domingo, 30 de setembro de 2018

O fermento da fraternidade nunca deixa de produzir os seus frutos


Disse-o o Papa Francisco a cerca de sete mil membros da Associação Nacional da Polícia de Estado, que recebeu em audiência a 29 de setembro, na Sala Paulo VI, no Vaticano.
É uma associação une os membros da Polícia ainda em atividade e aqueles que, mesmo tendo terminado seu serviço, ainda se sentem parte dela e levam por adiante os seus ideais, nomeadamente a transmissão das “tradições da Polícia de Estado”, favorecendo a união de todos os seus membros, em licença ou em serviço. No dizer do Papa, valorizam-se, deste modo, “a experiência dos membros idosos e o seu património histórico-cultural, que não deve ser esquecido ou diluído, mas transmitido e ampliado e reforça-se o vínculo entre as gerações, às vezes, afetado no contexto das relações sociais”.
E, na ótica do compromisso com o bem comum, Francisco sublinhou:
É muito significativo que fazem parte dessa associação os cidadãos comuns que, mesmo não sendo membros da Polícia, assumem os seus valores e o seu compromisso. Assim, vós formais uma grande família: uma família aberta a todos aqueles que se querem comprometer com o bem comum a partir de seus princípios, uma família que gostaria de envolver e acolher todo o cidadão para difundir uma cultura de legalidade, respeito e segurança.”.
Para o Pontífice, sem tais fundamentos, nenhum contexto social pode alcançar o bem comum, mas tornar-se-á um emaranhado de interesses pessoais contrapostos, pois o bem duma sociedade não é dado apenas pelo bem-estar da maioria ou pelo respeito dos direitos de quase todos, mas pelo bem da coletividade como um conjunto de pessoas, de forma que, se alguém sofre, todos os membros sofrem com ele. Disse-o respaldado na palavra de Paulo no cap. 12 da 1.ª Carta aos Coríntios de que, “se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros; e, se um membro é honrado, todos os membros participam da sua alegria” (1Cor 12,26). Ora, nós somos o corpo de Cristo e cada um, pela sua parte, é um membro (cf id 12,27) e, quanto mais fracos parecem ser os membros do corpo, tanto mais são necessários; aqueles que parecem ser os menos honrosos do corpo, a esses rodeamo-los de maior honra, e aqueles que são menos decentes, nós os tratamos com mais decoro, sendo que os que são decentes não têm necessidade disso (cf id 22-24).
Vincando que “toda a injustiça afeta sobretudo os mais pobres”, os mais pobres e atribulados do nosso tempo, explicou:
Quando faltam a legalidade e a segurança, os vulneráveis são os primeiros a serem prejudicados, porque possuem poucos meios para se defenderem e proverem a si mesmos. Toda a injustiça afeta sobretudo os mais pobres e todos aqueles que de várias formas são os últimos. Últimos, neste nosso mundo, são aqueles que deixam a sua terra por causa da guerra e da miséria e devem recomeçar do zero num contexto totalmente novo. Os últimos são aqueles que perderam a casa e o trabalho e lutam para manter a sua família, os últimos são aqueles que vivem marginalizados e doentes, ou são vítimas de injustiças e abusos.”.
E, assinalando o papel da polícia, frisou:
Vós estais próximos a todas essas pessoas quando procurais prevenir o crime, combater o bullying e fraudes, quando colocais à disposição o vosso tempo e as vossas energias na formação dos jovens e na vigilância das escolas, na proteção do território e do património artístico, na organização de encontros e na formação de cidadãos mais ativos e conscientes”.
Ora, a associação a que se dirigiu introduz, segundo o Pontífice, “na massa da sociedade, o fermento da igualdade e da fraternidade que nunca deixa de produzir seus frutos (...), valores transmitidos pelo Evangelho” que transformaram radicalmente as mentalidades e as vidas. Ea introdução dos valores da solidariedade e da paz, que encontram o seu ápice na pessoa e na mensagem de Jesus, foram e ainda hoje são capazes de renovar as relações interpessoais e sociais” – disse Francisco, que enunciou como conclusão o seguinte:
É isso que desejamos para o nosso tempo, sabendo que, quando colocamos em prática a caridade, ela muda o mundo e a história, mesmo que não percebamos logo os seus efeitos. Esse é o nosso objetivo e essa é a contribuição dada pela Associação Nacional da Polícia de Estado todas as vezes que, seguindo o exemplo de seu Padroeiro, São Miguel Arcanjo, se opõe a tudo o que fere ou destrói o ser humano..
