quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Até amanhã se Deus quiser…



Podia ser, mas não estou a despedir-me de ninguém, até porque ainda não chegámos à noite. Também se quisesse fazer (o que seria bom) uma reflexão sobre o dia de amanhã, Solenidade de Todos os Santos, a que se segue a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, a 2 de novembro – de que algumas celebrações se antecipam habitualmente para a véspera, visto que o dia 2 não é feriado – com certeza não começaria com uma expressão do tipo “Até amanhã se Deus quiser…”. Vem, antes, isto a propósito de a jornalista Fernanda Câncio ter questionado no Twitter a RTPN nos termos seguintes:
Portugal em Direto, na RTPN, tem uma apresentadora que acha que pode despedir-se com um ‘até segunda-feira se Deus quiser’. Isto é o quê, a TV da paróquia?.
Obviamente referia-se a Dina Aguiar, jornalista que apresenta o noticiário ‘Portugal em Direto’ na RTP1, devido à expressão Até amanhã se Deus quiser…”, que sempre usa para encerrar o programa – ao que Dina Aguiar reagiu de imediato através do Facebook:
God bless the Queen. God Bless America  GOD BLESS PORTUGAL (digo eu). GOD BLESS US. Até amanhã se Deus quiser (há 40 anos que o digo numa empresa, a RTP, onde há liberdade de expressão). ISTO NÃO SÃO EXPRESSÕES COMUNS?”.
E foi, neste aspeto, secundada por uma série de colegas e de espectadores justamente em nome do uso de expressões comuns.
Talvez não seja desajustado insistir nisso. Câncio, se persistir no seu puritanismo laico, não dirá “oxalá” (queira Deus ou queira Alá), não deixará que um comerciante a trate por “freguesa” (filia Ecclesiae – filha da Igreja), promoverá a revisão da Constituição para acabar com as freguesias e criará clubes, por exemplo, e nem dirá “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”, muito menos “Ai, Jesus” (que ´Álvaro Cunhal disse) nem “Valha-me Deus”. Até fugirá de Lisboa e de qualquer local do país ou do mundo, tão semeados que estão de motivos religiosos cristãos ou de outras religiões. Não se lembra certamente do papagaio que, durante a sua deambulação na praça, foi arrebatado para as alturas por um milhafre. E, quando o milhafre in excelsis se preparava para devorar o papagaio, este bradou “Valha-me Deus”. O milhafre, assustado, deixou-o cair. Quando se viu estatelado no chão, mas vivo e inteiro, o papagaio, desabafou: “Porra! F…se. Olha se eu não era catódico!”. Linguagem de papagaios, mas respeito pelas diversas religiões e por quem não tem nenhuma…   
Estudei a antiga religião greco-romana como algo das antigas religiões da Lusitânia e não me considero pagão; estudei a Bíblia hebraica e não sou judeu; li o Alcorão e não sou muçulmano; estudei o fascismo e o comunismo e não me considero fascista nem comunista. Virá Fernanda Câncio acusar-me de pagão, judeu, muçulmano, fascista, comunista?! Aceito que ela não seja pagã, nem judia, nem cristã, nem árabe, mas não posso deixar de recordar que ela, como eu, vive duma tradição judeo-cristã, crescida a par duma cultura pagã e permeabilizada por uma civilização muçulmana e agora com a interação de outras culturas, a menos que ela tenha vindo de Marte ou da Lua!
Repare-se que os nomes dos dias da semana em algumas línguas são tirados da mitologia greco-romana (em inglês, até o domingo – sontag). E, nem por isso, os seus cidadãos professam qualquer obediência a algum deus pagão. Espanhóis e italianos por tudo e por nada se fartam de proferir blasfémias contra Deus (incluindo a Eucaristia) Maria e os Santos. Em Portugal, apesar de muitos palavrões, a blasfémia (asneira contra religião) não se diz porque a Inquisição cortava um pedacinho da língua a quem fosse apanhado a proferir blasfémia. Daí a ameaça de adultos a crianças e adolescentes que dissessem asneiras: “Olha que eu corto-te a língua!”.
Quanto ao “bom dia” e expressões paralelas, devo referir que os estudantes de alemão as colocam em acusativo, o caso do complemento direto. Por isso, muitos locutores de rádio e de TV despedem-se com “Tenha uma boa noite” e outras expressões do género para tarde e para dia. A este propósito, é de recordar que a expressão completa era “Deus nosso Senhor te (nos, vos, lhe, lhes) dê bons dias!”, em alternativa a “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo” (a que se respondia de forma breve “Para sempre seja louvado” e de forma extensa “Para sempre seja louvado no Céu e na Terra e Sua mãe Maria Santíssima). E, quando se passava no caminho e se avistava gente a trabalhar ou se entrava numa propriedade para ajudar, a fórmula de saudação da parte de quem saudava era “Nosso Senhor te (o, os, a, as, vos) ajude”, a que se respondia “Venha com Deus”. Por outro lado, quando de um par de pessoas ou de um conjunto uma pessoa se ia embora, a recomendação de despedida era “Vá com Deus” ou, se a companhia dela estava a ser incómoda, a despedida era “Deus te faça ir com as pernas a bulir e por cada passo três tombos”.
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Estamos num mundo que mantém na linguagem os resquícios da tradição judeo-cristã e da tradição árabe, agora com entradas vocabulares provindas de África, Ásia e Brasil, para já não falarmos dos abundantes castelhanismos, galicismos, italianismos, germanismos e sobretudo anglicismos (muitos americanizados). E que mal vem ao mundo por isso?
