Era sabido
que, sendo a mesma e minoritária Igreja Católica, a Igreja na República Popular
da China aparecia em duas frentes: a manifestamente alinhada com as indicações
do Vaticano, incluindo a nomeação dos Bispos, sofrendo várias limitações, condicionamentos
e até perseguições por parte do poder político; e a chamada Igreja patriótica,
que, provavelmente por motivos de sobrevivência num regime confessadamente ateu
sob a capa do laicismo, se deixou condicionar pelo Estado, que aprovava ou não
a nomeação dos Bispos, obviamente com a discordância da Santa Sé e criando
dúvidas e até suspeitas a muitos dos católicos.
Entretanto, a
22 de setembro, a Sala de Imprensa da Santa Sé publicou um comunicado – em
italiano, inglês e chinês – que dá conta de ter sido celebrado, em Pequim,
naquele mesmo dia, um acordo provisório entre a Santa Sé e a República Popular
Chinesa sobre a nomeação dos Bispos, numa reunião formal, para o efeito, das
delegações dos dois Estados, Vaticano e República Popular Chinesa, chefiadas,
respetivamente, por Monsenhor Antoine Camilleri,
Subsecretário para as Relações da Santa Sé com os Estados, e o Senhor Wang
Chao, Vice-ministro do Assuntos Externos da República Popular Chinesa.
Nos termos do comunicado, o susodito acordo, fruto duma gradual e recíproca
aproximação foi celebrado após um longo percurso de ponderada negociação e
prevê avaliações periódicas do seu desenvolvimento e as convenientes melhorias.
Com efeito, a nomeação dos Bispos é “uma questão de grande relevo para a vida da
Igreja e cria as condições para uma mais ampla colaboração a nível bilateral”.
É desejável para ambas as partes que “este entendimento favoreça um percurso fecundo
e de visão de futuro no diálogo institucional e contribua positivamente para a
vida da Igreja católica na China, para bem do Povo chinês e para a paz no
mundo”.
***
Em reação ao
acordo, o Padre Antonio Spadaro SJ, diretor da
revista “Civiltà Cattolica”, oferece
aos leitores uma separata em que explica o sentido do acordo, que não é
“um ponto de chegada, mas um novo ponto de partida”, pois “não há automatismos
que garantam a melhoria da qualidade da vida religiosa católica chinesa”. Pelo
que “os desafios permanecem”, porém, “o processo de remodelar a relação entre
os dois lados é positivo para os católicos chineses”.
O ensaio de
Spadaro retoma o fio das várias mensagens lançadas pelo Papa Francisco para dar
um rosto ao desejo já expresso por João Paulo II e por Bento XVI na carta de 24
de maio de 2007, “de ver em breve estabelecidas vias concretas de comunicação e
de colaboração entre a Santa Sé e a República Popular da China” para ver “superadas
as incompreensões do passado” na certeza de que se poderia “trabalhar em
conjunto para o bem do povo chinês e pela paz no mundo”. Agora, Francisco levou
à maturidade um processo que dura desde 1986 (há mais de 30 anos), escrevendo assim uma página inédita da história. De facto,
são cerca de 40 os bispos chineses ordenados sem mandato pontifício e que
posteriormente receberam o reconhecimento da plena comunhão pelos Pontífices
precedentes.
À luz do
acordo, a Igreja na China é, pois, chamada a superar as divisões do passado e a
renovar com novo ímpeto a sua missão de anunciar o Evangelho, para contribuir
para o bem do povo chinês, com a sua mensagem religiosa e compromisso social. Por
isso, deve ser plenamente chinesa, indo a fundo no processo de inculturação à
luz da universalidade própria do catolicismo, portanto, totalmente chinesa e
totalmente católica.
Mas, segundo
a Reuters, Igreja Católica da China
reafirmou, logo no dia 23, a sua lealdade ao Partido Comunista, ao mesmo em que
saudou um acordo histórico com o Vaticano sobre a nomeação de novos bispos. E o
facto de o Vaticano ter assinado uma acordo a dar à instituição vos
decisiva na nomeação de novos bispos na China é classificado pelos críticos como
uma manobra de venda aos interesses do Governo. Na verdade, segundo alegam, a
Igreja Católica na China disse que “vai perseverar em seguir um caminho
adequado a uma sociedade socialista, sob a liderança do Partido Comunista
Chinês”, pois a instituição diz que “ama profundamente a pátria” e
“sinceramente endossou” o acordo, esperando que as relações entre a China e o
Vaticano melhorem ainda mais.
