domingo, 7 de outubro de 2018

A “qualidade” do amor de Deus pelo homem é a bitola do amor humano


Já não é apenas como a nós mesmos que devemos amar o próximo, mas como o Pai nos ama: “Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados seus filhos; e, de facto, somos filhos de Deus” (1Jo 3,1). Quer dizer: ama-nos tanto que nos fez seus filhos. De outro modo,Deus amou o mundo de tal modo que deu o seu Filho Unigénito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Ou seja, amou-nos entregando-nos o Seu Filho Unigénito para que, morrendo e ressuscitando, nos restitua à vida.
Também Jesus, como imagem perfeita do Pai misericordioso, nos ditou a bitola do amor ao próximo: como Ele nos ensinou e fez – “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei” (Jo 13,14; cf 15,12). Ou, dando a vida pelos amigos como diz Jesus noutra passagem: “Ninguém tem mais amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13). Tudo isto é confirmado pela Carta aos Hebreus, de que este 1.º domingo de outubro nos faz meditar um precioso trecho. 
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Os textos da Liturgia da Palavra do XVII domingo do Tempo Comum no Ano B sugerem como tema o projeto de Deus que homem e mulher formem uma comunidade de amor total. E, assim, esse amor de doação e entrega é reflexo do amor de Deus.
Segundo a 1.ª leitura (Gn 2,18-24), Deus criou o homem e a mulher para se completarem e amarem. Formarão “uma só carne”, o que implica viverem em comunhão total um com o outro, doando-se, partilhando a vida, unidos por um amor que é mais forte que a morte. No Evangelho (Mc 10,2-16), Jesus, confrontado com a Lei que legitima o divórcio, reafirma o projeto de Deus para o casal, em que a separação não está prevista, pois, para Deus só o amor expresso num compromisso indissolúvel respeita o seu projeto primordial. E, na 2.ª leitura (Heb 2,9-11), fica evidenciada a “qualidade” do amor de Deus, que amou de tal forma os homens que enviou ao mundo o seu Filho unigénito “em proveito de todos”. E Jesus, o Filho, solidarizou-se com os homens, partilhou as suas debilidades e, fazendo a vontade do Pai, aceitou morrer na cruz para significar que a vida verdadeira está no amor que se dá até às últimas consequências. E, ligando o texto da Carta aos Hebreus com o teor das outras leituras, pode afirmar-se que o casal cristão deve testemunhar, em doação sem limites e em entrega total, o amor de Deus pela humanidade.
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O relato jahwista da criação, plasmado no texto de Génesis (Gn 2,4b-3,24), é um texto do séc. X a.C., que terá aparecido em Judá no tempo de Salomão. Ensina, com recurso a imagens sugestivas, fortes e coloridas, que na origem do mundo, da vida e do homem está Deus, que simbolicamente faz o papel do jardineiro (a organizar o espaço) e do oleiro para criar o homem a partir do pó da terra. Na verdade, o teólogo jahwista utiliza elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (vg, a formação do homem “do pó da terra” aparece nos mitos de origem mesopotâmica), mas transforma e adapta os símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos, dando-lhes novo enquadramento e interpretação, pondo-os ao serviço da catequese e da fé de Israel – o mundo teve princípio e os astros e animais tidos como deuses são criaturas.
O texto da 1.ª Leitura (Gn 2,18-24) desta dominga situa-nos no “jardim do Éden” criado por Deus no papel simbólico de jardineiro, um espaço idealizado onde Deus pôs o homem, um ambiente de felicidade material com todas as condições de vida humana condigna. Porém, apesar das comodidades objetivas, o homem não tinha tudo para ser feliz. Na perspetiva do hagiógrafo jahwista, o homem não se sentia realizado porque lhe faltava com quem compartilhar a vida e a felicidade, pois o homem não foi criado para a solidão, mas para viver a relação. E Deus, solícito e amoroso resolve-lhe o problema. Primeiro, faz desfilar diante do homem todos os animais para que o homem lhes desse nomes e os chamasse pelos seus nomes. Segundo as ideias vigentes ao tempo, o facto de dar um nome era um ato de domínio e de posse. Por outro lado, o facto de Deus ter trazido os animais para que o homem lhes desse um nome era o reconhecimento, por parte de Deus, da autonomia do homem e a associação do homem à obra criadora e demiúrgica. Mas a autoridade sobre todos os outros seres criados e a associação do homem à obra criadora de Deus não responde ao desejo de felicidade que o homem sente, pelo que não resolve o problema da solidão e incompletude. O homem não encontrou nesse mundo animal “uma auxiliar semelhante a ele”. Então Deus intervém novamente provocando um “sono profundo” no homem. E, atuando como hábil cirurgião, tirou parte do corpo do homem (“sela’“, que se vem traduzindo por “costela”, pode significar “lado” ou “costado”) e com ela fez a mulher.
O “sono profundo” do homem” estriba-se, pela conceção do hagiógrafo jahwista, na convicção de que o ato de criar era segredo de Deus, pelo que o homem não podia testemunhá-lo.
