sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Da recomendação da ECRI de inclusão de conteúdos no currículo escolar


No seu relatório recentemente publicado, a ECRI (Comissão Europeia Contra o Racismo e Intolerância), do Conselho da Europa, no pressuposto de que analisou documentos e visitou Portugal, fez um conjunto de críticas e fez uma série de recomendações a que me referi noutro texto de reflexão.
Efetivamente, considerei estranho que o grupo de trabalho tenha concluído que políticos e polícias incorrem, por vezes, em discursos e/ou atitudes racistas, xenófobas e homofóbicas, quando a nossa sociedade é tolerante e inclusiva, e que temos de corrigir legislação, estruturas e currículos escolares.
No mínimo, ocorre dizer que a ECRI está a meter a foice em seara alheia quando recomenda tais alterações. Porém, ou não leu a documentação ou não a percebeu, assim como não apreendeu a índole e estruturação dos nossos serviços públicos ou dos privados de utilidade pública.
Além disso, cá entre nós dizemos, com raras exceções, que as nossas leis são avançadas, mas que as mentalidades não se mudam por decreto.
E não sabe a ECRI que o Estado, através do Ministério da Educação, do Programa Escola Segura, das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, do Ministério Público e da Comissão para a Igualdade de Género, além de outros organismos e associações, tem gerado a promoção de uma onda de educação para a tolerância e de uma forte cruzada contra o racismo, xenofobia e homofobia. Por outro lado, ao nível dos currículos escolares, desde a educação pré-escolar ao 12.º ano, através dos programas das diversas disciplinas – sobretudo das mais vocacionadas para a leitura, análise e discussão de textos e produção escrita, como Português, Línguas Estrangeiras, História, Geografia, Sociologia, Cidadania, Cidadania e Desenvolvimento, Mundo Atual ou Área de Integração – e áreas curriculares não disciplinares como Educação para a Cidadania, Área de Projeto e projetos diversos, tudo respira tolerância, aceitação, respeito, saudável coexistência das diferenças. E, nisto, vêm em regime complementar de ajuda as múltiplas campanhas transdisciplinares de informação, sensibilização e formação lançadas pela escola e pelas entidades com as quais ela estabelece parcerias ou ajusta ações isoladas.
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Porém, a ECRI vergasta sobretudo a disciplina de História. E, pelo que vi e ouvi, veio a terreiro uma ilustre professora, também autora ou coautora de manuais escolares, garantir que no seu manual do 9.º ano, há texto que já acolhe o teor das preditas recomendações.
Ora, por mais importante que seja o manual, a base de sustentação para a “irrazoabilidade” do texto da ECRI são os programas da disciplina, sobretudo agora traduzidos em metas curriculares em vigor desde a regência ministerial de Nuno Crato e nas aprendizagens essenciais que a gestão ministerial de Tiago Rodrigues, ou melhor de Mário Centeno, fez implementar no âmbito da autonomia e flexibilização curricular consagrada pelo Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho.
De resto, a único facto que pode perturbar a concretização do desígnio da ECRI é a demasiada extensão do programa de História no 3.º Ciclo do Ensino Básico comparativamente com a diminuta carga horária semanal e tendo em conta a multiplicidade de disciplinas que o plano de estudos comporta neste ciclo.
