No seu
relatório recentemente publicado, a ECRI (Comissão Europeia Contra
o Racismo e Intolerância),
do Conselho da Europa, no pressuposto de que analisou documentos e visitou
Portugal, fez um conjunto de críticas e fez uma série de recomendações a que me
referi noutro texto de reflexão.
Efetivamente,
considerei estranho que o grupo de trabalho tenha concluído que políticos e
polícias incorrem, por vezes, em discursos e/ou atitudes racistas, xenófobas e
homofóbicas, quando a nossa sociedade é tolerante e inclusiva, e que temos de
corrigir legislação, estruturas e currículos escolares.
No
mínimo, ocorre dizer que a ECRI está a meter a foice em seara alheia quando
recomenda tais alterações. Porém, ou não leu a documentação ou não a percebeu,
assim como não apreendeu a índole e estruturação dos nossos serviços públicos
ou dos privados de utilidade pública.
Além
disso, cá entre nós dizemos, com raras exceções, que as nossas leis são
avançadas, mas que as mentalidades não se mudam por decreto.
E não
sabe a ECRI que o Estado, através do Ministério da Educação, do Programa Escola
Segura, das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, do Ministério Público e
da Comissão para a Igualdade de Género, além de outros organismos e
associações, tem gerado a promoção de uma onda de educação para a tolerância e
de uma forte cruzada contra o racismo, xenofobia e homofobia. Por outro lado,
ao nível dos currículos escolares, desde a educação pré-escolar ao 12.º ano,
através dos programas das diversas disciplinas – sobretudo das mais
vocacionadas para a leitura, análise e discussão de textos e produção escrita,
como Português, Línguas Estrangeiras, História, Geografia, Sociologia,
Cidadania, Cidadania e Desenvolvimento, Mundo Atual ou Área de Integração – e
áreas curriculares não disciplinares como Educação para a Cidadania, Área de
Projeto e projetos diversos, tudo respira tolerância, aceitação, respeito,
saudável coexistência das diferenças. E, nisto, vêm em regime complementar de
ajuda as múltiplas campanhas transdisciplinares de informação, sensibilização e
formação lançadas pela escola e pelas entidades com as quais ela estabelece
parcerias ou ajusta ações isoladas.
***
Porém, a
ECRI vergasta sobretudo a disciplina de História. E, pelo que vi e ouvi, veio a
terreiro uma ilustre professora, também autora ou coautora de manuais
escolares, garantir que no seu manual do 9.º ano, há texto que já acolhe o teor
das preditas recomendações.
Ora, por
mais importante que seja o manual, a base de sustentação para a
“irrazoabilidade” do texto da ECRI são os programas da disciplina, sobretudo
agora traduzidos em metas curriculares em vigor desde a regência ministerial de
Nuno Crato e nas aprendizagens essenciais que a gestão ministerial de Tiago
Rodrigues, ou melhor de Mário Centeno, fez implementar no âmbito da autonomia e
flexibilização curricular consagrada pelo Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de
julho.
De
resto, a único facto que pode perturbar a concretização do desígnio da ECRI é a
demasiada extensão do programa de História no 3.º Ciclo do Ensino Básico
comparativamente com a diminuta carga horária semanal e tendo em conta a
multiplicidade de disciplinas que o plano de estudos comporta neste ciclo.
