Na que supostamente foi a última intervenção pública
da Dra. Joana Marques Vidal antes de terminar o mandato de Procuradora-Geral da
República (PGR), que acontecerá no próximo dia 12,
deixou uma garantia “Podem ficar descansadíssimos: o nosso
sistema constitucional garante a separação de poderes”.
A magistrada falava, no dia 9 de outubro, no
Grémio Literário, sobre “O futuro da
Justiça” numa
conferência promovida, em Lisboa, pelo Clube
Luso-Britânico e pelo Instituto
Benjamin Franklin, em que ressalvou, que o modelo atual – a proposta de um
nome pelo Primeiro-Ministro e a sua nomeação pelo Presidente da República,
ambos legitimados por eleições – confere “uma
dupla legitimidade” à escolha de qualquer Procurador-Geral.
Não obstante, como complemento ao atual modelo, defendeu “uma
audição pública”, na Assembleia da república, da pessoa indicada ou das
pessoas indicadas para o cargo, antes de serem nomeadas. Na sua ótica, poderia
haver, por exemplo, uma audição
pública para que a pessoa indicada partilhasse as suas ideias para o cargo de
PGR, nomeadamente os objetivos e estratégia, proporcionando, assim, “uma
maior transparência e um conhecimento sobre a conceção das pessoas indicadas”.
Questionada
sobre a Operação Marquês e mais concretamente sobre o juiz Ivo Rosa, Joana
Marques Vidal respondeu que todas as decisões são passíveis de recurso (exceto a
decisão de pronuncia para julgamento), abordando
também o facto de o juiz escolhido para a fase de instrução ter considerado que
não são suficientes os quatro meses previstos para a finalizar.
É de
recordar que, em setembro, a ainda Procuradora-Geral da República fez um
balanço dos seus 6 anos no cargo e de elogiou o trabalho dos magistrados
do Ministério Público, frisando:
“Num quadro de dificuldades os magistrados
do Ministério Público mantiveram-se fiéis aos seus princípios e às suas ações.
Conseguimos obter êxitos em circunstâncias que não foram as mais favoráveis”.
Marques
Vidal reconheceu que o combate à criminalidade mais complexa conduz, por vezes,
a “soluções jurídicas” e à utilização de meios tecnológicos que são
“extremamente invasivos” e que devem suscitar “algum sobressalto” a todos os cidadãos.
A título de exemplo, anotou que, em nome da segurança contra os perigos da
criminalidade organizada, todos os passageiros são minuciosamente revistados ou
até despidos, sendo também instados a responder sobre o que transportam nas
bagagens.
Já em
junho passado, entre um balanço do seu mandato e um aviso a quem vier, a
Procuradora-Geral sintetizava: “A marca de água do meu mandato é ter posto a
máquina a funcionar no âmbito do que é a justiça”.
Falando
num jantar-debate organizado pelo grupo Portugal XXI – Ideias para Portugal no século XXI, Marques Vidal
destacou a “marca” que pretendeu deixar no Ministério Público:
“As instituições dependem muito das pessoas que têm à frente, mas também
têm vida por si mesmas. Há um Ministério Púbico que nunca voltará atrás, há
hoje uma cultura e uma maneira de estar que prosseguirá caminho. Há questões
práticas que podem ir ou não no sentido que eu lhes imprimo hoje, mas isso é da
vida das instituições. E quero acreditar que não é fácil perder a minha
herança.”.
Mais recentemente,
logo a 21 de setembro, o dia subsequente ao do anúncio da nomeação da sua
sucessora pela Presidência da República, Joana Marques Vidal garantiu que nunca
lhe tinha sido colocada a hipótese de ser reconduzida. Com efeito, Na
conferência internacional “Combate à
corrupção: perspetivas de futuro”, na qual também esteve presente Marcelo
Rebelo de Sousa, a Procuradora-Geral da República, declarando que a não
recondução era “a normalidade do funcionamento das instituições democráticas”,
desejou “as maiores felicidades” à sua sucessora.
Por sua vez,
no encerramento da dita Conferência, Marcelo agradeceu-lhe “o empenho de uma carreira e, nela, de uma
missão particularmente relevante nos últimos anos” como Procuradora-Geral
da República, bem como a sua “humildade
no serviço do bem comum, também no sentido coletivo do desempenho, na
preocupação com a ‘res publica’, na diferença, sempre explicitada, entre as
instituições que ficam e as pessoas que passam”.
Desta vez, Marques
Vidal, falando do futuro da Justiça em Portugal, anteviu que os tribunais portugueses
irão lidar de forma crescente com questões de natureza ético-deontológica,
relacionadas com os avanços tecnológicos e com a criação de vida. Na sua
opinião, assuntos como as “barrigas de aluguer” e as duplas/triplas
paternidades, que são hoje temas muito discutidos, são desafios com que os
tribunais portugueses vão ter de lidar num futuro próximo.