A propósito da génese e prática cristã do bom dia e outras expressões semelhantes, conta-se que um sacerdote passava usualmente, pela manhã, a pé duma paróquia para outra sempre pelo mesmo caminho.
Em três dias consecutivos encontrou no mesmo sítio uma rapariga, a Maria, que era surda, a guardar o rebanho. O bom do abade não saudava a mesma pessoa sempre da mesma maneira. Assim, num dos dias saudou Maria com a fórmula “Deus Nosso Senhor te dê bons dias, Maria”, ao que ela respondeu “Deus Nosso Senhor lhe dê os mesmos, senhor Abade”.
No dia seguinte, o pároco saudou entrando à fala com “Tens uns olhos muito lindos, Maria”. E ela, pensando na fórmula do dia anterior, respondeu “Deus Nosso Senhor lhe dê os mesmos, senhor Abade”.
E, no terceiro dia, o padre disse “Ó Maria, tens ali um carneiro com uns cornos tão grandes!”. E ela, pensando na fórmula do primeiro dia, retorquiu “Deus Nosso Senhor lhe dê os mesmos, senhor Abade”. 
Também a propósito do “se Deus quiser”, recordo um episódio narrado pelo cónego José Cardoso de Almeida num dos serões catequéticos no Salão Paroquial de Vila Cova à Coelheira.
Duma ocasião, disse o marido para a mulher à noite:
- Prepara lá a burra com as coisas que temos para vender, que eu amanhã vou à fora.  
E a mulher acrescentou:
- … Se Deus quiser.
E o marido, no seu ar arrogante e desabrido, retorquiu:      
- Amanhã, quer Deus queira, quer não queira, vou à feira com a burra.
No dia seguinte, o homem levantou-se e, montado na burra com os objetos de venda, lá partiu. Entretanto, num ponto do percurso, burra e homem caíram num lamaçal de que não conseguiam sair. Por isso, a um grupo de feirantes mais madrugadores que já regressavam ele bradava:
- Por favor, alguém que tenha a bondade, se Deus quiser, de ir minha casa, se Deus quiser, dizer à minha Zefinha, se Deus quiser, que peça a alguém, se Deus quiser, que venha com ela, se Deus quiser, tragam umas cordas, se Deus quiser, e venham até aqui, se Deus quiser, para nos tirarem daqui, se Deus quiser, a minha burrinha e a mim, se Deus quiser, para eu ir na minha burrinha à feira, se Deus quiser.
Depois, já invocava Deus, provavelmente em vão, para tudo!  
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Como os crentes não devem levar ao extremo as linguagens próprias na relações interpessoais e na comunicação social, não devendo obviamente perder a obrigação de propor as suas ideias e de fazer os seus apelos em coerência com aquilo em que acreditam e que professam, também os laicos e os defensores legítimos do Estado não confessional não podem cair no purismo de expurgar da linguagem comum, mesmo nos departamentos estatais, as palavras que tenham vestígios de religião, mesmo da pagã, sob pena da negação das raízes e da cultura como um todo – até porque, embora o Estado seja confessional, a sociedade não o é nem tem de o ser, como não tem de ser religiosa ou ateia. E o laicismo bem entendido abre, sem privilegiar, espaço a todas as manifestações religiosas ou não religiosas enquanto expressão de cultura e de desígnio pessoal e social, embora prudentemente deva ter em conta o volume de expressão de cada uma.
Ademais, há o dever de tolerância, que leva a aceitar o que pensam, dizem ou escrevem os outros, bem como o estilo de cada um. Calar uma voz ou vetar um estilo e obrigar a um tipo de voz ou de estilo são formas capciosas de ditadura próximas do ideário fascizante, que esperamos tenha sido abolido de vez.
Nem beatismos, nem iconoclastias!
2018.10.31 – Louro de Carvalho    

Guindar o “Professor” a Património Imaterial da Humanidade


A edição de hoje, 30 de outubro, do Jornal de Notícias publica um artigo de opinião de Rui Nunes, professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto sob o título “Professor”, Património Imaterial da Humanidade”, em que sustenta que “o professor deveria ser considerado pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade” advertindo que não está em causa ‘um professor’ individualmente considerado, mas “o magistério e a profissão que ele representa”. E refere que a proposta surgira “num debate sobre educação promovido por professores em Mirandela”, o que, segundo o também investigador do CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, revela que, “no interior do país, frequentemente esquecido e marginalizado, também se pensa”, já que “o pensamento é livre”. E sublinha: “Mas só é livre porque alguém nos educou para a liberdade e para a cidadania”. Obviamente que nos remete para a missão e papel do educador, professor e formador, bem como para o jardim de infância, a escola, a academia.