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Também o Papa Francisco, ao comentar, por ocasião do Angelus com a multidão reunida na Praça de São Pedro, os textos da Liturgia da Palavra deste XXVI domingo do Tempo Comum no Ano B (dia 30 de setembro), nos remete para o dinamismo da fraternidade, que requer um percurso pedagógico. Tanto Josué como os discípulos de Jesus se encheram de ciúmes por indivíduos que não tinham entrado na tenda da reunião, no primeiro caso, segundo o texto do Livro dos Números (vd Nm 11,25-29 -1.ª leitura) ou que não eram do grupo, no segundo caso, conforme o relato de Marcos (vd Mc 9,38-43.45.47-48), profetizarem ou expulsarem demónios.
Efetivamente, quando o Senhor desceu na nuvem sobre a tenda da reunião e falou com Moisés, tirou-lhe uma parte do Espírito que nele pousava para os 70 anciãos, que profetizaram, mas não continuaram. Entretanto, Eldade e Medad, que ficaram no acampamento, profetizavam. E Josué sugeriu a Moisés que lho proibisse totalmente. Porém, Moisés, sabendo que o Espírito não se deixa aprisionar por espaços por mais nobres que sejam nem pelas pessoas, falou assim:
Tens ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do SENHOR profetizasse, que o SENHOR enviasse o seu espírito sobre ele!” (Nm 11,29). 
Este desejo de Moisés realiza-se hoje em cada crente que recebeu o Batismo (e a Confirmação) por força do Pentecostes, em que o Espírito Santo irrompeu sobre os discípulos com a abundância dos seus dons e está disponível para agir por intermédio de quem, mesmo sem conhecer a Cristo, vive e atua segundo a sua consciência e movido pelo amor fraterno.
Por seu turno, o Evangelho de Marcos (3.ª leitura) mostra-nos os discípulos, pela voz fogosa de João, a queixarem-se de que um homem que não era do grupo expulsava demónios. Mas Jesus, conhecendo os pensamentos ciumentos deles, disse-lhes:
Não o impeçais, porque não há ninguém que faça um milagre em meu nome e vá logo dizer mal de mim. Quem não é contra nós é por nós, pois, seja quem for que vos der a beber um copo de água por serdes de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.” (Mc 9,39-41).
Ao lado da coerência, Jesus enaltece a dádiva e a cortesia de a receber, venha da parte de quem vier. Porém, Francisco chamou a atenção para o facto de o comportamento dos discípulos de Jesus ser muito humano, muito comum, e o podermos encontrar “nas comunidades cristãs de todos os tempos, provavelmente também em nós mesmos”. E considerou que “o Evangelho deste domingo nos apresenta um daqueles particulares muito instrutivos da vida de Jesus com os seus discípulos”.
Segundo o Papa, “João e os outros discípulos manifestam um comportamento de fechamento diante dum acontecimento que não entra nos seus esquemas, neste caso a ação, mesmo sendo boa, de uma pessoa ‘externa’ ao grupo de seguidores”. Mas Jesus, ao invés, “parece muito livre, plenamente aberto à liberdade do Espírito de Deus, que não é limitado na sua ação por nenhum confim e por nenhum recinto”.
E o organizador do Missal Quotidiano Ferial, da Paulus (2016) sustenta:
As palavras que, um dia, Jesus dirigiu aos Doze têm agora um alcance eclesial. A Igreja não tem o monopólio do bem [como poderia dizer que dentro da Igreja ninguém tem o exclusivo do bem], pois o Espírito também atua fora das suas fronteiras. No dia do Juízo, Deus reconhecerá como Seus todos os que tiverem agido com os outros, movidos pelo amor.”.   
Francisco diz que Jesus quis então educar os discípulos e a nós hoje nesta liberdade interior.
