quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O vírus é “democrático”


Li a asserção no n.º 756 da revista “Sábado” (25 a 31 de outubro de 2018) a propósito dos “Mitos da vacina da gripe” na rubrica “o vírus” e como resposta à questão se precisa da vacina uma pessoa que nunca fica doente.
E o teor da reposta é de que pode ser infetada pelo vírus da gripe e desenvolver a doença qualquer pessoa, dada a índole democrática do infetante, sendo, por isso, a vacinação a melhor forma de proceder à prevenção – o que dá para inferir que, embora sendo a melhor forma, não quer dizer que seja a única. Pessoas há que, por exemplo, se resguardam, tomam bebidas quentes, fazem a limpeza de garganta e fossas nasais com a solução de sal em água morna, etc.
Talvez, porque outras pessoas encontrarão outros meios de prevenção, a Direção-Geral de Saúde (DGS) estabelece prioridades quanto ao público-alvo. Neste sentido, recomenda a vacina antigripe a pessoas com 65 anos de idade, ou mais, a doentes crónicos, às grávidas (para sua proteção e do bebé) e aos profissionais de saúde que contactam com doentes. Trata-se de uma democracia aleatória e potencialmente universal por parte do vírus, mas um tanto seletiva por parte do referido organismo que deve zelar pela saúde pública. O dinheiro não da para tudo (nem todos os utentes têm a vacina gratuita) e há quem deteste vacinas.
Em todo o caso, a DGS adverte que o contágio não ocorre só no contacto com pessoas infetadas, porque este democrático vírus sobrevive entre 24 a 48 horas em superfícies de acesso comum, como botões de elevador ou de telefone e maçanetas de portas.
Por outro lado, o tempo de sobrevivência aumenta com temperaturas mais baixas. Uma outra advertência incide sobre a possibilidade de uma pessoa contrair gripe mais de uma vez na mesma época, visto que há vários tipos de vírus em circulação, mas sendo pouco provável uma nova infeção pelo mesmo tipo de vírus que provocou a anterior porque se desenvolveu a imunidade no organismo.
Também nos presta o esclarecimento de que a vacina não começa logo a fazer efeito, pois os anticorpos começam a surgir cerca de 15 dias após a inoculação, atingindo o nível máximo às 4 semanas. Porém, tranquiliza-nos referindo que “a vacina não transmite a doença”, pois “só tem fragmentos inertes do vírus”.
Não obstante e por isso, algumas pessoas têm reações locais ou sistémicas, como uma dor no braço, “sinal de que se está a montar uma resposta imunológica”.    
Por fim, a DGS, também segundo a “Sábado”, é necessário, em consonância com a Organização Mundial de Saúde (OMS), tomar a vacina todos os anos, devido à constante mudança antigénica do vírus da gripe, o que leva a rever anualmente a composição da vacina para cobrir os vírus em circulação em cada época gripal.
Enfim, um vírus democrático, mas caprichoso, mutável, migrante e com possibilidades de sobrevivência! É caso para perguntar se circula porque vive ou se vive porque circula.
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Nem só o vírus da gripe é democrático, caprichoso, mutável ou camaleónico, migrante ou com possibilidades de sobreviver. Há muitos outros que saem do campo da medicina e se encontram sob a alçada do juízo ético e dos poderes disciplinares e jurisdicional.
Um desses vírus alastrantes é o que provoca a intriga, a murmuração, a maledicência e o insulto. Sobre a intriga, a murmuração e a maledicência tem-se pronunciado reiteradamente o Papa Francisco, apontando o flagelo em muitas formas de convivência e em todas as formas de carreirismo, incluindo o eclesiástico, movido pela sede de protagonismo custe o que custar, servindo de método a finta ou o espezinhamento de outrem.     
Por seu turno, Pacheco Pereira, no mencionado n.º da “Sábado” sob a habitual epígrafe “A lagartixa e o jacaré”, denuncia “a patética chuva de insultos e de ‘casos’ contra Costa como se isso fosse fazer oposição ao Governo”. É certo que poderia tê-lo dito em relação a outros governos e outras oposições, mas o momento oposicionista é agora naturalmente orientado para António Costa. Porém, como José Pacheco Pereira diz, “este Governo mereceria uma outra oposição, mas esta deveria defrontar as ‘regras europeias’ e as políticas do défice 0% e muitas outras opções derivadas, como seja o combate à pobreza pela assistência e subsidiarização, e não pelo conserto do elevador social que o governo PAF avariou e tentou destruir”. Mas, como no essencial a política do Governo é bastante parecida com a do anterior, a oposição não tem uma agenda consistente, limitando-se grosso modo a condenar o que dantes defendia.
É o vírus do insulto, dos casinhos, do disparate. Com é que é possível declarar o voto contra o OE 2019 só na base de este ser a orgia orçamental com objetivos eleitoralistas ou na base de ser a continuação dos anteriores, mais do mesmo? Como é que se pode dizer que quem decide o sentido de voto no Parlamento não é o grupo parlamentar, mas a direção partidária, quando os eleitores votam deputados e não votam dirigentes partidários? O que deve é haver articulação e não supremacia da liderança partidária…
Mas o vírus democrático e caprichoso invade a política, os negócios, as empresas, as finanças, o desporto, a justiça, as igrejas, etc. É a corrupção secundada por crimes satélites.