Por sua vez, o Vaticano considera que o acordo, um avanço após anos de
negociações, “não é político, mas pastoral”, e espera que leve à “plena
comunhão de todos os católicos chineses”.
Mas as perspetivas do acordo dividiram comunidades de católicos em toda a
China, com alguns a temerem uma maior supressão se o Vaticano ceder mais
controlo a Pequim e outros a quererem ver a reaproximação e evitar um potencial
desacordo.
Porém, o Papa, no voo de regresso da Estónia ao
Vaticano, respondeu calmamente, assumindo a total responsabilidade pela sua
celebração: “o acordo, eu próprio assinei as cartas de nomeação
plenipotenciária”, disse, “eu sou o responsável”. E pediu que se rezasse pelos
que, “tendo vivido muitos anos nas costas de clandestinidade”, não entendem
hoje o seu alcance. Na verdade, como recordou, em todos os acordos de paz,
“ambos os lados perdem algo” e todavia agora “é o Papa quem nomeia” os bispos
chineses. E não se trata apenas da nomeação, mas também da análise do perfil
dos candidatos, que é feita em diálogo, ficando a nomeação reservada ao Papa.
A este respeito, Francisco
elogiou a “paciência” e a “sabedoria” dos negociadores do Vaticano – do cardeal
Parolin a Monsenhor Celli, ao padre Rota Graziosi – dizendo ter avaliado todos
os “dossiês dos bispos cuja nomeação ainda não tinha o aval pontifício” e
lembrando que a mesma se tornou de exclusiva pertinência papal em tempos não
tão distantes. E também frisou o apoio que recebeu dos episcopados do mundo,
que afirmaram a sua proximidade com o Papa e a oração pelas suas intenções, bem
como as manifestações de fiéis e bispo chineses, tanto da Igreja dita
Tradicional como da Igreja dita Patriótica.
***
E, a 26 de
setembro, a pretexto do Acordo, Francisco endereçou uma eloquente Mensagem aos Católicos Chineses e à Igreja Universal,
de que fez menção na audiência geral, na Praça de São Pedro, no mesmo dia, e em
cujo topo se lê:
“Demos
graças ao Senhor porque é eterna a sua misericórdia e reconhecemos que foi Ele quem nos criou e nós
pertencemos-Lhe, somos o seu povo e as ovelhas do seu rebanho” (Sl 100/99,3).
Depois,
retoma palavras da carta de Bento XVI, acima referida:
“Igreja Católica na China, pequeno rebanho presente e ativo na vastidão
de um imenso povo que caminha na história, como ressoam encorajadoras e
provocantes para ti as palavras de Jesus: Não
temas, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino (Lc 12,32) (…); por isso, brilhe a vossa luz diante dos homens de modo
que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai, que está nos Céus” (Mt 5,16).
Segundo o Vatican News, o texto de 11 páginas, dirigido
aos Católicos chineses, às Autoridades e a toda a Igreja católica, é marcado
por expressões que demonstram a solicitude pastoral para com os fiéis e o povo
chinês em geral da parte do Pontífice, que escreve:
“Num momento tão significativo para a vida
da Igreja e através desta breve Mensagem, antes de mais nada desejo assegurar
que vos tenho diariamente presente nas minhas orações e partilhar convosco os
sentimentos que moram no meu coração”.
Considerando
a existência, no presente, de perplexidades e perspetivas de esperança entre os
católicos chineses, a mensagem procura explicar o significado do Acordo e expressa
as esperanças do Papa no futuro da Igreja na China. Efetivamente, a grande finalidade
é sustentar e promover o anúncio do Evangelho, alcançar e conservar a unidade
plena e visível da Comunidade católica na China. Para isso, o Bispo de Roma
pede um ato de confiança aos fiéis, superando os momentos inevitáveis de
perplexidade, pois é a fé que muda a história.
“Se Abraão tivesse pretendido condições
sociais e políticas ideais antes de sair da sua terra, talvez nunca tivesse
partido. Mas não! (…) Portanto, não foram as mudanças históricas que lhe
permitiram confiar em Deus, mas foi a sua fé pura que provocou uma mudança na
história.” – Garante o Pontífice.