Após ter “construído” a mulher, Jahwéh acompanha-a à presença do homem qual noiva levada à presença do noivo. O homem, desperto do “sono profundo”, acolhe a mulher com um brado de júbilo reconhecendo-a como a companheira que lhe faltava: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne” (v. 23a). E dá-lhe o nome de “mulher” (em hebraico: ishah, feminino de ish) porque foi tirada do homem (em hebraico: ‘ish). A semelhança das duas palavras sugere a proximidade entre o homem e a mulher, a sua igualdade fundamental. E o comentador conclui: “Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne” (v. 24). Na verdade, o amor vem de Deus, que fez o homem e a mulher de uma só matéria e lhes deu um elã de vida igual.
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A 2.ª Leitura (Heb 2,9-11) insere-se na economia da Carta aos Hebreus, um discurso de autor anónimo, talvez produzido nos anos que antecederam a destruição do Templo de Jerusalém (ano 70) e destinado a comunidades cristãs não identificadas (o título “aos hebreus” é posterior e resulta das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios”), mas a viver situações difíceis, em ambiente hostil à fé e expostas a perseguições. O objetivo do hagiógrafo é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a progredir na fé.
De facto, esta Carta, recorrendo à linguagem da teologia judaica, apresenta o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, por quem os homens acedem livremente a Deus e se inserem na comunhão com Deus. O autor aproveita para refletir nas implicações deste facto: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes inserem-se neste Povo sacerdotal, a comunidade cristã, e fazem da vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor.
O texto desta dominga integra a 1.ª parte da Carta (Heb 1,5-2,18) recolhendo e repetindo o que a catequese primitiva ensinava do mistério de Cristo – encarnação, paixão, morte e glorificação pela ressurreição. E o autor afirma e reafirma a superioridade de Jesus em relação a todas as criaturas, mesmo em relação aos anjos. Todavia, Jesus aceitou despojar-se das prerrogativas divinas e fazer-se “por um pouco, inferior aos anjos” para que, pelo dom da vida até à morte, se cumprisse o projeto salvador do Pai para os homens. Depois desta afirmação de princípio, o hagiógrafo epistolar aprofunda a sua reflexão explicando porque teve Jesus de passar pela humilhação da cruz. A questão da paixão e morte de Cristo era uma “conveniência” do projeto de salvação que Deus tinha para o homem. Com efeito, o desígnio de Deus é que o homem cresça até chegar à vida em abundância e plenitude. Então, para levar a humanidade a atingir tal fim, Deus deu-lhe um guia, Jesus Cristo, que devia mostrar, pela vida e exemplo, que se chega à vida cumprindo a vontade do Pai e fazendo da existência um dom de amor aos irmãos. E a cruz é a expressão máxima e total dessa dádiva. Morrendo por amor, ensinou-nos como devemos viver; morrendo por amor e ressuscitando para a vida, libertou-nos do medo paralisante da morte e mostrou-nos que a morte não é o fim para quem vive entregue a Deus e doado ao próximo. Assumindo a nossa natureza humana, fez-Se solidário com os homens, tornou-Se irmão dos homens, carregou sobre si os nossos pecados. Por conseguinte, Cristo (Aquele que santifica) inseriu os homens (os santificados) na órbita de Deus e mostrou-lhes o caminho a seguir para integrarem a família de Deus (v. 11).
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Saindo em definitivo da Galileia, Jesus prossegue o caminho para Jerusalém em demanda do seu destino. O episódio deste Evangelho (Mc 10,2-16) – comum a Marcos e Mateus (Marcos não reconhece à mulher o direito de repudiar o marido – v. 12) e conhecido por Lucas (Lc 16,18) – situa-nos “na região da Judeia, para além do Jordão” (v. 1), território transjordânico da Pereia governado por Herodes Antipas, o que decapitara João Baptista depois de este o criticar por haver trocado a esposa legítima pela mulher do seu irmão. Aí, Jesus volta a confrontar-Se com as multidões e a ensiná-las. Mas os discípulos continuam a rodear Jesus e a beneficiar de instrução especial.
Reentram em cena os fariseus, não para O escutarem, mas para O experimentarem e apanharem em declaração comprometedora. Porém, vão proporcionar-Lhe a oportunidade de Se pronunciar sobre uma questão delicada – matrimónio versus divórcio. Era uma questão “quente” e não consensual nas discussões dos mestres. A Lei permitia o divórcio (“quando homem tomar mulher e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar por ele ter descoberto nela algo de inconveniente, escreverá o libelo de divórcio, entregar-lho-á em mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt 24,1). Como era de ver, não era clara acerca das razões fundamentantes da rejeição da mulher. Duas grandes escolas teológicas ao tempo de Jesus divergiam na interpretação da Lei neste ponto. Enquanto a laxista escola de Hillel ensinava que qualquer motivo servia para o homem despedir a mulher, a rigorista escola de Shammai sustentava que só uma razão muito grave (adultério ou outra má conduta da mulher) dava ao marido o direito de repudiar a esposa. A mulher, por sua vez, era autorizada a obter o divórcio em tribunal apenas no caso de o marido estar afetado pela lepra ou exercer um ofício repugnante. É nesta polémica discussão que os fariseus querem envolver e apanhar Jesus. Uma Sua resposta negativa seria interpretada como uma condenação do matrimónio adulterino de Herodes Antipas com a cunhada Herodíades. A pergunta farisaica parece inserir-se no quadro da tentativa de encontrar razões para eliminar Jesus.