E,
analisando o que se passa programaticamente ao nível da disciplina de História
e Geografia de Portugal do 2.º Ciclo, de História do 3.º Ciclo, História A e
História B do ensino secundário, chegar-se-á a conclusão diferente daquela a
que chegou a ECRI no seu mais que polémico relatório. Assim, tendo em conta vários
campos do site da Direção-Geral da
Educação (DGE), verifica-se o seguinte
(dou o nome da disciplina a negrito;
os títulos dos documentos de referência a negrito e sublinhado e os pontos de
interesse nesta reflexão a negrito e itálico):
***
Na disciplina de História e Geografia de Portugal do 2.º Ciclo, as aprendizagens essenciais
incluem, no 5.º ano, no subdomínio “Portugal
nos séculos XV e XVI”, a operacionalização dos seguintes objetivos
específicos, devendo o aluno:
Identificar as
principais etapas do processo de exploração da costa ocidental africana; referir
a importância do conhecimento dos ventos e das correntes marítimas para a
progressão pela costa ocidental africana; identificar os principais navios e
instrumentos náuticos utilizados pelos portugueses na expansão marítima; destacar
a ação do Infante Dom Henrique e de Dom João II; localizar territórios do império
português quinhentista; referir o contributo das grandes viagens para o
conhecimento de novas terras, povos e culturas, nomeadamente as de Vasco da
Gama, de Pedro Álvares Cabral e de Fernão de Magalhães; sublinhar a importância
dos movimentos migratórios no contexto da expansão portuguesa, ressaltando
alterações provocadas pela expansão, nomeadamente uma maior miscigenação
étnica, a troca de ideias e de produtos, a submissão violenta de diversos povos
e o tráfico de seres humanos; reconhecer o papel da missionação católica
na expansão portuguesa; valorizar a diversidade cultural e o direito à
diferença; e enumerar caraterísticas do estilo manuelino, sublinhando a sua relação
com a expansão marítima; identificar/aplicar os conceitos: expansão marítima,
rota, colonização, escravo, etnia e migração.
No 6.º
ano, no subdomínio “Portugal no século
XVIII”, o aluno deve:
Evidenciar a
importância do Brasil para a economia portuguesa neste período, nomeadamente
enquanto centro de exploração de ouro e de outros recursos naturais e
recetáculo de produtos manufaturados portugueses e europeus; relacionar os
movimentos migratórios livres e forçados (comércio de escravos) com a cultura
do açúcar e com a exploração mineira; evidenciar a importância da
introdução de novas culturas como a batata e o milho para a melhoria da dieta e
para o aumento populacional em Portugal; compreender a organização da sociedade
de ordens, sabendo identificar os diferentes grupos sociais; reconhecer em Dom
João V um rei absoluto, ressaltando manifestações do seu poder (fausto da
Corte, cerimónias públicas e construções monumentais); demonstrar a importância
do legado africano nas sociedades portuguesa e brasileira; caraterizar a ação
centralizadora do Marquês de Pombal e o caráter inovador de algumas das suas
políticas, nomeadamente na organização do espaço urbano em diversas regiões do
reino; e identificar/aplicar os conceitos: cristão-novo, monarquia absoluta, mudança.
***
No
atinente às metas curriculares,
o aluno do 5.º ano, no âmbito do subdomínio “Portugal nos séculos XV e XVI” e no âmbito do objetivo “4. Conhecer e compreender as caraterísticas
do império português do século XVI”, deve:
Conhecer a grande
dispersão territorial do Império português no século XVI; referir as principais
trocas comerciais efetuadas entre os vários continentes, salientando as principais
rotas do século XVI; descrever aspetos da vida quotidiana na Lisboa
Quinhentista; indicar motivos que levaram os portugueses a colonizar os arquipélagos
atlânticos; distinguir a colonização portuguesa das ilhas atlânticas e do
Brasil do tipo de presença no litoral africano e no Oriente; e referir as
principais caraterísticas dos contactos dos portugueses com os povos africanos,
asiáticos e ameríndios.
E, no
âmbito do objetivo “5. Conhecer e compreender os efeitos da
expansão marítima” deve:
Reconhecer a maior
ligação entre várias zonas do mundo operada pelas descobertas marítimas; salientar
a introdução de novos produtos em vários continentes em resultado da expansão; relacionar
a intensificação dos contactos entre continentes com o processo de aculturação
verificado; salientar os efeitos da intensificação do comércio de escravos
operada a partir dos descobrimentos e da colonização de novos espaços; e reconhecer
em caraterísticas étnicas, culturais, linguísticas e religiosas de diversas
populações atuais a influência dos contactos estabelecidos ou promovidos pelos
descobrimentos marítimos.