***
A nova
procuradora-geral da República, recorde-se, é Lucília Gago, que vai tomar posse
a 12 de outubro, no Palácio de Belém, às 15 horas (vd site da PGR).
Ora, quanto
à ação da sua sucessora, Joana
Marques Vidal assegurou, como foi dito, que se pode ficar “descansadíssimo”,
pois, ao contrário do que, por vezes, é referido, o Procurador-Geral não tem
poder para decidir iniciar ou não determinado processo judicial, sustentando,
assim, que “essa ideia está arredada do funcionamento do nosso sistema”. Na
verdade, o nosso sistema constitucional garante a separação de poderes”, como
observou. Disse-o em resposta a uma pergunta da audiência – uma sala esgotada –
sobre se os cidadãos podem estar descansados em relação à independência do
Ministério Público (MP),
sublinhando que “essa é a realidade”.
Porém,
apesar da confiança no modelo português que, na sua opinião, garante a
separação de poderes, a Procuradora-Geral não deixou de, na sua intervenção,
deixar um alerta para o que tem acontecido noutros países europeus, como a
Hungria ou a Polónia, sublinhando:
“Não podemos baixar os braços ou diminuir a nossa capacidade de atenção
a qualquer tentativa de pôr em causa a independência dos tribunais num Estado
de Direito”.
Considerando
parecer a realidade denunciada “uma
realidade muito distante de Portugal” – e não vendo, neste momento, “nada
que ponha em causa a independência dos nossos tribunais” –, assinalou que “não
podemos deixar de estar sempre atentos”, pois a “autonomia do Ministério
Público face aos demais poderes do Estado é muito importante para a
independência dos tribunais” (Distinga-se autonomia, do MP, e
independência, dos tribunais) E confidenciou:
“Por vezes sinto que, quando se fala em
autonomia do MP, há pouca reflexão sobre as consequências para o Estado de
Direito da possibilidade de essa autonomia não existir”.
Marques
Vidal sublinhou também que, além desta autonomia do MP em relação a outros poderes
do Estado, existe também uma “autonomia interna”. Com efeito, apesar de o MP
ser uma estrutura hierarquizada, a “hierarquia
não pode dar ordens ou orientações aos magistrados titulares dos inquéritos
sobre a apreciação que estes estão a fazer dos factos em investigação”.
***
Como foi
referido, o convite à PGR para a susodita conferência veio do Clube
Luso-Britânico e do Instituto Benjamim Franklin, presidido pelo
economista António Rebelo de Sousa, irmão do Presidente da República
Marcelo Rebelo de Sousa.
Porém,
para dissipar quaisquer dúvidas de oportunidade, é de anotar que a organização
do evento, a três dias do final do mandato, foi planeada antes de ser conhecida
a decisão sobre a substituição ou não de Joana Marques Vidal.
Fonte
oficial do gabinete de Joana Marques Vidal confirmou ao Diário de Notícias que esta conferência seria última intervenção
pública da Procuradora-Geral, antes de deixar o cargo no próximo dia 12.
No
entanto, de acordo com a agenda da PGR, no último dia em funções, dia 11, Joana
Marques Vidal terá uma tarde de música. Trata-se de um evento designado por “Tardes Encantadas”, a realizar no
Palácio de Palmela, protagonizado pelo coro da PGR, tendo como convidado
especial o cantor Vitorino Salomé e estando previsto que sejam cantados vários
temas de Zeca Afonso, em conformidade com a seguinte programação (vd
site da PGR):
TARDES ENCANTADAS – III CICLO DE CONCERTOS NO PALÁCIO
PALMELA (PGR): VITORINO & CORO DA PGR: Concerto pelo Coro da
Procuradoria-Geral da República com a presença do convidado Vitorino
Salomé, no dia 11 de outubro, às 17 horas, no Palácio de Palmela. Programa
de sala: Os índios da meia praia –
Zeca Afonso; Canção de embalar – Zeca
Afonso; Era um redondo vocábulo –
Zeca Afonso; O caçador da Adiça – Rio
Grande; Menina, estás à janela –
Vitorino; e Queda do império –
Vitorino.
***
Depois
deste arrazoado, ocorre-me deixar algumas questões que enuncio a seguir.
Assim,
embora perceba o desconforto perante as prematuras considerações da Ministra da
Justiça sobre a longevidade e não renovabilidade do mandato, é de questionar a
PGR sobre o motivo por que, se a não recondução é “a normalidade do funcionamento das instituições democráticas”, não
o declarou logo ao sentir a “conspiração” de tantas vozes políticas de
determinados quadrantes políticos a tentar encurralar o Governo e a Presidência
na hipótese da recondução, deixando passar para a opinião pública a ideia de
que estava a gostar da movimentação em curso ou a de que estava a servir de
bandeira ou instrumento de determinadas forças políticas. E, quando ouviu os
profetas da desgraça a lançar a suspeita sobre o Governo de beliscar a
autonomia do MP e a querer que tudo voltasse ao “status quo” antigo, porque não esclareceu a opinião pública sobre
as reais atribuições da PGR?