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Obviamente que se concorda com a pretensão do investigador e professor na pretensão que enuncia. Porém, não era necessário advertir para o facto de não se tratar de relevar um professor individualmente considerado, pois ninguém de bom senso cairia nesse entendimento. Com efeito, não raro se fazem homenagens ou se erigem monumentos (estátuas, bustos, medalhas comemorativas…) a entidades representativas ou simbólicas duma profissão, agremiação ou corporação. Temos, por exemplo, os casos, por antonomásia, de monumentos ao Soldado Desconhecido, ao Bombeiro, ao Ranger, ao Comando, ao Marinheiro, ao Pescador, ao Catequista, aos Combatentes, aos Mártires da Pátria, aos Descobridores, como temos, por exemplo, a rua dos Caldeireiros, o bairro dos Pescadores, a rua dos Ferreiros, a rua dos Sapateiros, a rua dos Cónegos, a avenida das Forças Armadas, a avenida dos Defensores de Chaves, a igreja das Carmelitas, o convento dos Franciscanos, o valado dos Frades, o curral das Freiras… E não nos cabe na cabeça individualizar alguém em casos destes. Já não é o caso de monumentos, bairros, praças, ruas, avenidas em que o homenageado é perfeitamente identificado e individualizado (vg avenida Gago Coutinho, aeroporto Francisco Sá Carneiro, estátua equestre de Dom José I…). E isto acontece mesmo quando a identificação é implícita como, por exemplo, no caso do Mosteiro da Batalha, que é memória da batalha de Aljubarrota, ou o da Praça da Batalha, onde esteve a Capela de Nossa Senhora da Batalha e foi edificado o Palacete da Batalha, que é memória do que, segundo a tradição, ali se passou no século X, uma sangrenta batalha entre os sarracenos de Almançor e os habitantes do Porto, que acabariam por sair derrotados, sendo arrasada a cidade, e lembrando-nos mais para cá as batalhas miguelistas – liberais do século XIX. Não passo em silêncio que os públicos louvores, as condecorações e prémios tanto são atribuíveis a pessoas singulares como a pessoas públicas, bem como a insígnias identificadoras destas. Por exemplo, o Regimento de Infantaria n.º 14 foi, a 25 de abril de 2000, feito Membro-Honorário da Ordem da Liberdade e, a 5 de março de 2012, Membro-Honorário da Ordem Militar de Avis; e que Mário Soares, quando um dos governos de Cavaco Silva urgiu a extinção do Regimento de Comandos, condecorou o estandarte, a 16 de dezembro de 1993, com o título de Membro-Honorário da Ordem Militar de Avis.
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Por mim, que me habituei a tratar os meus habituais destinatários do correio eletrónico por Veneráveis Unidades do Património Imaterial da Humanidade, concordo em absoluto com a proposta veiculada pelo Professor Rui Nunes. Na verdade, se considero que uma pessoa per se tem um valor inestimável e a sua passagem pela vida constitui uma irrepetível e imaterial mónada patrimonial da humanidade, com maioria de razão hei de considerar o professor na sua missão valorosa já não como uma unidade, embora a pessoa de cada um o seja, do Património Imaterial da Humanidade, mas uma pertença coletiva e inestimável desse património imaterial.
Portugal já fez entrar no Património Cultural Imaterial da Humanidade o Fado (2011), o Cante Alentejano (2014) e a Arte Chocalheira (2015) – elementos envolvidos pelos objetivos da UNESCO: levar o público a reconhecer, salvaguardar e revitalizar o património imaterial; avaliar e inventariar a herança cultural intangível em todo o mundo; incentivar os Estados a estabelecer inventários nacionais e tomar medidas legais e administrativas relevantes; e encorajar os portadores do conhecimento a identificar, revitalizar e salvaguardar a sua herança.
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O predito Professor Catedrático sustenta a proposta no pressuposto facto de a educação ser “o mais potente fator de desenvolvimento de um povo e o garante da construção de uma sociedade plural, igualitária e inclusiva”, sendo que “não há igualdade de oportunidades sem educação” – o que deve induzir o carinho e o respeito pelo “professor”. E defende que tal atitude deve ser visível logo em relação ao Ensino Básico e ao Secundário, justificando:  
É ele que molda a personalidade de todas as crianças e jovens e lhes garante, apesar de outras condicionantes sociais e económicas, um futuro aberto às diferentes experiências que a vida pode proporcionar. E potencia a aquisição das competências necessárias a uma plena autorrealização.”.
E, considerando a missão da UNESCO, discorre:
Sendo a UNESCO a entidade responsável pela difusão global da educação, da cultura e da ciência, faz sentido que seja aqui reconhecido o imenso papel que a educação e os educadores prestam no devir coletivo da humanidade. Mais ainda quando estamos a entrar numa era profundamente tecnológica onde é necessário aprofundar as “soft skills” relacionadas com a inteligência emocional.”.
Por outro lado, insistindo na missão tão nobre como espinhosa do professor a sugestão de Rui Nunes frisa a responsabilidade “pela incorporação de outros valores intangíveis tal como a língua e a cultura” e ainda “a aprendizagem da arte ou da história como fatores identitários únicos e exclusivos de qualquer sociedade”. Por isso, o reconhecimento pela UNESCO será, na ótica daquele professor universitário, “um gesto de reconhecimento e gratidão pelo papel único do professor na sociedade e pela sua função de educador e de exemplo, em qualquer país e cultura”. E, no atinente ao caso português, vinca:
Em Portugal, foi a universalização do ensino que colocou o país na rota da modernidade. Se hoje temos excelentes médicos, arquitetos, engenheiros, entre outros profissionais, ou se temos uma cultura de cidadania democrática e de respeito pelos direitos humanos, devemos aos professores o seu empenho e a sua dedicação.”.
