quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Podemos ficar descansadíssimos: a CRP garante a separação de poderes


Na que supostamente foi a última intervenção pública da Dra. Joana Marques Vidal antes de terminar o mandato de Procuradora-Geral da República (PGR), que acontecerá no próximo dia 12, deixou uma garantia Podem ficar descansadíssimos: o nosso sistema constitucional garante a separação de poderes.
A magistrada falava, no dia 9 de outubro, no Grémio Literário, sobre “O futuro da Justiça numa conferência promovida, em Lisboa, pelo Clube Luso-Britânico e pelo Instituto Benjamin Franklin, em que ressalvou, que o modelo atual – a proposta de um nome pelo Primeiro-Ministro e a sua nomeação pelo Presidente da República, ambos legitimados por eleições – confere “uma dupla legitimidade” à escolha de qualquer Procurador-Geral.
Não obstante, como complemento ao atual modelo, defendeu “uma audição pública”, na Assembleia da república, da pessoa indicada ou das pessoas indicadas para o cargo, antes de serem nomeadas. Na sua ótica, poderia haver, por exemplo, uma audição pública para que a pessoa indicada partilhasse as suas ideias para o cargo de PGR, nomeadamente os objetivos e estratégia, proporcionando, assim, “uma maior transparência e um conhecimento sobre a conceção das pessoas indicadas”.
Questionada sobre a Operação Marquês e mais concretamente sobre o juiz Ivo Rosa, Joana Marques Vidal respondeu que todas as decisões são passíveis de recurso (exceto a decisão de pronuncia para julgamento), abordando também o facto de o juiz escolhido para a fase de instrução ter considerado que não são suficientes os quatro meses previstos para a finalizar.
É de recordar que, em setembro, a ainda Procuradora-Geral da República fez um balanço dos seus 6 anos no cargo e de elogiou o trabalho dos magistrados do Ministério Público, frisando:
Num quadro de dificuldades os magistrados do Ministério Público mantiveram-se fiéis aos seus princípios e às suas ações. Conseguimos obter êxitos em circunstâncias que não foram as mais favoráveis”.
Marques Vidal reconheceu que o combate à criminalidade mais complexa conduz, por vezes, a “soluções jurídicas” e à utilização de meios tecnológicos que são “extremamente invasivos” e que devem suscitar “algum sobressalto” a todos os cidadãos. A título de exemplo, anotou que, em nome da segurança contra os perigos da criminalidade organizada, todos os passageiros são minuciosamente revistados ou até despidos, sendo também instados a responder sobre o que transportam nas bagagens.
Já em junho passado, entre um balanço do seu mandato e um aviso a quem vier, a Procuradora-Geral sintetizava: “A marca de água do meu mandato é ter posto a máquina a funcionar no âmbito do que é a justiça”.
Falando num jantar-debate organizado pelo grupo Portugal XXI – Ideias para Portugal no século XXI, Marques Vidal destacou a “marca” que pretendeu deixar no Ministério Público:
As instituições dependem muito das pessoas que têm à frente, mas também têm vida por si mesmas. Há um Ministério Púbico que nunca voltará atrás, há hoje uma cultura e uma maneira de estar que prosseguirá caminho. Há questões práticas que podem ir ou não no sentido que eu lhes imprimo hoje, mas isso é da vida das instituições. E quero acreditar que não é fácil perder a minha herança.”.
Mais recentemente, logo a 21 de setembro, o dia subsequente ao do anúncio da nomeação da sua sucessora pela Presidência da República, Joana Marques Vidal garantiu que nunca lhe tinha sido colocada a hipótese de ser reconduzida. Com efeito, Na conferência internacional “Combate à corrupção: perspetivas de futuro”, na qual também esteve presente Marcelo Rebelo de Sousa, a Procuradora-Geral da República, declarando que a não recondução era “a normalidade do funcionamento das instituições democráticas”, desejou “as maiores felicidades” à sua sucessora.
Por sua vez, no encerramento da dita Conferência, Marcelo agradeceu-lhe “o empenho de uma carreira e, nela, de uma missão particularmente relevante nos últimos anos” como Procuradora-Geral da República, bem como a sua “humildade no serviço do bem comum, também no sentido coletivo do desempenho, na preocupação com a ‘res publica’, na diferença, sempre explicitada, entre as instituições que ficam e as pessoas que passam”.
Desta vez, Marques Vidal, falando do futuro da Justiça em Portugal, anteviu que os tribunais portugueses irão lidar de forma crescente com questões de natureza ético-deontológica, relacionadas com os avanços tecnológicos e com a criação de vida. Na sua opinião, assuntos como as “barrigas de aluguer” e as duplas/triplas paternidades, que são hoje temas muito discutidos, são desafios com que os tribunais portugueses vão ter de lidar num futuro próximo.
