do Reino. A todos os que nele querem participar recomenda a humildade e denuncia a atitude dos que levam a vida na lógica de ambição, de poder, de reconhecimento, de superioridade. Ao mesmo tempo, garante que para este banquete todos são convidados e que a gratuidade e o amor desinteressado caraterizam as relações estabelecidas entre todos os participantes do banquete.
Num primeiro momento, o trecho em reflexão aborda a humildade. A recomendação de Jesus aos convidados que disputavam os lugares de honra não é novidade: já o Antigo Testamento aconselhava a não ocupar os primeiros lugares (cf Pr 25,6-7), mas aqui figura como apresentação do Reino e da lógica do Reino: um espaço de irmandade, fraternidade, comunhão, partilha e serviço, que exclui qualquer atitude de superioridade, orgulho, ambição ou domínio. Por isso, quem quiser entrar neste espaço, tem de fazer-se pequeno, simples, humilde. Esta é, , a lógica que Jesus propôs aos discípulos. Ele próprio, na ceia de despedida e primeira do novo Reino, lavou lhes lavou os pés e os constituiu em comunidade de amor e de serviço – avisando que, na comunidade do Reino, os primeiros serão os servos de todos (cf Jo 13,1-17).
Num segundo momento, emergem a gratuidade e o amor desinteressado, que se unem pelo tema do Reino, como postura fundamental de quem participa no banquete do Reino.
Jesus põe em causa, em nome da lógica do Reino, a prática de convidar para o banquete só os amigos, os irmãos, os parentes, os vizinhos ricos. Nas refeições dos fariseus, não convinha haver alguém de nível menos elevado, pois a comunidade de mesa vinculava os convivas e não convinha estabelecer laços com gente desclassificada e pecadora. Além disso, os fariseus tendiam, como todas as pessoas, de todas as épocas e culturas, a convidar os que podiam retribuir da mesma forma. Assim, tudo desembocava no intercâmbio de favores e não na gratuidade e desinteresse.
E, em nome do Reino, vai mais além. Segundo Ele, é preciso convidar “os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”, que eram considerados pecadores notórios, amaldiçoados por Deus, pelo que estavam proibidos de entrar no Templo para não profanar aquele lugar sagrado. Ora, são esses que devem ser os convidados para o banquete. É óbvio que Jesus já não fala só da refeição em casa do fariseu, mas sobretudo do que esse banquete anuncia e prefigura: o banquete do Reino.
Jesus traça, pois, os contornos do Reino: é semelhante a um banquete onde os convidados estão unidos por laços de familiaridade, irmandade, comunhão, para o qual são convidados todos, sem exceção (inclusive os que a cultura social e religiosa exclui e marginaliza); as relações entre os que aderem ao banquete não são marcadas pelos jogos de interesses, mas pela gratuidade e pelo amor desinteressado; e os participantes devem despir-se de qualquer atitude de superioridade, de orgulho, de ambição, para adotarem uma atitude de humildade, de simplicidade, de serviço.
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Já no texto escolhido para a 1.ª leitura (Sir 3,19-21.30-31, um sábio do início do século II a.C. aponta a humildade como caminho para agradar a Deus e aos homens, ter êxito e ser feliz.
Os selêucidas dominavam a Palestina e o helenismo começara o trabalho pernicioso de minar a cultura e os valores de Israel. Muitos, seduzidos pelo fulgor da cultura helénica, abandonavam os valores dos pais e a aderiam aos valores do invasor. Então Jesus Ben Sira, judeu tradicional, orgulhoso da fé e dos valores israelitas, escreve para defesa do património religioso e cultural do judaísmo, tentando convencer os compatriotas de que Israel possui, na Torah revelada por Deus, a verdadeira sabedoria, muito superior à sabedoria grega. Aos israelitas seduzidos pela cultura grega lembra a herança comum, vincando a grandeza dos seus valores e que a cultura judaica não fica a dever nada à brilhante cultura grega.
O trecho em referência é uma instrução de pai ao filho, cujo tema fundamental é a humildade, que é uma das qualidades fundamentais que o homem deve cultivar, pois garante-lhe estima ante os homens (o que o Evangelho também anota) e graça ante do Senhor. Não se trata de uma forma de estar reservada aos mais pobres e menos cultos, mas de algo que deve ser cultivado por todos, a começar pelos que se têm como importantes. Este sábio não tem dúvida de que é na humildade e na simplicidade que reside o segredo da sabedoria, do êxito, da felicidade.
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A 2.ª leitura (Heb 12,18-19.22-24a) convida os crentes instalados numa fé cómoda e sem grandes exigências, a redescobrir a novidade e a exigência do cristianismo e reitera que o encontro com Deus é experiência de comunhão, proximidade, amor, intimidade, que dá sentido à caminhada do cristão. Por isso, é de exigir uma conduta consequente com a fé cristã: manter e cultivar relações harmoniosas, adequadas, justas, para com os homens e para com Deus.
Neste trecho, o autor convida os destinatários da carta à fidelidade à vocação cristã. Para tanto, faz o paralelo entre a antiga religião e a proposta de salvação que Cristo apresenta. Os crentes são, assim, convidados a redescobrir a novidade do cristianismo e a aderir a ela com entusiasmo.