E, analisando o que se passa programaticamente ao nível da disciplina de História e Geografia de Portugal do 2.º Ciclo, de História do 3.º Ciclo, História A e História B do ensino secundário, chegar-se-á a conclusão diferente daquela a que chegou a ECRI no seu mais que polémico relatório. Assim, tendo em conta vários campos do site da Direção-Geral da Educação (DGE), verifica-se o seguinte (dou o nome da disciplina a negrito; os títulos dos documentos de referência a negrito e sublinhado e os pontos de interesse nesta reflexão a negrito e itálico):
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Na disciplina de História e Geografia de Portugal do 2.º Ciclo, as aprendizagens essenciais incluem, no 5.º ano, no subdomínio “Portugal nos séculos XV e XVI”, a operacionalização dos seguintes objetivos específicos, devendo o aluno:
Identificar as principais etapas do processo de exploração da costa ocidental africana; referir a importância do conhecimento dos ventos e das correntes marítimas para a progressão pela costa ocidental africana; identificar os principais navios e instrumentos náuticos utilizados pelos portugueses na expansão marítima; destacar a ação do Infante Dom Henrique e de Dom João II; localizar territórios do império português quinhentista; referir o contributo das grandes viagens para o conhecimento de novas terras, povos e culturas, nomeadamente as de Vasco da Gama, de Pedro Álvares Cabral e de Fernão de Magalhães; sublinhar a importância dos movimentos migratórios no contexto da expansão portuguesa, ressaltando alterações provocadas pela expansão, nomeadamente uma maior miscigenação étnica, a troca de ideias e de produtos, a submissão violenta de diversos povos e o tráfico de seres humanos; reconhecer o papel da missionação católica na expansão portuguesa; valorizar a diversidade cultural e o direito à diferença; e enumerar caraterísticas do estilo manuelino, sublinhando a sua relação com a expansão marítima; identificar/aplicar os conceitos: expansão marítima, rota, colonização, escravo, etnia e migração.
No 6.º ano, no subdomínio “Portugal no século XVIII”, o aluno deve:
Evidenciar a importância do Brasil para a economia portuguesa neste período, nomeadamente enquanto centro de exploração de ouro e de outros recursos naturais e recetáculo de produtos manufaturados portugueses e europeus; relacionar os movimentos migratórios livres e forçados (comércio de escravos) com a cultura do açúcar e com a exploração mineira; evidenciar a importância da introdução de novas culturas como a batata e o milho para a melhoria da dieta e para o aumento populacional em Portugal; compreender a organização da sociedade de ordens, sabendo identificar os diferentes grupos sociais; reconhecer em Dom João V um rei absoluto, ressaltando manifestações do seu poder (fausto da Corte, cerimónias públicas e construções monumentais); demonstrar a importância do legado africano nas sociedades portuguesa e brasileira; caraterizar a ação centralizadora do Marquês de Pombal e o caráter inovador de algumas das suas políticas, nomeadamente na organização do espaço urbano em diversas regiões do reino; e identificar/aplicar os conceitos: cristão-novo, monarquia absoluta, mudança.
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No atinente às metas curriculares, o aluno do 5.º ano, no âmbito do subdomínio “Portugal nos séculos XV e XVI” e no âmbito do objetivo “4. Conhecer e compreender as caraterísticas do império português do século XVI”, deve:
Conhecer a grande dispersão territorial do Império português no século XVI; referir as principais trocas comerciais efetuadas entre os vários continentes, salientando as principais rotas do século XVI; descrever aspetos da vida quotidiana na Lisboa Quinhentista; indicar motivos que levaram os portugueses a colonizar os arquipélagos atlânticos; distinguir a colonização portuguesa das ilhas atlânticas e do Brasil do tipo de presença no litoral africano e no Oriente; e referir as principais caraterísticas dos contactos dos portugueses com os povos africanos, asiáticos e ameríndios.
E, no âmbito do objetivo 5. Conhecer e compreender os efeitos da expansão marítima” deve:
Reconhecer a maior ligação entre várias zonas do mundo operada pelas descobertas marítimas; salientar a introdução de novos produtos em vários continentes em resultado da expansão; relacionar a intensificação dos contactos entre continentes com o processo de aculturação verificado; salientar os efeitos da intensificação do comércio de escravos operada a partir dos descobrimentos e da colonização de novos espaços; e reconhecer em caraterísticas étnicas, culturais, linguísticas e religiosas de diversas populações atuais a influência dos contactos estabelecidos ou promovidos pelos descobrimentos marítimos.