Concordo
que o mandato que ora termina foi recheado de casos mediáticos complexos.
Porém, isso não constitui uma herança para a posteridade, a não ser, além da
coordenação da atividade e gestão pública do MP, no incentivo moral, apoio e
estímulo à prossecução dos objetivos dos titulares do MP e da investigação.
Ademais,
apesar de erros que sempre ocorrem nestas matérias, admite-se que os atuais diretores
dos DIAP dos quatro distritos judiciais (Coimbra, Évora, Lisboa
e Porto) e do DCIAP
– dos quais depende a decisão de início e conclusão dos processos de
investigação – não terão cometido erros que alguns dos anteriores. Recordo, por
exemplo, que o caso Freeport foi encerrado por decisão do então diretor do
DCIAP apesar de os procuradores terem ainda mais de 8 dezenas de questões a
colocar a Sócrates. E este caso, bem como o da destruição das escutas ao
Primeiro-Ministro, decidida pelo Presidente do STJ, passou à opinião pública
como um labéu sobre o desajeitado Pinto Monteiro. De resto, já dantes houve casos
bem mediáticos e alguns ora em evidência foram iniciados antes do mandato da
ainda PGR.
***
E, para
esclarecimento, se enunciam as competências do Procurador-Geral da República,
de acordo com o art.º 220.º da CRP e o art.º 10.º do EMP (Estatuto
do Ministério Público),
aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro,
e cuja última redação foi introduzida pela Lei
n.º 114/2017, de 29 de dezembro.
1. Compete ao Procurador-Geral da República:
a)
Presidir à Procuradoria-Geral da República;
b)
Representar o Ministério Público nos tribunais referidos na alínea a) do n.º 1
do artigo 4.º (Supremo
Tribunal de Justiça, Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo,
Supremo Tribunal Militar e Tribunal de Contas);
c) Requerer ao Tribunal Constitucional a declaração, com força
obrigatória geral, da inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer
norma.
2. Como presidente da Procuradoria-Geral da República, compete ao
Procurador-Geral da República:
a) Promover a defesa da legalidade democrática;
b) Dirigir,
coordenar e fiscalizar a atividade do Ministério Público e emitir as diretivas,
ordens e instruções a que deve obedecer a atuação dos respetivos
magistrados;
c) Convocar
o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República e presidir às respetivas reuniões;
d) Informar
o Ministro da Justiça da necessidade de medidas legislativas tendentes a
conferir exequibilidade aos preceitos constitucionais;
e) Fiscalizar
superiormente a atividade processual dos órgãos de polícia criminal;
f)
Inspecionar
ou mandar inspecionar os serviços do Ministério Público e ordenar a instauração
de inquérito, sindicâncias e processos criminais ou disciplinares aos seus
magistrados;
g) Propor ao Ministro da Justiça providências legislativas com vista à
eficiência do Ministério Público e ao aperfeiçoamento das instituições
judiciárias ou a pôr termo a decisões divergentes dos tribunais ou dos órgãos
da Administração Pública;
h) Intervir, pessoalmente ou por substituição, nos contratos
em que o Estado seja outorgante, quando a lei o exigir;
i) Superintender nos serviços de inspeção do Ministério Público;
j) Dar posse ao Vice-Procurador-Geral da República, aos
procuradores-gerais-adjuntos e aos inspetores do Ministério Público;
l)
Exercer sobre os funcionários dos serviços de
apoio técnico e administrativo da Procuradoria-Geral da República e dos
serviços que funcionam na dependência desta a competência que pertence aos
ministros, salvo quanto à nomeação;
m)
Exercer as demais funções que lhe sejam
atribuídas por lei.
3. As diretivas a que se refere a alínea b) do
número anterior que interpretem disposições legais são publicadas na 2.ª série
do Diário da República.
4. O Procurador-Geral da República é apoiado no
exercício das suas funções por um gabinete.
5. A estrutura e composição do gabinete do
Procurador-Geral da República são definidas em diploma próprio.
***
Enfim, será
que foi com Marques Vidal que se pôs a funcionar a máquina “no âmbito do que é
a justiça”? Não lhe bastava o mérito de a ter oleado? Entre 1986 e 2012 o MP
andava a deriva? E como se explica que, durante tantos meses, o caso da
recondução ou não da ainda PGR fosse, a par do furto/roubo (?) do material de Tancos, um dos
problemas mais candentes da nossa República? Ah, ainda não tinham surgido os
problemas da encenada restituição do material de Tancos e do caso de Cristiano
Ronaldo em Las Vegas!
2018.10.10 –
Louro de Carvalho
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