Para o Pontífice, que disse fazer-nos bem “refletir sobre este episódio e fazer um pouco de exame de consciência”, aponta a existência do medo da ‘concorrência’ de que alguém possa atrair novos seguidores. E então não se consegue apreciar o bem que os outros fazem: não é bom porque ele “não é um dos nossos”. É uma forma de autorreferencialidade, estando aqui a raiz do proselitismo. E a Igreja, como disse Bento XVI, não cresce pelo proselitismo, mas pela atração, isto é, “cresce pelo testemunho dado aos outros com a força do Espírito Santo”.
Segundo o Papa, “de boa-fé, aliás, com zelo, gostar-se-ia de proteger a autenticidade duma certa experiência, tutelando o fundador ou o líder dos falsos imitadores”. Mas a grande liberdade de Deus (que ninguém pode tolher) em doar-se a nós “é um desafio e uma exortação a mudar os nossos comportamentos e nossas relações” e “um convite que Jesus nos faz hoje”. E – disse ainda o Papa – “Ele convida-nos a não pensar segundo as categorias do ‘amigo/inimigo’, ‘nós/eles’, ‘quem está dentro/quem está fora’, ‘meu/seu’, mas a ir além, a abrir o coração a fim de reconhecer a presença e a ação de Deus mesmo em âmbitos incomuns e imprevisíveis e em pessoas que não fazem parte de nosso círculo”. “Trata-se de estarmos mais atentos à genuinidade do bem, do bonito e do verdadeiro que é realizado, do que ao nome e procedência de quem o faz”. E, como sugere o Evangelho,  “em vez de julgar os outros, devemos examinar-nos e “cortar”, sem pactos, tudo o que pode escandalizar as pessoas mais fracas na fé”.
Com efeito, o Evangelho, remando contra o escândalo – em que se pode incluir o fenómeno desastroso da pedofilia e dos abusos sexuais de menores, sobretudo por figuras proeminentes das Igrejas – embora não devam ser tomados à letra os diversos elementos metafóricos, mas sendo de tomar toda a sua força normativa e apelativa, é fortemente radical ao estipular: “Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, melhor seria para ele atarem-lhe ao pescoço uma dessas mós que são giradas pelos jumentos e lançarem-no ao mar”.
Do mesmo modo se deve acolher o aviso de que se a mão, o pé ou um dos olhos são ocasião de pecado, mais vale cortar, pois é perdível entrar na vida mutilado (maneta), coxo ou cego a ir inteiro para a Geena de fogo inapagável e onde o verme não morre. O mesmo se diga de qualquer elemento corporal.
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Também a fraternidade implica a não acumulação de riquezas que leva ao seu apodrecimento, como espelha a advertência aos ricos por parte de Tiago (vd Tg 5,1-6), mas à divisão (partilha) solidária e equitativa, ainda que não igualitária. A fraternidade não admite que o ouro e a prata dos ricos se enferrujem enquanto o salário que não pagaram aos trabalhadores que lhes ceifaram as searas está a clamar ao céu contra eles. Com efeito, a ferrugem do ouro e da prata, ou seja, o perfume das riquezas acumuladas ou a busca do lucro pelo lucro, à custa da exploração e espezinhamento dos outros, servirá de testemunho contra quem acumula e não sabe repartir e devorará a sua carne como o fogo.
De facto, ninguém pode servir a Deus e às riquezas ou ao dinheiro. Por isso, em nome do amor fraterno, que entronca no amor de Deus, Tiago apela ao arrependimento e à conversão:
Chorai em altos gritos por causa das desgraças que virão sobre vós” (Tg 5,1).
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E o Papa concluiu a sua alocução, pedindo a Maria, “modelo de acolhimento dócil das surpresas de Deus, que nos ajude a reconhecer os sinais da presença do Senhor no meio de nós, descobrindo-O em todo lugar em que Ele se manifestar, até mesmo nas situações mais impensáveis e incomuns”; e que “ela nos ajude a amar a nossa comunidade sem ciúmes e fechamentos, sempre abertos ao horizonte vasto da ação do Espírito Santo”.
Será a fraternidade em projeto e em ação.
2018.09.30 – Louro de Carvalho

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