Já o
aluno do 6.º ano, no quadro de “O império
português, o poder absoluto, a sociedade de ordens e a arte no século XVIII”
e em relação ao objetivo “1. Conhecer e
compreender as caraterísticas do império português dos séculos XVII e XVIII”,
deve:
Conhecer a dimensão geográfica
do império português no século XVIII, por comparação com o império luso do
século XVI e aos restantes impérios europeus; referir a colónia do Brasil como
o principal território ultramarino português no século XVII; destacar o açúcar
brasileiro como o principal produto de exportação colonial; relacionar a quebra
dos lucros do açúcar com a intensificação da procura de ouro pelos bandeirantes;
relacionar as fronteiras atuais do Brasil com as incursões dos bandeirantes a partir
dos finais do século XVII; reconhecer a riqueza proporcionada a Portugal, na
primeira metade do século XVIII, pela descoberta de ouro no Brasil; caraterizar
a vida dos escravos, salientando as condições a que eram submetidos (desde o
seu resgate e transporte do continente africano até ao seu dia-a-dia nos
engenhos de açúcar); e reconhecer nas caraterísticas étnicas culturais,
linguísticas, religiosas do Brasil atual a miscigenação entre ameríndios,
africanos e europeus.
***
Na
disciplina de História do 3.º ciclo,
releva das aprendizagens essenciais
o atinente ao 8.º ano em “Mudança nos
Séculos XV e XVI”. Assim, no quadro de “A
abertura ao mundo”, o aluno deve:
Referir as principais
condições e motivações da expansão portuguesa; demonstrar a importância que o
poder régio e os diversos grupos sociais tiveram no arranque da expansão
portuguesa; reconhecer rumos e etapas principais da expansão henriquina; relacionar
a política expansionista de Dom João II e a assinatura do Tratado de
Tordesilhas com a estratégia ibérica de partilha de espaços coloniais; identificar
as principais caraterísticas da conquista e da ocupação espanholas na América
Central e do Sul; caraterizar sumariamente as principais civilizações
de África, América e Ásia à chegada dos europeus; distinguir formas de ocupação e
de exploração económicas implementadas por Portugal em África, Índia e Brasil,
considerando as especificidades de cada uma dessas regiões; reconhecer a
submissão violenta de diversos povos e o tráfico de seres humanos como uma
realidade da expansão; identificar as rotas intercontinentais,
destacando os principais centros distribuidores de produtos ultramarinos; compreender
que as novas rotas de comércio intercontinental constituíram a base do poder
global naval português, promovendo a circulação de pessoas e produtos e
influenciando os hábitos culturais; e identificar/aplicar os conceitos:
navegação astronómica, colonização; capitão-donatário; império
colonial; mare clausum; monopólio
comercial; Feitoria; tráfico de escravos;
aculturação/encontro de culturas; missionação; e globalização.
Quanto às metas curriculares, releva a “Expansão e mudança nos séculos XV e XVI, o âmbito de cujo objetivo
“4. Compreender os séculos XV e XVI como
período de ampliação dos níveis de multiculturalidade das sociedades”, o
aluno deve:
Identificar, no âmbito
de processos de colonização, fenómenos de intercâmbio, aculturação e
assimilação; caraterizar a escravatura nos séculos XV e XVI e as atitudes dos europeus
face a negros e índios; referenciar a intensificação das perseguições aos
judeus que culminaram na expulsão ou na conversão forçada e na perseguição dos
mesmos de muitos territórios da Europa Ocidental, com destaque para o caso
português; e constatar a permanência e a universalidade
de valores e atitudes racistas até à atualidade.
***
A
disciplina de História A do ensino
secundário – uma disciplina trienal da área de formação específica no curso
científico-humanístico de línguas e humanidades – apresenta, no quadro das aprendizagens essenciais, o
capítulo “A ABERTURA EUROPEIA AO MUNDO –
MUTAÇÕES NOS CONHECIMENTOS, SENSIBILIDADES E VALORES NOS SÉCULOS XV E XVI”,
em que, no âmbito de “O alargamento do
conhecimento do mundo”, o aluno deve:
Reconhecer o papel dos
portugueses na abertura europeia ao mundo e a sua contribuição para a síntese renascentista;
demonstrar que o império português foi o primeiro poder global naval; reconhecer
que o contributo português se baseou na inovação técnica e na observação e
descrição da natureza, abrindo caminho ao desenvolvimento da ciência moderna; demonstrar
que as novas rotas de comércio intercontinental promoveram a circulação de
pessoas e produtos, influenciando os hábitos culturais à escala global; e reconhecer
que a prosperidade das potências imperiais se ficou também a dever ao tráfico
de seres humanos, principalmente de África para as plantações das Américas
(…).
