Referem os meios de comunicação social que, segundo fontes militares
e fontes ligadas à investigação, citadas pela Lusa, o Diretor-Geral da PJM (Polícia Judiciária Militar), coronel Luís Augusto Vieira, um dos oito detidos no processo “Operação Hýbris”, requereu proteção
jurídica através dum requerimento dirigido ao Chefe do Estado-Maior do Exército
(CEME), general Rovisco Duarte, requerimento
que está a ser analisado ao mais alto nível no ramo e pelos serviços jurídicos.
A avaliação é feita à luz do que prevê a lei, em particular o
Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR),
aprovado pelo Decreto-lei n.º 90/2015, de 29 de maio, e alterado pela Lei n.º Lei n.º 10/2018, de 2 de março.
Contactada pela Lusa, a
porta-voz do Exército rejeitou confirmar ou desmentir o pedido de proteção
jurídica do coronel Luís Vieira, alegando que o ramo não se pronuncia sobre o
caso em concreto. Entretanto, cerca de hora e meia depois da divulgação da
notícia, o Exército confirmou, através de e-mail,
que o coronel Luís Augusto Vieira “requereu
ao Comando do Exército a concessão de proteção jurídica, ao abrigo do exposto
no artigo 20.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas”.
O artigo 20.º do EMFAR reconhece que “o militar tem direito a receber do Estado proteção jurídica nas
modalidades de consulta jurídica e apoio judiciário, que se traduz na dispensa
do pagamento de preparos e custas e das demais despesas do processo, para
defesa dos seus direitos e do seu bom nome e reputação, sempre que sejam
afetados por causa de serviço que preste às Forças Armadas ou no âmbito destas”.
E a versão do artigo 20.º do decreto-lei que aprovou o EMFAR ficava-se
pelo texto transcrito. Porém, a redação que lhe deu a referida lei de março
passado enquadra este texto num n.º 1 do artigo e acrescenta-lhe um n.º 2 com o
teor seguinte: “Nos casos em que for
concedida proteção jurídica nos termos do disposto no número anterior e
resulte, no âmbito do processo judicial, condenação por crime doloso cuja
decisão tenha transitado em julgado, as Forças Armadas podem exercer o direito
de regresso”.
Por seu turno, em junho passado, o general CEME emitiu um despacho
que regulamenta e define os termos daquela proteção jurídica, que reveste as
modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário, de cujo teor se releva
o seguinte:
“A
concessão de apoio judiciário tem como pressupostos que o militar intervenha no
âmbito de um processo judicial, na qualidade de autor, réu, arguido ou
assistente, e que esse processo se destine à defesa dos seus direitos e do seu
bom nome e reputação, sempre que sejam afetados por causa de serviço que preste
às Forças Armadas ou no âmbito destas”.
Do meu ponto de vista, nada tenho a opor a
este direito a proteção jurídica nos termos em que o artigo 20.º do EMFAR, na
atual redação, a estabelece, uma vez que a limita a processos em que se promova
a defesa dos direitos do militar e do seu bom nome e reputação, sempre que
sejam afetados por causa de serviço que preste às Forças Armadas ou no âmbito
destas, obviamente ficando de fora casos ou processos que se refiram a
situações estranhas à instituição castrense.
A redação anterior constituía uma benesse
justificada, mas absoluta. Na versão atual do normativo, parece-me haver mais
justiça, pois, no caso de absolvição do militar, confirma-se a justeza da
benesse, podendo e até devendo o Estado vir a exercer o direito de regresso ao autor ou ao assistente; e, no caso
de condenação por crime doloso, a benesse funciona como um adiantamento, no
pressuposto de que o militar pode não dispor de meios para suportar as despesas,
constituindo tal adiantamento para as Forças Armadas apenas um custo de oportunidade, se efetivamente estas vierem a exercer o direito de
regresso.
Também parece justa a especificação que o
despacho do CEME estabelece as condições em que o militar terá direito à proteção
jurídica – “na qualidade de autor, réu, arguido
ou assistente” – evitando uma interpretação demasiado extensiva ou
demasiado restritiva da disposição legal que reconhece tal direito aos
militares.
