Do meu ponto
de vista, criou-se um caso político nefasto em torno da sucessão ou não de
Joana Marques Vidal como Procuradora-Geral da República (PGR), não porque o lugar não deva ser discutido, mas porque
se centrou nas pessoas e não nos conteúdos e nos procedimentos, do que resultou
uma inadequada partidarização e até um certo mal-estar social.
Desde logo,
a Ministra da Justiça – dizem que informalmente e apenas do ponto de vista
jurídico (mas, como disse em tempos António Costa, os ministros nunca devem esquecer
que o são) – declarou publicamente, quase no
início do ano, que o mandato é longo e não renovável. A isto, o
Primeiro-Ministro disse no Parlamento que à governante assistia a razão no âmbito
jurídico, mas que era prematuro pensar-se numa tomada de decisão. E o
Presidente referiu-se à questão como um não caso, pois, a seu tempo tomaria a
decisão em concertação com o Governo.
Segundo a
generalidade dos nossos meios de comunicação social, criou-se a expectativa de
que Marcelo Rebelo de Sousa desejaria a recondução da Procuradora-Geral em
funções e António Costa terá dito que não compraria uma guerra com o Presidente
nesta matéria.
***
Sendo certo
que todos os partidos políticos entenderam que o exercício do atual mandato foi
positivo, embora com o PS a mostrar-se mais comedido, o PCP e o BE
abstiveram-se de “fulanizar” o cargo, sustentando que o trabalho deveria
continuar de forma autónoma de modo que a justiça possa funcionar. O PSD, com o
líder a desafinar do conjunto e a defender que o cargo deveria ser ocupado por
alguém de fora da área do Ministério Público (ao qual lançou duras críticas pela
gestão do caso de Tancos),
mostrou-se expressamente a favor da recondução de Marques Vidal, aduzindo as
razões mais atrabiliárias em favor da sua opção. E o CDS, parecendo estar a
favor da recondução, chegou a exigir que o Presidente ouvisse previamente os
partidos políticos com assento parlamentar – diligência que a Ministra da
Justiça entendeu dever fazer antes de o Governo fazer a proposta de sucessão ao
Presidente.
Figuras
gradas do PSD firmaram-se explicitamente na tese da recondução com argumentos
que pareciam de peso. Destaco Paulo Rangel, professor de direito público, que
disse para quem o quis ouvir que está clarinha na Constituição a possibilidade
da renovação de mandato. Ora, o n.º 3 do art.º 220.º estipula que “O
mandato do Procurador-Geral da República tem a duração de seis anos, sem
prejuízo do disposto na alínea m) do artigo 133.º, segundo o qual é da competência do Presidente da República “nomear e exonerar,
sob proposta do Governo, o presidente do Tribunal de Contas e o
Procurador-Geral da República”.
Nada se diz sobre a possibilidade de renovação ou não do mandato. É certo que,
sendo a não renovabilidade uma restrição, parece que o preceito constitucional
deve merecer uma interpretação restrita. Porém, não pode concluir-se que a
renovabilidade esteja claramente estabelecida. A remissão para a alínea m) do
art.º 133.º dá para a nomeação para início de mandato, recondução ou
interrupção de mandato (a pedido, por falta de condições físicas
e/ou psicológicas para o seu exercício por parte do titular ou por exoneração
por iniciativa do Governo no interesse público) e para a exoneração por termo de mandato ou por
interrupção do mesmo.
Também o ex-líder do PSD Marques Mendes dizia, a 26 de
agosto, que, depois de Marcelo ter falado com Marques
Vidal, a recondução da PGR é a solução óbvia e natural, que a substituição
seria “suspeita” e que, “do ponto de
vista do país, há todas as razões para a recondução.
Para o comentador político, a escolha pode ser “profundamente consensual”,
se houver recondução, ou “altamente controversa”, se Marques Vidal for substituída,
pois, “se não houver bom senso, a substituição será uma decisão sempre
suspeita”. Ora, o “consenso” e o “bom senso” é precisamente o
que Marcelo diz defender na ação política – dizia Marques Mendes, para quem, durante este mandato, “ficou a ideia de que a
justiça é mesmo igual para todos”, incluindo os mais influentes e
poderosos.
Mais: o
comentador dizia que a substituição de Marques Vidal teria uma leitura perigosa sobre os casos
de Sócrates e do ex-vice-presidente angolano, Manuel Vicente. No primeiro caso,
haveria a “leitura de que o poder
político estava desconfortável” com a investigação ao antigo
Primeiro-Ministro; no segundo caso, “ainda
pior, seria feita a leitura de que Portugal cedeu às pressões de Angola”. E
chegou a dizer, em 16 de setembro, que via com naturalidade a manifestação favorável dos partidos à
recondução da PGR, pois “não é uma partidarização, nem uma questão ideológica
de direita ou esquerda, até por ser uma mulher de esquerda escolhida por um
Governo socialista” (quando ela, de esquerda ou de direita,
foi nomeada em 2012 por Cavaco Silva sob proposta do Governos de Passos Coelho) e que teve “uma atuação
profissional, independente e isenta”, razão pela qual a recondução é positiva
para o país.