Já o aluno do 6.º ano, no quadro de “O império português, o poder absoluto, a sociedade de ordens e a arte no século XVIII” e em relação ao objetivo “1. Conhecer e compreender as caraterísticas do império português dos séculos XVII e XVIII”, deve:
Conhecer a dimensão geográfica do império português no século XVIII, por comparação com o império luso do século XVI e aos restantes impérios europeus; referir a colónia do Brasil como o principal território ultramarino português no século XVII; destacar o açúcar brasileiro como o principal produto de exportação colonial; relacionar a quebra dos lucros do açúcar com a intensificação da procura de ouro pelos bandeirantes; relacionar as fronteiras atuais do Brasil com as incursões dos bandeirantes a partir dos finais do século XVII; reconhecer a riqueza proporcionada a Portugal, na primeira metade do século XVIII, pela descoberta de ouro no Brasil; caraterizar a vida dos escravos, salientando as condições a que eram submetidos (desde o seu resgate e transporte do continente africano até ao seu dia-a-dia nos engenhos de açúcar); e reconhecer nas caraterísticas étnicas culturais, linguísticas, religiosas do Brasil atual a miscigenação entre ameríndios, africanos e europeus.
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Na disciplina de História do 3.º ciclo, releva das aprendizagens essenciais o atinente ao 8.º ano em “Mudança nos Séculos XV e XVI”. Assim, no quadro de “A abertura ao mundo”, o aluno deve:
Referir as principais condições e motivações da expansão portuguesa; demonstrar a importância que o poder régio e os diversos grupos sociais tiveram no arranque da expansão portuguesa; reconhecer rumos e etapas principais da expansão henriquina; relacionar a política expansionista de Dom João II e a assinatura do Tratado de Tordesilhas com a estratégia ibérica de partilha de espaços coloniais; identificar as principais caraterísticas da conquista e da ocupação espanholas na América Central e do Sul; caraterizar sumariamente as principais civilizações de África, América e Ásia à chegada dos europeus; distinguir formas de ocupação e de exploração económicas implementadas por Portugal em África, Índia e Brasil, considerando as especificidades de cada uma dessas regiões; reconhecer a submissão violenta de diversos povos e o tráfico de seres humanos como uma realidade da expansão; identificar as rotas intercontinentais, destacando os principais centros distribuidores de produtos ultramarinos; compreender que as novas rotas de comércio intercontinental constituíram a base do poder global naval português, promovendo a circulação de pessoas e produtos e influenciando os hábitos culturais; e identificar/aplicar os conceitos: navegação astronómica, colonização; capitão-donatário; império colonial; mare clausum; monopólio comercial; Feitoria; tráfico de escravos; aculturação/encontro de culturas; missionação; e globalização.
Quanto às metas curriculares, releva a “Expansão e mudança nos séculos XV e XVI, o âmbito de cujo objetivo “4. Compreender os séculos XV e XVI como período de ampliação dos níveis de multiculturalidade das sociedades”, o aluno deve:
Identificar, no âmbito de processos de colonização, fenómenos de intercâmbio, aculturação e assimilação; caraterizar a escravatura nos séculos XV e XVI e as atitudes dos europeus face a negros e índios; referenciar a intensificação das perseguições aos judeus que culminaram na expulsão ou na conversão forçada e na perseguição dos mesmos de muitos territórios da Europa Ocidental, com destaque para o caso português; e constatar a permanência e a universalidade de valores e atitudes racistas até à atualidade.
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A disciplina de História A do ensino secundário – uma disciplina trienal da área de formação específica no curso científico-humanístico de línguas e humanidades – apresenta, no quadro das aprendizagens essenciais, o capítulo “A ABERTURA EUROPEIA AO MUNDO – MUTAÇÕES NOS CONHECIMENTOS, SENSIBILIDADES E VALORES NOS SÉCULOS XV E XVI”, em que, no âmbito de “O alargamento do conhecimento do mundo”, o aluno deve:
Reconhecer o papel dos portugueses na abertura europeia ao mundo e a sua contribuição para a síntese renascentista; demonstrar que o império português foi o primeiro poder global naval; reconhecer que o contributo português se baseou na inovação técnica e na observação e descrição da natureza, abrindo caminho ao desenvolvimento da ciência moderna; demonstrar que as novas rotas de comércio intercontinental promoveram a circulação de pessoas e produtos, influenciando os hábitos culturais à escala global; e reconhecer que a prosperidade das potências imperiais se ficou também a dever ao tráfico de seres humanos, principalmente de África para as plantações das Américas (…).