Importa acentuar que esta proposta vem a talhe de foice num momento em que, depois de tantos ataques desferidos por sucessivos governos da República aos professores, estimulados ou secundados por sinistros fazedores da opinião pública, contra o seu estatuto profissional e a sua posição na sociedade, na onda da desvalorização dos trabalhadores na administração pública, encontramos os educadores e professores sobrecarregados de trabalho, tantas vezes inútil, numa situação de verdadeira proletarização e risco profissional e muitos em estado de depressão, num contexto de escola degradada, sobretudo a pública a responder, cada vez mais exclusivamente, à população social e economicamente mais desfavorecida. E, neste contexto, por fatores vários, a apreciação que muitos na sociedade portuguesa fazem da profissão docente é negativa, contrariando a visão tradicional sobre a escola e o professor.  
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Por tudo isto, é de considerar oportuna e benéfica a proposta de Rui Nunes, cuja intervenção não se tem confinado ao exercício da medicina nem mesmo à medicina e à docência, como se pode ver a partir de alguns dados curriculares colhidos da Wikipédia e do site da Universidade do Porto (UP), que mostram uma personalidade que faz pontes entre a academia e a sociedade, a academia e a cultura, a academia e a administração pública.
Rui Manuel Lopes Nunes (Porto, 1961), médico, investigador do CINTESIS (Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde) e professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, é o primeiro doutorado em todo o espaço lusófono na área da bioética e o presidente e fundador da APB (Associação Portuguesa de Bioética). Foi membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida), domínio em que se distinguiu nas atividades académicas e de formação, nomeadamente no curso de doutoramento em bioética, parceria entre a Faculdade de Medicina da UP e o Conselho Federal de Medicina Brasileiro. Neste quadro, contribuiu para a formação de mais de duas centenas de especialistas brasileiros nos diferentes domínios da bioética, sendo de salientar a organização de numerosas iniciativas, de que se destacam o Congresso Nacional de Bioética e o Fórum Luso-Brasileiro de Bioética. Publicou mais de 20 livros e cerca de duas centenas de artigos, sendo de realçar as obras “Prioridades na Saúde” (com Guilhermina Rego, edição: Mc Graw-Hill, abril de 2002), “Testamento Vital” (com Helena Pereira de Melo, edição: Edições Almedina, junho de 2011), “Regulação na Saúde” (edição: Vida Económica, dezembro de 2014), “Ensaios em Bioética”  (edição: CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, setembro de 2017) e “GeneÉtica” (edição: Edições Almedina, junho de 2013). Na área cultural, é também autor e/ou coordenador das obras “Cultura & Sociedade” (edição: Edições Almedina, setembro de 2015), “Educação para a Arte” (edição: Pelouro da Educação, Organização e Planeamento [da] Câmara Municipal do Porto, 2015), “O Porto e a Escola” (edição: Câmara Municipal do Porto, janeiro de 2015) e “O Porto e as Igrejas” (edição: Pelouro da Educação da Câmara Municipal do Porto, em parceria com a Diocese).
A pari, mantém intensa atividade social: foi o primeiro presidente da ERSE (Entidade Reguladora da Saúde), membro do Conselho Médico-Legal do Ministério da Justiça e formador do CEJ (Centro de Estudos Judiciários). Foi um dos fundadores do CISP (Centro de Inovação Social do Porto) e coordena o programa “Porto Cidade de Ciência”. Em 2012, fundou o Fórum Democracia e Sociedade, espaço de reflexão política sobre a sociedade contemporânea. E participa num espaço de opinião semanal “Tema Central”, onde aborda as principais questões políticas e sociais da atualidade.
Na área da cultura, destaca-se o seu empenho em causas culturais, tendo sido responsável pela elaboração do Plano Municipal de Cultura do Porto e vindo a contribuir regularmente para a revista “As Artes entre as Letras”. Foi administrador da Fundação Ciência e Desenvolvimento e do Teatro do Campo Alegre, no Porto, membro do júri do Concurso Nacional de Leitura e comissário de diferentes exposições de pintura e fotografia, nacionais e internacionais, de que se destaca a exposição em Paris Ponts d'Espoir da artista plástica Isabel Saraiva.
Ganhou notoriedade pela proposta de legalização do Testamento Vital em Portugal e no Brasil e pela proposta que efetuou à UNESCO de Declaração Universal de Igualdade de Género. Desde 4 de março de 2015, é presidente do Conselho Consultivo da Entidade Reguladora da Saúde, cargo para que foi eleito por larga maioria, através de voto secreto dos seus 19 pares neste órgão. Em junho de 2016, foi nomeado Head of the Research Department of the International Network of the UNESCO Chair in Bioetnics (Haifa). E, em novembro de 2017 foi eleito membro titular da Academia Nacional de Medicina de Portugal, instituição que acolhe os mais elevados representantes da medicina portuguesa.
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É, pois, de inteira justiça o público reconhecimento da missão do professor, como o será todo o esforço coletivo feito e a fazer em ordem à dignificação da sua profissão e à valorização do seu estatuto. Estão em causa o bem das crianças, adolescentes, jovens e adultos, num mundo em que o docente não pode deixar de ser discente, e a educação, que não pode ser balizada por critérios etários, devendo, antes, abranger a vida toda e estender-se a todas as atividades. Com efeito, a educação constitui um bem superior – se não em si mesma – como instrumento e meio de construção harmónica da personalidade e de desenvolvimento pessoal e social, numa sociedade que não deve parar de ser aprendente.