E, em História B, disciplina bienal
para o curso de ciências socioeconómicas, no quadro dos “DINAMISMOS ECONÓMICOS DA EUROPA NOS SÉCULOS XVI A XVIII” (Uma
Europa a dois ritmos: predominância rural e dinamismo urbano: a fachada
Atlântica – Lisboa, Sevilha e Antuérpia),
o aluno deve:
Reconhecer no império
português o primeiro poder global naval, destacando a sua componente comercial;
demonstrar que as novas rotas de comércio intercontinental promoveram a
circulação de pessoas e produtos, influenciando os hábitos culturais à escala
global; compreender que a prosperidade das potências imperiais se ficou também
a dever ao tráfico de seres humanos, principalmente de África para as
plantações das Américas; analisar as transformações económicas
ocorridas em Portugal nos séculos XVII e XVIII e a condição de subordinação das
suas áreas coloniais; e identificar/aplicar os conceitos: economia
pré-industrial; crise demográfica; mercantilismo; bolsa de valores; capitalismo
comercial; companhia monopolista; protecionismo; balança comercial; exclusivo
colonial (…).
Do Programa 10.º ano (não
vi as metas curriculares)
de História A destaca-se, no âmbito
do “Módulo 3 – A Abertura Europeia ao Mundo
– Mutações nos Conhecimentos, Sensibilidades e Valores nos Séculos XV e XVI”,
o item de conteúdos “5 As novas
representações da humanidade” com “o encontro de culturas e as dificuldades
de aceitação do princípio da unidade do género humano: evangelização e escravização;
os antecedentes da defesa dos direitos humanos”, salientando, entre outros, os
conceitos de: proselitismo, missionação, miscigenação, providencialismo, direitos
Humanos, racismo (…).
E algo
parecido sucede com o programa do
11.º ano, no quadro do “Módulo 4
– A EUROPA NOS SÉCULOS XVII E XVIII – SOCIEDADE, PODER E DINÂMICAS COLONIAIS”
com o item de conteúdos “3. Triunfo dos
Estados e dinâmicas económicas nos séculos XVII e XVIII” para a exploração
dos conceitos e factos ligados a: capitalismo comercial; protecionismo;
mercantilismo; balança comercial; exclusivo colonial; companhia monopolista; comércio
triangular; tráfico negreiro; bandeirante; manufatura; bolsa de valores;
mercado nacional; e revolução industrial.
E do
programa de Historia B, ressalta no 10.º
ano, o “Módulo 1 – DINAMISMOS ECONÓMICOS
DA EUROPA NOS SÉCULOS XVI A XVIII” com o item de conteúdos “3. O controlo do comércio mundial pelo norte
da Europa” em que são explorados os conceitos e os factos atinentes a:
companhia monopolista; protecionismo, balança comercial; exclusivo colonial;
comércio triangular; tráfico negreiro; bandeirante; e
manufatura.
***
Assim,
ao nível curricular e programático, a ECRI não tem razão na recomendação que
faz, a não ser na eventual falta de controlo e monitorização da lecionação, mas
essa é a batalha de todos os dias entre os programas, falta de tempo e a
autonomia docente na seleção de conteúdos e metodologias. Ou, questionando a
ECRI, será que Portugal só deve lecionar os conteúdos negativos que deslustram
a ação portuguesa, omitindo ou ofuscando os dados contributivos para o
bem-estar e progresso das populações e do encontro de civilizações e de
culturas? Terá sido apenas Portugal a incorrer nos ditos erros históricos, não
havendo outros Estados que fizeram igual ou pior (vg
Espanha, Inglaterra, Holanda, França…)?
Não será de conter também o racismo, a xenofobia, a intolerância e a tentativa
de supremacia das partes contrárias? É certo que o caminho da tolerância é
longo e nunca está perfeitamente percorrido, mas recomenda-se modus in rebus e que os investigadores
internacionais leiam tudo e bem e ouçam muitos e bem!
2018.10.05 –
Louro de Carvalho
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