Apenas penso que tal prerrogativa se devia
estender aos trabalhadores da administração pública nos mesmos termos em
relação ao exercício da função que lhes cabe de serviço ao Estado. Estariam neste
caso, por exemplo: polícias, magistrados, professores, técnicos superiores, assistentes
técnicos, assistentes administrativos e assistentes operacionais (ou em funções equivalentes) e, quando em
regime de funções públicas, médicos, enfermeiros e paramédicos. Aliás, é o que
fazem os patrões que zelam o bem dos seus trabalhadores, que os há.
***
Não sei se é com base no teor do art.º 20.º do EMFAR que o coronel Pipa
Amorim e seus amigos se meteram num cruzada de críticas ao CEME por
alegadamente ter deixado isolados e sem defesa os arguidos no processo das
mortes dos instruendos do 127.º curso de comandos.
Com efeito, o estatuto em vigor ao tempo dos factos era muito mais generoso
(e o caso deve ser enquadrado pela lei vigente ao tempo dentro do princípio “favores ampliandi, odia restringenda”) e o exercício do direito a proteção
jurídica constituía uma benesse irreversível. Porém, o exercício do direito a proteção
jurídica não tem de ser uma oferta da entidade tutelar, devendo, ao invés ser
requerido, como o fez o coronel Luís Vieira.
Ora, se nenhum dos arguidos no referido curso de comandos requereu proteção
jurídica, à partida, a cruzada é destituída de razão. No entanto, é de ter em conta
que, juntamente com os alegados ilícitos criminais, que, a confirmarem-se, me
parecem revestir a figura de crimes estritamente militares – portanto, a julgar
à luz do Código de Justiça Militar, com molduras penais mais pesadas que as do
Código Penal – fica em causa o bom nome da instituição castrense. Sendo assim,
o Exército deveria assumir uma postura de interesse e de solidariedade e optar
pelas formas de interesse e solidariedade disponíveis, que não passam
necessariamente pela proteção jurídica formal, mas que, pelo menos, afirmassem insistentemente
a presunção de inocência até decisão judicial transitada em julgado. E, pelo menos
aqui, as chefias militares parecem ter falhado.
Todavia, é de registar, na
primeira sessão do julgamento, que decorre no Tribunal Central Criminal de
Lisboa, a presença solidária de
dezenas de militares dos comandos, no ativo e na reserva, nomeadamente da Associação
dos Comandos, junto dos camaradas que estão a ser julgados neste caso.
***
E, se os
militares não andaram bem, também os procedimentos dos civis não foram exemplares.
Tanto assim é que o julgamento dos
militares do Exército acusados de vários crimes relacionados com a morte de dois
recrutas dos Comandos foi suspenso, devendo a decisão da data para retomar a
sessão ser tomada na próxima semana.
Com efeito,
na primeira sessão de julgamento, José Nisa, procurador do MP (Ministério
Público), requereu que os PIC (pedidos de
indemnização civis)
apresentados solidariamente pelas famílias das vítimas contra o Estado e os
arguidos fossem remetidos para os tribunais administrativos para serem julgados
neles. E, caso o tribunal assim não decida, o procurador pede que o Estado seja
notificado e citado para que se possa defender – isto, segundo o procurador,
mercê da existência de conflito de interesses, pois não pode o mesmo estar a
sustentar uma acusação do MP contra os arguidos e, ao mesmo tempo, a defender o
Estado neste polémico processo.
Ao invés, Ricardo
Sá Fernandes e Miguel Pereira, advogados das famílias dos recrutas que
morreram, opuseram-se à passagem dos PIC para julgamento nos tribunais
administrativos, no que foram seguidos por outros advogados.
E o coletivo
de juízes, presidido por Helena Pinto e que tem como um dos auxiliares um
coronel do Exército, dado estar em causa o envolvimento de militares, deu 48
horas para que todos os intervenientes se pronunciem.
Se o
tribunal coletivo decidir enviar os PIC para os tribunais administrativos, o
julgamento prossegue a 4 de outubro; mas, se mantiver os PIC junto a estes
autos, então o tribunal terá de notificar e citar o Estado para que se
pronuncie num prazo de 20 dias. Se assim for, segundo o advogado Ricardo Sá
Fernandes, que defende a família de Hugo Abreu, o julgamento deverá ficar
suspenso “por trinta dias”.
Em causa
estão três PIC apresentados pelas famílias: os pais de Dylan da Silva pedem
400.000 euros enquanto a família de Hugo Abreu exige 300.000 euros, havendo
ainda um terceiro pedido efetuado por um dos militares que ficou ferido.