E, se o Fado, o Cante Alentejano ou a Arte Chocalheira dizem respeito apenas a um povo ou a uma região, o Professor e a Educação dizem respeito a todo o mundo. Por outro lado, se se pretende constituir o Professor como integrante do Património Imaterial da Humanidade, tem imperativamente de se considerar cada professor e cada professora como um ser humano colocado numa posição especial na sociedade e de se velar pela sua integridade física, psicológica e moral (para o que o próprio e a própria também devem contribuir). Merece tal proteção enquanto pessoa humana e enquanto promotor/a social, pelo que não pode ficar em silêncio ante a falta de solidariedade dos poderes!  
2018.10.30 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A problemática da Carta aos Hebreus


Encontramos no final das Cartas Paulinas um longo texto sem cabeçalho, sem nome do autor e que, em conformidade com a apresentação, se carateriza como uma carta fora da série e do padrão dos escritos paulinos: a Carta aos Hebreus.  A disposição no quadro do Novo Testamento (NT), colocada junto às Cartas Paulinas é, segundo os estudiosos, motivada pelo apêndice do capítulo 13 de hebreus, com muitas semelhanças com as Cartas Pastorais.
Devido a todas as dúvidas que pairam sobre a autoria desta carta, podemos dizer que ela nem é do apóstolo Paulo nem está dirigida aos Hebreus. Resumindo: se é difícil identificar o autor, podemos dizer, pelo menos, que foi escrita antes da destruição de Jerusalém e do Templo em 70 d.C.,  pelo general romano Tito. Porém, a Carta (ou ‘Epístola’) aos Hebreus é relevante para todos os cristãos, pois nela se faz uma rica exposição acerca da superioridade de Cristo. Assim, quem almeja crescer cada vez mais no conhecimento da Palavra de Deus deve ler este escrito na atitude de quem escuta, medita e assume.
Ora, conforme foi referido, apesar de ser habitualmente conhecido como ‘Carta’ ou ‘Epístola’, este escrito do NT não apresenta um início de caráter epistolar, parecendo mais um sermão (1,1-4), dado o seu tom predominantemente oratório e o autor nunca aparecer como escrevente, mas como falante (2,5; 5,11; 6,9; 8,1; 9,5; 11,32). Por outro lado, só os últimos versículos (13,22-25) é que figuram um final de Carta precedido por uma frase solene (13,20-21), a funcionar como peroração. Considera-se, por isso, que estamos perante um sermão destinado a ser proferido oralmente (1,1-13,21) e dum pequeno bilhete (13,22-25), que lhe foi acrescentado. Trata-se, então, mais de um discurso do que de Carta em sentido próprio.
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Autoria e data (local e tempo) da escrita
Um dos principais debates sobre a Carta aos Hebreus dá-se por conta da identidade do autor. Desde os primeiros séculos da História da Igreja, os teólogos tentam estabelecer quem teria sido o seu autor. Porém, tudo o que pode se afirmar é que o autor é desconhecido. Apesar disto, sabemos algumas coisas importantes sobre ele: foi um homem, pois usou a forma masculina participial dum verbo grego ao escrever sobre si mesmo (vd 11,32 – diêgoúmenon, acustivo a concordar com o pronome pessoal me) cap. 11, versículo 32; era alguém que dominava o grego e era instruído no estilo literário helenístico; era profundo conhecedor do AT (Antigo Testamento), usando a Septuaginta (a versão grega do AT); conhecia pessoalmente os leitores originais (Heb 13,22-23) e tinha cuidado pastoral por eles; foi convertido à fé em Cristo pelo ministério instituído dos apóstolos, o que significa que não teve contacto direto com Jesus (Heb 2,3-4); e também conhecia pessoalmente Timóteo (Heb 13,23). Mas, não obstante a nebulosa sobre a autoria da Carta, não faltaram as tentativas para determinar o seu autor, sendo as principais hipóteses as seguintes:
Paulo. A Igreja Oriental no tempo de Clemente de Alexandria (150-215 d.C.) e Orígenes (185-253 d.C.) atribuía a autoria a Paulo. A partir do século XVI, essa hipótese foi aceite tanto na Igreja Oriental como na Ocidental. Embora pela tradição antiga tal hipótese seja a mais forte, a Carta possui grandes diferenças na composição quando comparada com as Cartas Paulinas. João Calvino, no seu Comentário sobre esta Carta, observou essas diferenças, que abrangem o estilo literário, o método de ensino e, principalmente, o facto de o próprio autor se incluir entre os discípulos do ministério apostólico. Comparando Hebreus 2,3 com Gálatas 1,1-12, parece não haver a mínima possibilidade de o autor ter sido o apóstolo Paulo, embora a Carta possua obviamente algumas semelhanças teológicas com os escritos paulinos. Todavia, possui muitas afinidades com os escritos de João e com os Evangelhos Sinóticos.  
Apolo. Lutero, no período da Reforma, sugeriu que o autor poderia ter sido Apolo, judeu alexandrino que foi instruído por Áquila e Priscila e que Lucas elogiava pela eloquência e discurso persuasivo, pelo zelo apostólico e conhecimento das Sagradas Escrituras.
Barnabé. Na Igreja Ocidental Tertuliano (155-215 d.C.) sugeriu a autoria de Barnabé, um grande companheiro do apóstolo Paulo (At 4,36).
Priscila. Alguns estudiosos modernos propõem Priscila como autor, o que parece ser contraditado por Hebreus 11,32.
Outros. E foram sugeridos outros como autores, entre os quais se destacam: Lucas, Clemente de Roma (95 d.C.), Epafras (referido em Cl 1,7). Silas (referido em At 15,22-40; 1Pe 5,12) e Aristião.