E, em História B, disciplina bienal para o curso de ciências socioeconómicas, no quadro dos “DINAMISMOS ECONÓMICOS DA EUROPA NOS SÉCULOS XVI A XVIII” (Uma Europa a dois ritmos: predominância rural e dinamismo urbano: a fachada Atlântica – Lisboa, Sevilha e Antuérpia), o aluno deve:
Reconhecer no império português o primeiro poder global naval, destacando a sua componente comercial; demonstrar que as novas rotas de comércio intercontinental promoveram a circulação de pessoas e produtos, influenciando os hábitos culturais à escala global; compreender que a prosperidade das potências imperiais se ficou também a dever ao tráfico de seres humanos, principalmente de África para as plantações das Américas; analisar as transformações económicas ocorridas em Portugal nos séculos XVII e XVIII e a condição de subordinação das suas áreas coloniais; e identificar/aplicar os conceitos: economia pré-industrial; crise demográfica; mercantilismo; bolsa de valores; capitalismo comercial; companhia monopolista; protecionismo; balança comercial; exclusivo colonial (…).
Do Programa 10.º ano (não vi as metas curriculares) de História A destaca-se, no âmbito do “Módulo 3 – A Abertura Europeia ao Mundo – Mutações nos Conhecimentos, Sensibilidades e Valores nos Séculos XV e XVI”, o item de conteúdos “5 As novas representações da humanidade” com “o encontro de culturas e as dificuldades de aceitação do princípio da unidade do género humano: evangelização e escravização; os antecedentes da defesa dos direitos humanos”, salientando, entre outros, os conceitos de: proselitismo, missionação, miscigenação, providencialismo, direitos Humanos, racismo (…).
E algo parecido sucede com o programa do 11.º ano, no quadro do “Módulo 4 – A EUROPA NOS SÉCULOS XVII E XVIII – SOCIEDADE, PODER E DINÂMICAS COLONIAIS” com o item de conteúdos “3. Triunfo dos Estados e dinâmicas económicas nos séculos XVII e XVIII” para a exploração dos conceitos e factos ligados a: capitalismo comercial; protecionismo; mercantilismo; balança comercial; exclusivo colonial; companhia monopolista; comércio triangular; tráfico negreiro; bandeirante; manufatura; bolsa de valores; mercado nacional; e revolução industrial.
E do programa de Historia B, ressalta no 10.º ano, o “Módulo 1 – DINAMISMOS ECONÓMICOS DA EUROPA NOS SÉCULOS XVI A XVIII” com o item de conteúdos “3. O controlo do comércio mundial pelo norte da Europa” em que são explorados os conceitos e os factos atinentes a: companhia monopolista; protecionismo, balança comercial; exclusivo colonial; comércio triangular; tráfico negreiro; bandeirante; e manufatura.
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Assim, ao nível curricular e programático, a ECRI não tem razão na recomendação que faz, a não ser na eventual falta de controlo e monitorização da lecionação, mas essa é a batalha de todos os dias entre os programas, falta de tempo e a autonomia docente na seleção de conteúdos e metodologias. Ou, questionando a ECRI, será que Portugal só deve lecionar os conteúdos negativos que deslustram a ação portuguesa, omitindo ou ofuscando os dados contributivos para o bem-estar e progresso das populações e do encontro de civilizações e de culturas? Terá sido apenas Portugal a incorrer nos ditos erros históricos, não havendo outros Estados que fizeram igual ou pior (vg Espanha, Inglaterra, Holanda, França…)? Não será de conter também o racismo, a xenofobia, a intolerância e a tentativa de supremacia das partes contrárias? É certo que o caminho da tolerância é longo e nunca está perfeitamente percorrido, mas recomenda-se modus in rebus e que os investigadores internacionais leiam tudo e bem e ouçam muitos e bem!  
2018.10.05 – Louro de Carvalho    

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