A comunicação social, nos últimos dias, tem feito eco do que se passa na Autoridade do Turismo, como o fez no caso da restituição do material alegadamente furtado em Tancos.
Não esquecemos o que se passa com os vencimentos e quejandos percebidos pelos nossos deputados, o que se passa em autarquias, serviços municipais e empresas municipais, Parque Escolar, PPP, Vistos Gold, Operação Fizz, Operação Marquês, Operação Face Oculta, Operação Apito Dourado, Operação Apito Final, Operação Monte Branco, Operação Lex e em muitos outros casos menos mediáticos. E não nos lembrávamos do que se passou na ADSE, o que se passa na Segurança Social ou nalgumas IPSS, nalgumas estruturas policiais, nas negociatas entre profissionais de saúde e farmacêuticas para defraudar o Estado, como não recordávamos o que se passou na Banca – BCP, BPN, BPP, BES/GES, Banif, Montepio Geral e sua dona – em empresas como a PT, a Rio Forte, EDP e mesmo em setores ligados a instituições eclesiásticas localizadas, por exemplo, em Lisboa e Vila Real.
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Como é óbvio, na base destes desmandos está, além do “lodaçal da indiferença” (expressão do Bispo de Lamego), a crise de valores, que se manifesta na prostituição das consciências (é comum os indiciados e acusados declararem que estão de consciência tranquila), no desrespeito pela palavra dada, pelo uso e abuso da mentira e da fraude, pela intolerância, pela competitividade fraudulenta, pela indicação de falsas habilitações literárias e/ou profissionais, pela falsa prestação de contas, pelas engenharias financeiras, pela fuga aos impostos e contribuições, pela falsa promoção da declaração de insolvência ou de falência de empresa, pela organização de peditórios-fantasma (com insulto à verdadeira indigência). A crise de valores reside também na adulteração dos costumes em nome de egoísmos, egotismos, hedonismos, falsas ideologias, facilitismos, e culto do politicamente correto ou do economicamente ortodoxo e do maximalismo financeiro. E a crise de valores reside ainda e sobretudo na supina propensão para a idolatria. Idolatramos figuras da política, do desporto, das Igrejas, a ponto de as considerarmos intocáveis; idolatramos o dinheiro, a ponto de o aferrolhar, de o desviar dos seus legítimos fins, de desprezar a sua função social, de o colocarmos no estrangeiro ou em paraísos fiscais; idolatramos a nossa corporação a ponto de encobrirmos os nossos correligionários ou os defendermos até à última porque eles não são capazes de prevaricar e, se pudermos, os ilibar das devidas penalizações; e idolatramos a nossa própria pessoa a ponto de espezinharmos o próximo para conseguirmos dinheiro, honrarias, prestígio e protagonismo ou a ponto de, porque não nos é lícito ter escravos, manipularmos e escravizarmos os pobres, os débeis, a mulher, a criança, os colaboradores…         
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Ora, contra estes desmandos tem de haver antídotos e remédios.
Parece-me que o antídoto principal está na formação do caráter, que as famílias, as escolas, as igrejas, os partidos devem promover. Ora, o mais das vezes o que se promove, a nível de planos de estudos, é o conhecimento, que já não seria pouco, se fosse a sério e tanto quanto possível objetivo. E o culto dos valores, o apuramento das atitudes e a solidez dos bons comportamentos não passam, tantas vezes, de meros chavões propagandísticos dourados pelas manifestações de “educação para a cidadania” ou “formação cívica” ou, como doravante se passará a dizer, “Cidadania e Desenvolvimento”, porque a formação do caráter requer trabalho, paciência e linguagens comuns por parte dos educadores, professores e formadores.
Um outro antídoto é a vigilância cuja tarefa se deve distribuir pela autovigilância e pela heterovigilância, originando a primeira a autocrítica (exame de consciência – já Séneca o recomendava) e a segunda o acompanhamento, a advertência, o aviso fraterno.
Quanto a remédios, a sociedade organizada dispõe dos seguintes: a censura social, a ação disciplinar e o poder jurisdicional (próprio das organizações associativas e societárias e dos tribunais secundados pelas polícias). Em todos eles, porém, devem dosear-se equilibradamente a justiça e a compreensão e clemência (que num patamar humano superior se chamam piedade ou misericórdia).
A censura social, devendo primar pelo respeito pela pessoa, não se compraz com o erro, muito menos o aplaude. Deve mesmo proscrevê-lo.
A ação disciplinar e o poder jurisdicional devem proceder sempre, atentos a todas as pistas disponíveis ou a disponibilizar, a uma investigação legalmente correta que apure os factos e as responsabilidades de cada um dos possíveis arguidos, garantir os justos meios de defesa (sendo tão censurável a denegação da defesa como o excesso de garantismo) e a clara e fundamentada decisão de arquivamento ou não e, se for o caso, a clara e fundamentada decisão de absolvição ou de condenação, tendo neste caso, ponderado as atenuantes e as agravantes. Devem sempre equilibrar-se a necessária autoridade com a compreensão das vicissitudes da pessoa humana. 
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Em suma, o vício democrático, caprichoso, migrante, camaleónico e de tendência tentacular à laia do polvo mete-se em todo o lado.
2018.10.25 – Louro de Carvalho  

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