O certo é que é difícil sustentar defesa convincente em prol de qualquer um destes nomes, o que pouco importa, pois a identidade do autor pouco acrescentaria ao entendimento da Carta.
Em suma, as Igrejas do Oriente, regra geral, consideraram a Carta aos Hebreus como paulina, apesar de muitos reconhecerem as diferenças em relação às outras Cartas de Paulo, sobretudo no atinente à forma literária, à linguagem e estilo, à maneira de citar o AT e mesmo quanto à doutrina. A Igreja do Ocidente negou-lhe a autoria paulina até ao séc. IV e pôs, por vezes, em causa a sua condição de escrito inspirado e canónico.
A questão continuou controversa ao longo da história da exegese católica e protestante, mas atualmente é quase unânime a negação da autenticidade paulina. No entanto, admite-se que tenha origem num companheiro ou discípulo de Paulo, pois há vários pontos de convergência entre ela e a doutrina do Apóstolo, tais como: a paixão de Cristo como obediência voluntária, a ineficácia da Lei antiga, a dimensão sacrificial e sacerdotal da redenção e alguns aspetos da cristologia. Trata-se, sem dúvida, dum sermão cristão, cuja origem remonta à Igreja Apostólica, constituindo, por isso, parte integrante do repositório da Palavra de Deus.
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Com o mistério sobre a identidade do autor depara-se alguma dificuldade na determinação do tempo exato da composição. Porém, não pode situar-se em época muito tardia, porquanto Clemente de Roma a cita por volta do ano 95. Por outro lado, algumas caraterísticas do texto permitem apontar para uma data aproximada.
Aparentemente quando foi escrita, o Templo ainda existia e os rituais eram regularmente realizados (Heb 10,1-11). O Templo foi destruído por volta de 70 d.C. na queda de Jerusalém. Assim, o tempo mais provável da composição desta Carta é anterior a esse período. Isto significa que pode ter sido escrita durante o período de perseguição de Nero aos cristãos (64 d.C.). Se tal for verdade, o sofrimento mencionado em Hebreus 10,32-34 pode ter sido causado por Cláudio ao ordenar a expulsão dos judeus de Roma em 49 d.C. (At 18,2). Por outro lado, a relativa afinidade entre a sua teologia e a das Cartas do Cativeiro (cartas aos Efésios, aos Colossenses, a Filémon, aos Filipenses), aponta para um tempo próximo do martírio de Paulo (cerca do ano 67). Como menciona a liturgia do Templo, realidade ainda atual, tudo parece convergir para que os últimos anos antes da destruição da Cidade e do Templo (no ano 70) sejam a data da composição.
Quanto ao lugar da composição, há apenas um dado que pode apontá-lo. Trata-se de 13,24: “Os da Itália saúdam-vos” – expressão que não ajuda (por ser muito vaga e se prestar a várias localizações).
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Sobre os destinatários e a finalidade
Embora o título ‘aos Hebreus’ seja muito antigo (séc. II), não se encontra no texto nenhuma referência aos Hebreus como destinatários e nada indica que o grego em que está escrito seja uma tradução do hebraico. É, portanto, difícil dizer quais os seus destinatários.
Pode facilmente admitir-se que fosse dirigida a judeo-cristãos, então já saudosos do culto judaico que antes praticavam. O título parece justificar-se mais, se tivermos em conta a forma e o conteúdo, pois tem muitos hebraísmos e, pressupondo leitores e ouvintes bem conhecedores do culto e da liturgia judaica, refere como modelos da fé apenas personagens dos AT.
Na verdade, a Carta foi escrita para incentivar os membros da Igreja a manter a fé em Jesus Cristo e a não voltar às práticas antigas (ver Heb 10,32-38). Com efeito, por força da pressão causada por várias provações, os cristãos estavam a sair da Igreja e a adorar à maneira judaica ou à maneira pagã relativamente mais segura nas sinagogas (vd Heb 10,25; 38-39). Os cristãos tinham de saber que a lei de Moisés apontava para Jesus Cristo e Sua Expiação como a verdadeira fonte da salvação.
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Quanto à canonicidade
O Ocidente não negava a canonicidade desta Carta, mas apenas a autoria de Paulo, ao passo que o Oriente punha reservas ao estilo literário, alegando aproximação com Clemente de Alexandria e Orígenes negava a autoria de Paulo. O que era comum nas cartas Paulinas faltava nesta: o endereço, o preâmbulo.
E, embora essa tese tenha sido defendida durante vários séculos, a Carta não foi escrita por Paulo. E entrou na Bíblia com alguma dificuldade. No início, muitas comunidades e listas não a incluíam entre os livros sagrados, o que vale também para outros livros. O Cânon Muratoriano (150 depois de Cristo), por exemplo, não cita Hebreus nem a 1.ª e a 2.ª de Pedro, a de Tiago e a 3.ª de João. A lista mais antiga que temos do atual NT é de Atanásio de Alexandria (367).
Lutero considerou a Carta aos Hebreus como um ‘apócrifo’ (também a de Tiago, a de Judas e o Apocalipse), mas colocou-a mesmo assim na sua bíblia como apêndice.
Porém, apesar de não ser de Paulo, hoje faz parte das nossas bíblias e é considerada como inspirada por Deus. A base desta decisão está na Tradição transmitida pela Igreja primeva, cujos critérios para considerar um texto inspirado eram três: paternidade apostólica (ser o escrito de autoria de um dos apóstolos ou de um dos seus colaboradores); ortodoxia (deverem os textos transmitir as verdades dogmáticas da fé [Unidade e Trindade de Deus, Jesus verdadeiro Deus e verdadeiro homem...]); e uso litúrgico (serem os textos usados nas liturgias das primeiras comunidades cristãs). Ora, a tradição julgou que a Carta aos Hebreus satisfazia esses requisitos.