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A nova procuradora-geral da República, recorde-se, é Lucília Gago, que vai tomar posse a 12 de outubro, no Palácio de Belém, às 15 horas (vd site da PGR).
Ora, quanto à ação da sua sucessora, Joana Marques Vidal assegurou, como foi dito, que se pode ficar “descansadíssimo”, pois, ao contrário do que, por vezes, é referido, o Procurador-Geral não tem poder para decidir iniciar ou não determinado processo judicial, sustentando, assim, que “essa ideia está arredada do funcionamento do nosso sistema”. Na verdade, o nosso sistema constitucional garante a separação de poderes”, como observou. Disse-o em resposta a uma pergunta da audiência – uma sala esgotada – sobre se os cidadãos podem estar descansados em relação à independência do Ministério Público (MP), sublinhando que “essa é a realidade”.
Porém, apesar da confiança no modelo português que, na sua opinião, garante a separação de poderes, a Procuradora-Geral não deixou de, na sua intervenção, deixar um alerta para o que tem acontecido noutros países europeus, como a Hungria ou a Polónia, sublinhando:
Não podemos baixar os braços ou diminuir a nossa capacidade de atenção a qualquer tentativa de pôr em causa a independência dos tribunais num Estado de Direito”.
Considerando parecer a realidade denunciada “uma realidade muito distante de Portugal” – e não vendo, neste momento, “nada que ponha em causa a independência dos nossos tribunais” –, assinalou que “não podemos deixar de estar sempre atentos”, pois a “autonomia do Ministério Público face aos demais poderes do Estado é muito importante para a independência dos tribunais” (Distinga-se autonomia, do MP, e independência, dos tribunais) E confidenciou:
Por vezes sinto que, quando se fala em autonomia do MP, há pouca reflexão sobre as consequências para o Estado de Direito da possibilidade de essa autonomia não existir”.
Marques Vidal sublinhou também que, além desta autonomia do MP em relação a outros poderes do Estado, existe também uma “autonomia interna”. Com efeito, apesar de o MP ser uma estrutura hierarquizada, a “hierarquia não pode dar ordens ou orientações aos magistrados titulares dos inquéritos sobre a apreciação que estes estão a fazer dos factos em investigação”.
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Como foi referido, o convite à PGR para a susodita conferência veio do Clube Luso-Britânico e do Instituto Benjamim Franklin, presidido pelo economista António Rebelo de Sousa, irmão do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
Porém, para dissipar quaisquer dúvidas de oportunidade, é de anotar que a organização do evento, a três dias do final do mandato, foi planeada antes de ser conhecida a decisão sobre a substituição ou não de Joana Marques Vidal.
Fonte oficial do gabinete de Joana Marques Vidal confirmou ao Diário de Notícias que esta conferência seria última intervenção pública da Procuradora-Geral, antes de deixar o cargo no próximo dia 12.
No entanto, de acordo com a agenda da PGR, no último dia em funções, dia 11, Joana Marques Vidal terá uma tarde de música. Trata-se de um evento designado por “Tardes Encantadas”, a realizar no Palácio de Palmela, protagonizado pelo coro da PGR, tendo como convidado especial o cantor Vitorino Salomé e estando previsto que sejam cantados vários temas de Zeca Afonso, em conformidade com a seguinte programação (vd site da PGR):
TARDES ENCANTADAS – III CICLO DE CONCERTOS NO PALÁCIO PALMELA (PGR): VITORINO & CORO DA PGR: Concerto pelo Coro da Procuradoria-Geral da República com a presença do convidado Vitorino Salomé, no dia 11 de outubro, às 17 horas, no Palácio de Palmela. Programa de sala: Os índios da meia praia – Zeca Afonso; Canção de embalar – Zeca Afonso; Era um redondo vocábulo – Zeca Afonso; O caçador da Adiça – Rio Grande; Menina, estás à janela – Vitorino; e Queda do império – Vitorino.
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Depois deste arrazoado, ocorre-me deixar algumas questões que enuncio a seguir.
Assim, embora perceba o desconforto perante as prematuras considerações da Ministra da Justiça sobre a longevidade e não renovabilidade do mandato, é de questionar a PGR sobre o motivo por que, se a não recondução é “a normalidade do funcionamento das instituições democráticas”, não o declarou logo ao sentir a “conspiração” de tantas vozes políticas de determinados quadrantes políticos a tentar encurralar o Governo e a Presidência na hipótese da recondução, deixando passar para a opinião pública a ideia de que estava a gostar da movimentação em curso ou a de que estava a servir de bandeira ou instrumento de determinadas forças políticas. E, quando ouviu os profetas da desgraça a lançar a suspeita sobre o Governo de beliscar a autonomia do MP e a querer que tudo voltasse ao “status quo” antigo, porque não esclareceu a opinião pública sobre as reais atribuições da PGR?