E o Presidente
deu, a 7 de maio, uma entrevista à Rádio
Renascença e ao Público, em que
primou pela ambiguidade ao referir que está criada uma perceção perigosa sobre
a lentidão da Justiça (“Isto é de tal maneira que morremos primeiro”) e ao apontar caminho à separação de processos e a
mudanças legislativas para fazer face à corrupção e proteger o Estado de
Direito democrático, que vive uma situação que “já é crítica”. E, por outro
lado, fez uma declaração, em junho, a propósito do caso de Tancos, que bem
parecia uma crítica à atuação do Ministério Público.
***
Ora, dados os rumores partidários veiculados pela comunicação
social e a pretensa envolvência do Presidente no caso, a Presidência da
República publicou uma nota em que refere:
“O Presidente da República nunca manifestou,
nem pública nem privadamente, qualquer posição sobre a matéria respeitante à
nomeação do Procurador-Geral da República. Pelo contrário, sempre afirmou que
essa matéria seria apenas objeto de apreciação uma vez apresentada a proposta
pelo Primeiro-Ministro.”.
Agora, que o Primeiro-Ministro propôs em nome do Governo e o
Presidente nomeou Lucília Gago para Procuradora-Geral da República com efeitos
a partir de 12 de outubro, as reações são diversas. O PS, alinhado com o líder,
que defende a escolha como sendo a primeira, manifesta concordância total; o
líder do PSD, que se tinha manifestado solidário com o Governo quer em caso de
recondução quer em caso de sucessão, veio dizer que, se a escolha recaía sobre
uma personalidade de dentro do Ministério Público, que tanto criticou, valia
mais ter mantido a atual Procuradora-Geral; e PCP e BE, não discutindo nomes de
pessoas, pretendem que o trabalho continue com proficiência e autonomia em prol
duma justiça célere e eficaz que chegue a todos.
Passos Coelho, anterior Primeiro-Ministro, e Paula Teixeira
da Cruz, que foi Ministra da Justiça – vêm lamentar a sucessão e mostrar o
temor de que tudo vote para trás, como se o combate à corrupção dependesse
unicamente da PGR ou como se esta interferisse nos processos, pois limita-se a
coordenar a atividade do Ministério Público, a fazer a estão pública da
informação relevante sobre os processos e a ampliar prazos.
E Ferreira Fernandes, do Diário
de Notícias, põe o dedo na ferida: “PGR nomeada,
jornais enxovalhados”.
Com efeito, “cenários taxativos e cheios de
pormenores enxameavam os quiosques e as conversas dos comentadores” e, “talvez
porque um dos lados era mais forte – o dos adeptos da continuação de Marques
Vidal no cargo – as ‘notícias’ sobre o ‘fica’ ganharam a palma”.
***
Entretanto, merece comentário a
nota da Presidência sobre a nomeação da nova PGR no atinente às razões da
nomeação:
“1.ª – Sempre defendeu a limitação de
mandatos, em homenagem à vitalidade da Democracia, à afirmação da credibilidade
das Instituições e à renovação de pessoas e estilos, ao serviço dos mesmos
valores e princípios.
2.ª – Considera que a Senhora Dra. Lucília Gago
garante, pela sua pertença ao Ministério Público, pela sua carreira e pela sua
atual integração na Procuradoria-Geral da República – isto é, no centro da
magistratura – a continuidade da linha de salvaguarda do Estado de Direito
Democrático, do combate à corrupção e da defesa da Justiça igual para todos,
sem condescendências ou favoritismos para com ninguém, tão dedicada e
inteligentemente prosseguida pela Senhora Dra. Joana Marques Vidal.”.
O Presidente, que poderia ter
dito que nomeou sob proposta do Governo, vem invocar o seu entendimento
político sobre a limitação de mandatos (vd 1.ª) trazendo sub-repticiamente
à ribalta a discussão sobre este ponto no âmbito da revisão constituição de
1997, acordada entre o PS, liderado por Guterres, e o PSD, liderado por
Marcelo, sendo que o PSD (ao contrário de
agora), queria que a CRP estabelecesse
a irrenovabilidade do mandato, enquanto o PS preferiu a redação como ficou, com
a abertura para o predito art.º 133.º, alínea m).
Não é a primeira vez que o
Presidente decide segundo a convicção pessoal. Já o fez com a saga da lei do
financiamento dos partidos.
Depois, faz a sua interpretação
da Constituição arrastando consigo outros titulares de órgãos do poder
político, como o fez, por exemplo sobre o Decreto-Lei que tira do regime do
estatuto do gestor público os administradores da CGD. Só que, neste caso, isto
é mais grave, já que um antigo procurador, do DIAP de Coimbra, confessando não
ser contra a continuação de Marques Vidal no cargo, assumiu que o Presidente,
na predita nota, fez jurisprudência sobre a unicidade de mandato do cargo de
PGR (vd 1.ª).
Não sei se foi essa a intenção de
Marcelo, que se tem substituído ao Tribunal Constitucional quanto à apreciação
prévia da constitucionalidade das leis que lhe é dado promulgar ou vetar,
quando o veto é de natureza política e sendo que 13 olhos institucionais veem
mais que um.