Face à questão posta pelos fariseus (“pode um homem repudiar a sua mulher?” – v. 2), Jesus evoca o teor da Lei (“que vos ordenou Moisés?” – v. 3), o que não significa que Jesus Se identifique com o posicionamento da Lei a propósito desta questão. Efetivamente, a Lei permite o divórcio (“Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se repudiar a mulher” – v. 4). Todavia, essa condescendência não resulta do desígnio de Deus para o homem e para a mulher, mas da “dureza do coração” dos homens, por vezes lamentada no Antigo Testamento. As prescrições de Moisés não espelham o ideal do casal, apenas regulam o compromisso matrimonial, tendo em conta a mediania humana. Ora, em antítese com a permissividade da Lei, Jesus apela para o projeto primordial de Deus para o amor do homem e da mulher. Ancorado no Génesis (Gn 1,27, Gn 2,24 e Gn 7,9), que cita livremente, frisa que, no projeto original de Deus, o homem e a mulher foram criados um para o outro, para se completarem, ajudarem e amarem. Unidos no amor, formarão uma só carne. Ser uma só carne (um semitismo a significar um só ser humano) implica viverem em comunhão total doando-se mutuamente, compartilhando a vida. A separação, não prevista no projeto de Deus, será fracasso do amor, pois Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Aliás, os rabinos citavam estes textos em nome da dignidade do matrimónio e sua conformidade com o desígnio divino, enquanto os sadoquistas os citavam (bem como Dt 17,17) para condenar a poligamia e possivelmente o divórcio.
Na ótica de Jesus, a realidade nova do Reino de Deus implica o abandono da facilidade, da mesquinhez, das meias-tintas e faz urgir a hora de apontar para patamar mais alto. E, no atinente ao matrimónio, o patamar mais alto é o desígnio, que prevê um compromisso de amor estável, duradouro, indissolúvel. Para os discípulos (que, em diversas situações, tiveram dificuldade em passar da lógica do mundo para a lógica de Deus), o discurso de Jesus é difícil de entender e, por isso, quando chegam a casa, pedem-Lhe explicações adicionais. E Ele reitera que a relação entre marido e a mulher se deve enquadrar no desígnio de Deus e não nas facilidades concedidas pela Lei moisaica. Jesus sentenciou perante os discípulos:
Quem se divorciar da sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira (v.11). E, se a mulher se divorciar do seu marido e casar com outro, comete adultério (v. 12).”.
O teor do v. 12 é exclusivo de Marcos (Mateus pressupõe a realidade do divórcio da mulher – quem casar com a divorciada comete adultério – Mt 5,32). Deve ser pelo facto de Marcos escrever para cristãos romanos: porque, em Roma, a iniciativa do divórcio podia também partir da mulher, era pertinente a advertência de que o divórcio segundo o desígnio divino é contraindicado qualquer que seja a autoria da iniciativa.
Em suma, na ótica de Deus, marido e mulher formarão, unidos pelo amor, comunidade de vida estável e indissolúvel, sendo ambos responsáveis pela edificação da comunidade familiar e por evitar o fracasso do amor (v. 11-12).

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A passagem evangélica proposta para a Liturgia termina com uma cena (omissível na versão breve do Evangelho em 3.ª Leitura) em que Jesus acolhe as crianças, as defende e as abençoa (v. 13-16). Faz com Mc 9,36-37.42 “o Evangelho dos pequeninos” a contrastar com as complicações e conflitos dos adultos. Com efeito, são as crianças aqui, pela sua simplicidade e inocência, a antítese do orgulho e arrogância dos fariseus e, pela sua capacidade de observação, o contraponto à dificuldade dos discípulos em perceber e acolher a lógica do Reino. São transparentes, simples, sem prestígio ou privilégios a preservar; entregam-se confiadamente nos braços do pai e/ou da mãe, de quem esperam tudo. São, pela atitude aberta, referência para os discípulos. Quem, ao invés das crianças – símbolo dos simples, humildes e pobres, por quem Deus toma partido – percorre vias tortuosas e calculistas, não renunciando ao orgulho e autossuficiência e desprezando a lógica de Deus (também na questão do casamento e do divórcio), e conduz a vida pautado por valores efémeros, não questionando os próprios raciocínios e preconceitos, não integrará a comunidade do Reino. O Reino é, pois, dos que acolhem, como as crianças, a proposta de Deus com simplicidade e amor, sem se preocuparem com a defesa dos seus interesses e privilégios.
2018.10.07 – Louro de Carvalho

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