O autor estabelece profundo contraste entre a experiência de comunhão com Deus que Israel fez no Sinai e a experiência cristã. A experiência do Sinai gerou medo, opressão, mas não relação pessoal, proximidade, amor, comunhão, intimidade, confiança – com Deus, nem com membros do Povo de Deus. O quadro da revelação do Sinai é um quadro terrífico, que não fez muito para aproximar os homens de Deus, num genuíno encontro alicerçado no amor e na confiança. Em contrapartida, na experiência cristã, não há nada de assustador, de terrível, de opressivo. Pelo Batismo, os cristãos aproximaram-se de Deus, numa experiência de proximidade, de comunhão, de intimidade, de amor verdadeiro. Portanto, a experiência cristã é uma experiência festiva, de alegria. Por essa experiência, os cristãos associam-se a Deus, o santo, o juiz do universo, mas também o Deus da bondade e do amor; e foram incorporados em Cristo, o mediador da nova aliança, irmanados com Ele, tornados co-herdeiros da vida eterna. Assim, associam-se aos anjos na festa, no louvor, na ação de graças, na adoração, na contemplação; e associam-se aos outros justos que atingiram a vida plena na comunhão fraterna.
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O termo “humildade”, do Latim humilitas (de humus, terra fértil), designa a virtude que nos dá a consciência das próprias limitações e fraquezas e nos faz agir de acordo com essa consciência. Qualifica as pessoas que não tentam projetar-se sobre os outros, nem mostrar-se superiores a eles. Dá-nos o sentido exato do nosso bom senso ao avaliarmo-nos em relação às outras pessoas. Características como simplicidade, cordialidade, respeito e honestidade, embora ligadas à humildade, são independentes. Portanto, quem as possui não será necessariamente humilde.
Muito confundida com a modéstia, sentimento de velar-se quanto às qualidades intelectuais e morais (em oposição ao exibicionismo vaidoso), a humildade é a virtude de quem é humilde. E quem se vangloria mostra que lhe falta humildade. Talvez se situe nessa posição a confissão de Albert Einstein ao reconhecer que “por detrás da matéria há algo de inexplicável”.
Para o budismo, a humildade é a consciência que se tem do caminho a levar para se libertar do sofrimento. O filósofo Immanuel Kant afirma que a humildade é a virtude central da vida, porque dá a perspetiva apropriada da moral. Em contrapartida, para Friedrich Nietzsche, a humildade é a falsa virtude que dissimula as desilusões que a pessoa esconde dentro de si.
A humildade não significa ter de se rebaixar junto de e para as outras pessoas, mas, como afim da verdade, significa, contra a jactância e contra a hipocrisia, admitir as falhas pessoais, como reconhecer as nossas capacidades com dons que devemos pôr ao serviço da comunidade.
Para lá das diferenças em termos concetuais, as pessoas partilham a mesma visão sobre a humildade como sendo a característica que leva as pessoas a realizar a ação sem proclamar os resultados. Suponhamos, por exemplo, que um homem joga bem futebol e que é humilde, este não deve apresentar-se aos outros na qualidade de melhor jogador nem como sendo “o jogador que sempre marcou a diferença graças ao seu talento”.
As religiões tendem a associar a humildade ao reconhecimento da superioridade divina, que postula o reconhecimento da nossa dependência de Deus, ao mesmo tempo que nos reconhecemos vocacionados para a cooperação com Ele. Todos os seres humanos são iguais aos olhos de Deus, devendo agir e comportar-se como tal. Porém, as religiões, não definem inequivocamente nem a humildade nem o que é ser humilde.
O protótipo da humildade é Jesus de Nazaré, tornado o Senhor, mercê da sua humildade. A sua grande qualidade foi a humildade, como atitude de proximidade, serviço e entrega, pois a Carta aos Filipenses diz que Ele “sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-Se a Si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-8). Tal não O impediu de tomar atitudes clarificadoras em nome da verdade e usar, por vezes, linguagem dura, como O catapultou à categoria de Messias Senhor. “Por isso, Deus O elevou acima de tudo e Lhe concedeu o nome que está acima de todo o nome, para que, ao nome de Jesus, se dobrem os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra e debaixo da terra; e toda a língua proclame: ‘O Senhor é Jesus Cristo’ para glória de Deus Pai” (Fl 2,9-11).  
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Para ilustrar a virtude da humildade e seu efeito positivo, ocorre-me o exemplo do Cónego Mário Augusto de Almeida, de Vila da Ponte (Sernancelhe). Em conversa dizia-me que, quando morresse, havia de ser sepultado na caminheira do cemitério, porque o sacerdote é pontífice, isto é, faz a ponte (Deus-homens) e a ponte é para ser pisada. E eu retorqui dizendo que há limites: a ponte é pisada, mas, no caso, impediria a livre deslocação das pessoas por via do temor reverencial pelo sacerdote; além disso, o excesso de humildade não é bom conselheiro.
Em alternativa, pediu que o sepultassem atrás da porta do cemitério, ao que não me opus. Assim, quando faleceu, a 30 de janeiro de 1986 (ano em que faria 76 anos), abriram-lhe sepultura detrás da porta do cemitério, na parte nova, pois não era possível o sepultamento na campa do irmão, o Cónego José Cardoso de Almeida, que falecera havia dois anos.
Ora, como procederam a nova ampliação do cemitério, a campa do Cónego Mário, sem sair do sítio, ficou naturalmente exposta à visão geral, como verifiquei da última vez que lá estive por ocasião do funeral do Senhor Nelson José Mota Soares, o amigo de há 43 anos, um dos grandes lutadores pelo progresso da sua terra, um homem com o coração na boca, amigo do seus amigos.
2022.08.29 – Louro de Carvalho 

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