Em junho de
2017, o MP deduziu acusação contra os 19 militares, considerando que atuaram
com “manifesto desprezo pelas
consequências gravosas que provocaram” nos ofendidos. E a juíza de instrução
criminal Isabel Sesifredo decidiu, em 9 de março passado, levar a julgamento
todos os arguidos nos exatos termos da acusação do MP, após a fase de instrução
requerida por alguns dos arguidos. Na acusação, o MP frisa:
“Desde o início da denominada ‘Prova Zero’, os formandos foram
confrontados com comportamentos profundamente violentos dos formadores e só o
medo da prática de comportamentos ainda mais violentos que caraterizaram a
atuação de todos os formadores, do diretor da prova, do comandante de Companhia
e até da equipa sanitária – médico e enfermeiro – justificou que os formandos
tenham permanecido durante a noite do dia 4 de setembro de 2016 no Campo de
Tiro de Alcochete”.
A acusação
sustenta que, ao sujeitarem os ofendidos àquela “penosidade física e psicológica” na recruta, todos os arguidos
sabiam que “excediam os limites”
permitidos pela Constituição e pelo EMFAR e “colocaram em risco a vida e a saúde dos ofendidos, o que sucedeu logo
no primeiro dia de formação”. São ainda acusados de cometerem várias
agressões contra os recrutas, nomeadamente o facto de obrigarem os formandos a
“rastejarem nas silvas”, ou de
privarem /racionarem a água aos instruendos, apesar das condições extremas de
temperaturas elevadas.
Face à
situação, é de perguntar como é que se inicia um julgamento sem estar resolvido
o aludido alegado conflito de interesses. Na verdade, se não temos a figura do
defensor público instituída, como alguém de renome internacional chegou a propor
no âmbito da analise feita o nosso sistema judiciário – proposta que o XIX Governo
não acolheu –, não é viável no mesmo processo, o MP servir simultaneamente de
acusador em nome do Estado e de defensor do Estado. A questão deveria ter sido
decida previamente e não resultar da suscitação de incidente.
E julgar os
PIC em tribunal administrativo é possível, uma vez que a indemnização pedida
não resulta de vício administrativo, mas de crime?
***
Ora, se o
CEME foi rápido em substituir o comandante do Regimento de Comandos Dores Moreira
e o seu sucessor Pipa Amorim, também o Ministro
da Defesa Nacional foi célere a afastar diretor da PJM e a nomear o sucessor.
De facto, a 1
de outubro, Azeredo Lopes nomeou o capitão-de-mar-e-guerra Paulo Isabel para o
lugar do coronel Luís Vieira, arguido no âmbito da “Operação Hýbris” e em
prisão preventiva.
Em
comunicado, o Ministério da Defesa Nacional refere que o Ministro “tomou a decisão de nomear o
capitão-de-mar-e-guerra Paulo Manuel José Isabel como diretor-geral da Polícia
Judiciária Militar, mediante proposta do Chefe do Estado-Maior-General das
Forças Armadas”.
A mudança na
cúpula da PJM acontece uma semana depois de o anterior diretor, coronel Luís
Augusto Vieira, ter sido detido no âmbito da “Operação Hýbris” e de, na
sexta-feira, o juiz de instrução criminal ter decretado a prisão preventiva
para o militar, apontado como o principal responsável por uma operação que
levou à recuperação das armas de Tancos, mas que terá sido conduzida sem que a
PJ civil tivesse sido informada.
O governante,
mesmo antes de se pronunciar publicamente sobre os acontecimentos, escreveu apenas
que “cessa funções o coronel Luís Augusto
Vieira como diretor-geral da Polícia Judiciária Militar”.
O comunicado
refere que o novo diretor da PJM “ingressou
em 1982 na Escola Naval, onde concluiu a licenciatura em Ciências Militares
Navais” e que, nos últimos anos, “desempenhou
diversas funções na Polícia Marítima” até chegar à coordenação da “da área de ensino de comportamento humano e
administração de recursos no Instituto Universitário Militar”.
***
No meio de
tudo isto, questiono-me como é que se mantêm no lugar o CEME, o polémico responsável
militar pela instituição castrense, e o Ministro enquanto responsável político pela
defesa da República e pelas políticas públicas de defesa?
2018.10.01 – Louro de Carvalho
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