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Aplicação litúrgica
Os textos da Carta aos Hebreus ganharam larga aplicação na Liturgia, quer na Missa quer na Liturgia das Horas. Recordo algumas ocorrências litúrgicas, meramente a título de exemplo, mas que testemunham a pertinência do seu conteúdo na celebração dos mistérios da fé.   
Assim, são tomados textos seus para 2.ª leitura da Missa na Solenidade do Natal (Missa do Dia) no IV domingo do Advento (Ano C), na Festa da Sagrada Família (facultativa no Ano B), no V domingo da Quaresma (Ano B), na celebração da Paixão do Senhor em Sexta-Feira Santa, na Memória de Nossa Senhora das Dores (15 de setembro) e nos domingos XXVII a XXXIII do Tempo Comum (Ano B). E, na Liturgia das Horas, figura, por exemplo, como 1.ª leitura no Ofício de Leitura da Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, do domingo V e dias da Semana V da Quaresma, no Domingo de Ramos/Paixão do Senhor e dias da Semana Santa; Leitura breve em Vésperas I da Solenidade de Todos os Santos, da Festa da Apresentação do Senhor e do domingo III do Saltério; Leitura breve em Laudes do Natal, do dia 29 de dezembro, do domingo II depois do Natal, em Laudes do Comum dos Pastores da Igreja, das quintas-feiras da Semana V da Quaresma e da Semana Santa e da Festa da Exaltação da Santa Cruz; Leitura breve em Vésperas II do dia de Páscoa (e Vésperas II da Oitava), nas Vésperas de 2.ª, 4.ª e 6.ª feira da Oitava da Páscoa, em Vésperas II do domingo IV do Saltério e dos domingos do tempo Pascal III, IV, V, VI e VII (este onde a Ascensão é na quinta-feira anterior) e nas Vésperas de 2.ª, 4.ª e 6.ª feira das semanas II, III, IV, V e VI do Tempo Pascal; e Leitura breve em vários momentos da Hora Intermédia, por exemplo na Sexta do Comum de Vários Mártires, em Tercia, Sexta e Noa da quinta-feira da Semana V da Quaresma e da Semana Santa e em Noa da quarta-feira da Semana V da Quaresma e da quinta-feira IV do Saltério.  
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Estrutura, conteúdo e teologia
Em vez de ser apenas uma carta, esta é mais como um longo sermão que menciona repetidas vezes as escrituras e práticas de Israel. É o sermão mais longo que se encontra na Escritura sobre porque e como Jesus é superior em tudo. Apesar de não ser fácil encontrar uma única estrutura para ela, a Bíblia dos Capuchinhos propõe a seguinte: prólogo, cinco partes e apêndice.
Prólogo (1,1-4).
I. O Filho de Deus é superior aos anjos (1,5-2,18): prova escriturística (1,5-14); exortação (2,1-4); Cristo, irmão dos homens (2,5-18).
II. Jesus, Sumo Sacerdote fiel e misericordioso (3,1-5,10): fidelidade de Moisés e fidelidade de Jesus (3,1-6); entrada no repouso de Deus pela fé (3,7-4,13); Jesus, Sumo Sacerdote misericordioso (4,14-5,10).
III. Sacerdócio de Jesus Cristo (5,11-10,18): normas de vida cristã (5,11-6,12); promessa e juramento de Deus (6,13-20). 1. Cristo é superior aos sacerdotes da tribo de Levi (7,1-28): Melquisedec (7,1-10); sacerdote segundo a ordem de Melquisedec (7,11-28). 2. Sumo Sacerdote de uma nova aliança (8,1-9,28): o novo santuário e a nova aliança (8,1-13); insuficiência do culto antigo (9,1-10); o sacrifício de Cristo é definitivo (9,11-14); Cristo, o mediador da nova aliança pelo seu sangue (9,15-22); o perdão dos pecados pelo sacrifício de Cristo (9,23-28). 3. Recapitulação: sacrifício de Cristo superior ao de Moisés (10,1-18): ineficácia dos sacrifícios antigos (10,1-10); eficácia do sacrifício de Cristo (10,11-18).
IV. A fé perseverante (10,19-12,29): apelo a evitar a apostasia (10,19-39); a fé exemplar dos antepassados (11,1-40); o exemplo de Jesus (12,1-13); fidelidade à vocação cristã (12,14-29).
Apêndice (13,1-25): últimas recomendações (13,1-19); bênção e saudação final (13,20-25).
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Este escrito estabelece uma relação entre o AT e o NT numa perspetiva cristológica, pois o tema central é o sacerdócio de Cristo e o culto cristão. E a novidade é grande: uma pessoa, Jesus Cristo, Filho de Deus e irmão dos homens, é o Sumo Sacerdote superior a Moisés e comparável à figura misteriosa de Melquisedec. Pela sua morte e glorificação, é o mediador entre Deus e os homens e o seu sacrifício substitui todos os sacrifícios antigos, que não têm capacidade para elevar o homem até Deus. Pela sua morte, Cristo realiza o perdão dos pecados uma vez por todas, estabelece uma aliança nova e eterna com a humanidade e inaugura um novo culto, imagem do culto celeste.