Concordo que o mandato que ora termina foi recheado de casos mediáticos complexos. Porém, isso não constitui uma herança para a posteridade, a não ser, além da coordenação da atividade e gestão pública do MP, no incentivo moral, apoio e estímulo à prossecução dos objetivos dos titulares do MP e da investigação.
Ademais, apesar de erros que sempre ocorrem nestas matérias, admite-se que os atuais diretores dos DIAP dos quatro distritos judiciais (Coimbra, Évora, Lisboa e Porto) e do DCIAP – dos quais depende a decisão de início e conclusão dos processos de investigação – não terão cometido erros que alguns dos anteriores. Recordo, por exemplo, que o caso Freeport foi encerrado por decisão do então diretor do DCIAP apesar de os procuradores terem ainda mais de 8 dezenas de questões a colocar a Sócrates. E este caso, bem como o da destruição das escutas ao Primeiro-Ministro, decidida pelo Presidente do STJ, passou à opinião pública como um labéu sobre o desajeitado Pinto Monteiro. De resto, já dantes houve casos bem mediáticos e alguns ora em evidência foram iniciados antes do mandato da ainda PGR.
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E, para esclarecimento, se enunciam as competências do Procurador-Geral da República, de acordo com o art.º 220.º da CRP e o art.º 10.º do EMP (Estatuto do Ministério Público), aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, e cuja última redação foi introduzida pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro.
1. Compete ao Procurador-Geral da República: 
a) Presidir à Procuradoria-Geral da República; 
b) Representar o Ministério Público nos tribunais referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º (Supremo Tribunal de Justiça, Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo, Supremo Tribunal Militar e Tribunal de Contas); 
c) Requerer ao Tribunal Constitucional a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma. 
2. Como presidente da Procuradoria-Geral da República, compete ao Procurador-Geral da República: 
a) Promover a defesa da legalidade democrática;
b) Dirigir, coordenar e fiscalizar a atividade do Ministério Público e emitir as diretivas, ordens e instruções a que deve obedecer a atuação dos respetivos magistrados; 
c) Convocar o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República e presidir às respetivas reuniões;
d) Informar o Ministro da Justiça da necessidade de medidas legislativas tendentes a conferir exequibilidade aos preceitos constitucionais; 
e) Fiscalizar superiormente a atividade processual dos órgãos de polícia criminal; 
f)  Inspecionar ou mandar inspecionar os serviços do Ministério Público e ordenar a instauração de inquérito, sindicâncias e processos criminais ou disciplinares aos seus magistrados;
g) Propor ao Ministro da Justiça providências legislativas com vista à eficiência do Ministério Público e ao aperfeiçoamento das instituições judiciárias ou a pôr termo a decisões divergentes dos tribunais ou dos órgãos da Administração Pública; 
h) Intervir, pessoalmente ou por substituição, nos contratos em que o Estado seja outorgante, quando a lei o exigir; 
i) Superintender nos serviços de inspeção do Ministério Público;
j) Dar posse ao Vice-Procurador-Geral da República, aos procuradores-gerais-adjuntos e aos inspetores do Ministério Público; 
l) Exercer sobre os funcionários dos serviços de apoio técnico e administrativo da Procuradoria-Geral da República e dos serviços que funcionam na dependência desta a competência que pertence aos ministros, salvo quanto à nomeação; 
m)   Exercer as demais funções que lhe sejam atribuídas por lei. 
3. As diretivas a que se refere a alínea b) do número anterior que interpretem disposições legais são publicadas na 2.ª série do Diário da República. 
4. O Procurador-Geral da República é apoiado no exercício das suas funções por um gabinete. 
5. A estrutura e composição do gabinete do Procurador-Geral da República são definidas em diploma próprio. 
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Enfim, será que foi com Marques Vidal que se pôs a funcionar a máquina “no âmbito do que é a justiça”? Não lhe bastava o mérito de a ter oleado? Entre 1986 e 2012 o MP andava a deriva? E como se explica que, durante tantos meses, o caso da recondução ou não da ainda PGR fosse, a par do furto/roubo (?) do material de Tancos, um dos problemas mais candentes da nossa República? Ah, ainda não tinham surgido os problemas da encenada restituição do material de Tancos e do caso de Cristiano Ronaldo em Las Vegas!  
2018.10.10 – Louro de Carvalho

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