Porém, o caso atenta contra o
estabelecimento da jurisprudência, pela qual se faz uma interpretação da lei
com vista à sua adequada aplicação. A jurisprudência é de duas índoles: a comum, segundo a qual, se vários
tribunais decidem no mesmo sentido sobre uma mesma matéria em casos diferentes
e ao abrigo da mesma lei, é óbvio que os tribunais prudentemente passarão a
decidir no mesmo sentido; e a assentada,
estabelecida pelos tribunais superiores a partir de matéria não recorrível, que
leva os tribunais a decidir em conformidade.
São, portanto, os tribunais
superiores que têm a capacidade de estabelecer a jurisprudência assentada e não
o Presidente.
A 2.ª razão invocada diz o óbvio,
garantindo que a nova PGR seguirá na continuidade da “linha de
salvaguarda do Estado de Direito Democrático, do combate à corrupção e da
defesa da Justiça igual para todos, sem condescendências ou favoritismos para
com ninguém” tal como a PGR cessante.
Ora, sendo
assim, é legítimo perguntar porque se tira uma e se coloca outra no cargo. Se é
apenas de uma questão de estilo que se trata, convenhamos que é muito pouco.
***
As atenções têm estado centradas
na PGR. No entanto, há mais casos em que Marcelo tem de estar envolvido e em
que merece reparo. Por exemplo, há de ser tomada decisão sobre a recondução ou
não do Chefe do Estado-Maior do Exército, o General Rovisco Duarte. E, numa altura em que a contestação ao
general está ao rubro, o Presidente terá
colocado em cima da mesa o caso, que terá de ser decidido até abril. Para Marcelo, o mistério de Tancos é
um espinho nas relações com o executivo que exige ver esclarecido. No Parlamento,
o caso voltou à ribalta com a aprovação dum requerimento do CDS para instar o
Ministério Público a confirmar se a lista do material de Tancos recuperado está
em segredo de justiça, como alegou o Exército para não a entregar aos
deputados. E Paulo Rangel
mencionou o nome do CEME para insistir na necessidade da demissão de Rovisco Duarte,
por se estar a assistir ao “enxovalho das Forças Armadas” no mistério de
Tancos. Ainda assim, Rovisco Duarte conta com o apoio do Presidente para
terminar o mandato, mas não para ser reconduzido. A não recondução do CEME
agradará à direita, a quem também agradará o mais provável sucessor de Rovisco:
o vice-CEME General Serafino, condecorado por Marcelo em julho e um dos homens
de confiança de Paulo Portas quando era Ministro da Defesa Nacional.
Estes casos
de nomeação presidencial sob proposta do Governo devem ser tratados com mais
recato – seja o PGR ou o Presidente do Tribunal de Contas, seja o CEMGFA (Chefe do Estado-Maior General das
Forças Armadas), sejam
os chefes dos diversos ramos (Exército, Armada e Força Aérea), caso em que também deve ser ouvido o CEMGFA. E tudo isto
está a ser tratado na Praça Pública dando a impressão de que o Presidente quer governar
– o que não pode fazer – através da comunicação social. Podem ser ouvidos os
partidos previamente, mas tudo tem de ficar sob reserva. Para publicidade,
propaganda e partidos temos as eleições e os referendos.
No caso do
PGR, há que ter em conta que o Ministério Público é o investigador e acusador,
se for ocaso, em nome do Estado. Não é independente (independentes são os Tribunais), mas autónomo, pelo que os órgãos
de soberania não interferem na sua atividade, mas desta deviam periodicamente ser
prestadas contas ao Parlamento através do Governo ou da PGR.
Também, a 12
de setembro, Marcelo deixou claro que não aceitará mudanças no sistema
eleitoral antes das próximas eleições legislativas, em 2019, e que espera a
conclusão do debate “já na nova legislatura” envolvendo “partidos, instituições
da sociedade civil e povo”. E declarou aos jornalistas:
“Não
é só a questão de haver mais proporcionalidade ou menos proporcionalidade, não
é só a proximidade do deputado em relação ao eleitor ou a preocupação de haver
governos estáveis”.
Para o Chefe
de Estado, “faz sentido” iniciar o debate sobre o sistema político face “àquilo
que mudou” nos últimos vinte anos, com o surgimento da “democracia eletrónica,
de movimentos inorgânicos” que desafiam os partidos tradicionais.
Todavia,
não compete ao Presidente condicionar o procedimento legislativo ou
pronunciar-se antecipadamente sobre o mérito de lei ou decreto e prometer
promulgar ou vetar e em que condições. Mas este Presidente não tem esse comedimento
ou essa paciência. E depois, tudo quer explicar e justificar, mesmo quando
concorda. Não sei se o comentador será o Presidente que presta melhor serviço à
coisa pública.
E, mesmo o estabelecimento
de doutrina jurídica não lhe cabe de momento, porque não é um perito em
exercício, o que deveria ter em boa conta. Não é ele “o garante do regular funcionamento
das instituições democráticas”, não as devendo atrapalhar?
2018.09.21 – Louro de Carvalho
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