A Carta apresenta várias vezes a Igreja como povo de Deus a caminho (Igreja peregrina) e os cristãos como alguém que partilha o destino de Cristo e é convidado a entrar no seu repouso. Há um itinerário cristão a percorrer, que passa pela conversão, pela aprendizagem da Palavra de Deus, pela fé perseverante e pela vivência da caridade fraterna. O cristão é aquele que se une a Cristo através da sua própria existência, não devendo separar o culto da vida. Através de Cristo, o cristão oferece continuamente a Deus um sacrifício de louvor, no qual inclui toda a sua vida e particularmente o seu serviço aos outros e a sua caridade. Precisa de se manter integrado na comunidade cristã, de escutar a Palavra e de se manter em comunhão com os responsáveis, pois não pode chegar a Deus sem estar unido a Cristo e aos irmãos.
A oferta de Cristo ao Pai “uma vez para sempre” (10,10.14; vd 9,26.28) constitui o grande acontecimento escatológico. Por meio deste gesto histórico cumpriu-se o plano salvífico de Deus, embora continue a caminhada histórica da humanidade até à sua entrada na glória. Quando todos os inimigos forem submetidos a Cristo e for vencida a morte e todas as forças históricas, teremos então a realização do último ato da História salvífica.
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A Carta aos Hebreus ensina que Jesus Cristo é maior do que a lei porque Ele deu a lei. Também ensina que os profetas receberam poder pela fé Nele, que Ele é o grande Sumo Sacerdote no qual os sacrifícios do Velho Testamento foram cumpridos, que Ele é maior do que os anjos e que por meio de Seu Sacrifício Expiatório podemos receber a remissão dos pecados.
A Carta aos Hebreus é um dos poucos lugares na Bíblia que fala de Melquisedeque (vd Heb 7,1-4) e do sacerdócio que leva o seu nome (vd Heb 5,5-6; 6,20; 7,11-17). Esta Carta ensina que o Sacerdócio de Melquisedeque é maior do que o Sacerdócio Aarónico e mostra que a salvação não se encontra na lei de Moisés ou nos ritos praticados pelos sacerdotes da tribo de Levi, mas em Cristo e no ritual do Sacerdócio de Melquisedeque (vd Heb 7,5-28). Em 11,1 – 12,4 a Carta configura um excelente discurso sobre fé e ensina como os crentes podem confiar em Jesus.
A Carta aos Hebreus testifica a superioridade de Jesus Cristo. Ele é maior que os anjos, tem um nome mais excelente e uma posição mais elevada. Os anjos são servos de Deus, mas Jesus Cristo é o Seu Filho. Jesus é maior do que Moisés e o Seu ministério trouxe um novo convénio, superior ao convénio antigo da lei de Moisés. Sendo o grande Sumo Sacerdote do Sacerdócio de Melquisedeque, o sacerdócio de Cristo é maior do que o dos sumos sacerdotes da lei de Moisés.
Embora as escrituras estejam repletas de referências ao Sacrifício Expiatório de Jesus Cristo, Sua Ressurreição e Ascensão ao céu, esta Carta salienta a obra contínua do Redentor na vida de todos os que se aproximam dele com a obediência da fé.
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Em suma
Em Hebreus 1 – 6, Jesus Cristo é a imagem expressa do Pai. Ele é maior do que todos os anjos e que todos os líderes e profetas que O precederam, inclusive Moisés e Elias. Os antigos israelitas que saíram do Egito não entraram no descanso do Senhor porque endureceram o coração contra Jesus Cristo e o Seu servo Moisés. Como Grande Sumo Sacerdote, Jesus é superior a todos os sumos sacerdotes da lei mosaica. Cristo foi aprendeu por meio do Seu sofrimento. Podemos entrar no descanso do Senhor e “prosseguir até a perfeição” (Heb 6,1).
Em Hebreus 7 – 13,  o Sacerdócio de Melquisedeque é assumido em vez do que o Sacerdócio Aarónico. O tabernáculo e as ordenanças mosaicas são um protótipo do ministério de Cristo. Jesus Cristo cumpriu a lei de Moisés com o derramamento de Seu sangue, pelo qual podemos obter salvação e a remissão dos nossos pecados. Pela fé, os profetas e os outros homens e mulheres realizaram prodígios e enveredaram peça via das obras de retidão.

(Cf Bourke, Myles, “Epistola a los Hebreos”, in Brown, Raymond, Comentario Biblico “San Jeronimo”, Tomo IV, Novo Testamento II, Madrid: Ediciones Christiandad, 1972: pgs 319-373; KONINGS, JOHAN et al, A Bíblia, sua história e leitura: uma introdução, coleção religião e saber 2, Vozes, Petrópolis, 1992, pág.195-196; Liturgia das Horas, vol. I (1983), vol. II (1989), vol. III (1983) e vol. IV (1983); Merck, Augustinus, Novum Testamentum graece et latine, Romae sumptibus Pontificci Instituti Biblici, 1964, pgs 710-740; Missal Quotidiano Dominical e Ferial, Paulus Editora, 2010; VV. AA., A Bíblia de Jerusalém, Novo testamento, Paulinas 1973; VV. AA., Hebreus: Guardar a esperança até ao fim, Estudos Bíblicos, 34, Vozes; VV. AA., Nova Bíblia dos Capuchinhos, Difusora Bíblica Lisboa/Fátima, 1998).
2018.10.29 – Louro de Carvalho