Para dar
este passo, a primeira questão a enfrentar era as nomeações episcopais, que fez
surgir o fenómeno da clandestinidade na Igreja presente na China. E Francisco
relata que desde o início do seu pontificado recebeu “sinais e testemunhos
concretos” de fiéis e bispos que manifestavam “o desejo sincero de viver a sua
fé em plena comunhão com a Igreja universal e com o Sucessor de Pedro”. “Por
isso, depois de ter examinado atentamente cada uma das situações pessoais e
escutado diversos pareceres, refletiu e rezou muito, procurando o verdadeiro
bem da Igreja na China. Por fim, decidiu conceder a reconciliação aos restantes
sete Bispos “oficiais” ordenados sem Mandato Pontifício e, removidas todas as
relativas sanções canónicas, readmiti-los na plena comunhão eclesial.
Francisco
convida, pois, todos os católicos chineses a fazerem-se artífices de
reconciliação, crendo ser possível iniciar um percurso inédito, que ajudará a
curar as feridas do passado, a restabelecer a plena comunhão de todos os
católicos chineses e a abrir uma fase de colaboração mais fraterna, para
assumir com renovado empenho a missão do anúncio do Evangelho.
Tendo em conta que as experiências dolorosas do
passado pertencem ao tesouro espiritual da Igreja na China e de todo o Povo de
Deus peregrino na terra, o Papa assegura que “o Senhor, através do crisol das
próprias provações, nunca deixa de nos cumular com as suas consolações e
preparar-nos para uma alegria maior” na certeza absoluta de “aqueles que
semeiam com lágrimas – como afirma o Salmo 126 – vão recolher com alegria”.
O Acordo,
apesar de se limitar a alguns aspetos da vida da Igreja, pode contribuir para
escrever esta página nova da Igreja Católica na China, pois é a primeira vez
que se introduzem elementos estáveis de colaboração entre as Autoridades do
Estado e a Sé Apostólica, com a esperança de garantir bons Pastores à
comunidade católica. E à Igreja chinesa cabe o papel de procurar bons candidatos
para o serviço episcopal, pois, não se trata de nomear funcionários para a
gestão das questões religiosas, mas de ter “verdadeiros Pastores segundo o
coração de Jesus”.
O Acordo é
um instrumento que por si só não resolve todos os problemas existentes. Por
isso, no plano pastoral, a comunidade católica na China é chamada a estar unida
de modo que “todos os cristãos, sem distinção, realizem gestos de reconciliação
e comunhão”. E, no plano civil e político, os católicos chineses são chamados a
ser bons cidadãos, que amem plenamente a pátria e sirvam o seu país com empenho
e honestidade, sem se eximirem de proferir uma “palavra crítica” quando
necessária.
Depois de se
dirigir aos Bispos, sacerdotes e pessoas consagradas, propondo a caridade
pastoral como a bússola do ministério, pela superação dos contrastes do
passado, pela renúncia à afirmação de interesses pessoais e pelo cuidado dos
fiéis, o Papa dirige-se aos jovens, por ocasião do Sínodo dos Jovens, pedindo
colaboração, entusiasmo, sem medo de levar a todos a alegria do Evangelho. E
faz um pedido a todos os fiéis no mundo inteiro:
“Temos uma tarefa importante: acompanhar com
oração fervorosa e amizade fraterna os nossos irmãos e irmãs na China. Com
efeito, devem sentir que, no caminho que se abre diante deles neste momento,
não estão sozinhos.”
Por fim,
dirige-se às autoridades chinesas, convidando ao diálogo e cooperação,
reiterando a disponibilidade da Santa Sé para trabalhar com elas na sinceridade
pela causa do bem comum:
“Renovo o convite a continuarem, com
confiança, coragem e clarividência, o diálogo iniciado há algum tempo. Desejo
assegurar que a Santa Sé continuará a trabalhar com sinceridade para crescer
numa amizade autêntica com o povo chinês.”.
Segundo o
Pontífice, há que aprender um novo estilo de colaboração simples e diária entre
as Autoridades locais e as Autoridades eclesiásticas”, definindo este diálogo
árduo, mas ao mesmo tempo fascinante. Com efeito, a Igreja na China não é alheia à história do país nem pede
privilégio algum: a sua finalidade no diálogo com as Autoridade civis é “alcançar uma relação tecida de respeito
recíproco e de profundo conhecimento”.
A mensagem conclui
com uma oração a Nossa Senhora, Auxílio dos Cristãos, implorando do Senhor o
dom da paz.
***
Enfim, “Laudemus Deum: oremus pro Ecclesia et pro Pontifice” em prol dum futuro de paz e frutífera
cooperação eclesial e política a bem do Povo e da Igreja, que serve a Deus trabalhando
com as pessoas e pelas pessoas em dinamismo comunitário e sinodal.
2018.09.27 –
Louro de Carvalho
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