sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Aproximação entre a Santa Sé e a República Popular da China


Era sabido que, sendo a mesma e minoritária Igreja Católica, a Igreja na República Popular da China aparecia em duas frentes: a manifestamente alinhada com as indicações do Vaticano, incluindo a nomeação dos Bispos, sofrendo várias limitações, condicionamentos e até perseguições por parte do poder político; e a chamada Igreja patriótica, que, provavelmente por motivos de sobrevivência num regime confessadamente ateu sob a capa do laicismo, se deixou condicionar pelo Estado, que aprovava ou não a nomeação dos Bispos, obviamente com a discordância da Santa Sé e criando dúvidas e até suspeitas a muitos dos católicos.
Entretanto, a 22 de setembro, a Sala de Imprensa da Santa Sé publicou um comunicado – em italiano, inglês e chinês – que dá conta de ter sido celebrado, em Pequim, naquele mesmo dia, um acordo provisório entre a Santa Sé e a República Popular Chinesa sobre a nomeação dos Bispos, numa reunião formal, para o efeito, das delegações dos dois Estados, Vaticano e República Popular Chinesa, chefiadas, respetivamente, por Monsenhor Antoine Camilleri, Subsecretário para as Relações da Santa Sé com os Estados, e o Senhor Wang Chao, Vice-ministro do Assuntos Externos da República Popular Chinesa.
Nos termos do comunicado, o susodito acordo, fruto duma gradual e recíproca aproximação foi celebrado após um longo percurso de ponderada negociação e prevê avaliações periódicas do seu desenvolvimento e as convenientes melhorias. Com efeito, a nomeação dos Bispos é “uma questão de grande relevo para a vida da Igreja e cria as condições para uma mais ampla colaboração a nível bilateral”. É desejável para ambas as partes que “este entendimento favoreça um percurso fecundo e de visão de futuro no diálogo institucional e contribua positivamente para a vida da Igreja católica na China, para bem do Povo chinês e para a paz no mundo”.
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Em reação ao acordo, o Padre Antonio Spadaro SJ, diretor da revista “Civiltà Cattolica”, oferece aos leitores uma separata em que explica o sentido do acordo, que não é “um ponto de chegada, mas um novo ponto de partida”, pois “não há automatismos que garantam a melhoria da qualidade da vida religiosa católica chinesa”. Pelo que “os desafios permanecem”, porém, “o processo de remodelar a relação entre os dois lados é positivo para os católicos chineses”.
O ensaio de Spadaro retoma o fio das várias mensagens lançadas pelo Papa Francisco para dar um rosto ao desejo já expresso por João Paulo II e por Bento XVI na carta de 24 de maio de 2007, “de ver em breve estabelecidas vias concretas de comunicação e de colaboração entre a Santa Sé e a República Popular da China” para ver “superadas as incompreensões do passado” na certeza de que se poderia “trabalhar em conjunto para o bem do povo chinês e pela paz no mundo”. Agora, Francisco levou à maturidade um processo que dura desde 1986 (há mais de 30 anos), escrevendo assim uma página inédita da história. De facto, são cerca de 40 os bispos chineses ordenados sem mandato pontifício e que posteriormente receberam o reconhecimento da plena comunhão pelos Pontífices precedentes.
À luz do acordo, a Igreja na China é, pois, chamada a superar as divisões do passado e a renovar com novo ímpeto a sua missão de anunciar o Evangelho, para contribuir para o bem do povo chinês, com a sua mensagem religiosa e compromisso social. Por isso, deve ser plenamente chinesa, indo a fundo no processo de inculturação à luz da universalidade própria do catolicismo, portanto, totalmente chinesa e totalmente católica.
Mas, segundo a Reuters, Igreja Católica da China reafirmou, logo no dia 23, a sua lealdade ao Partido Comunista, ao mesmo em que saudou um acordo histórico com o Vaticano sobre a nomeação de novos bispos. E o facto de o Vaticano ter assinado uma acordo a dar à instituição  vos decisiva na nomeação de novos bispos na China é classificado pelos críticos como uma manobra de venda aos interesses do Governo. Na verdade, segundo alegam, a Igreja Católica na China disse que “vai perseverar em seguir um caminho adequado a uma sociedade socialista, sob a liderança do Partido Comunista Chinês”, pois a instituição diz que “ama profundamente a pátria” e “sinceramente endossou” o acordo, esperando que as relações entre a China e o Vaticano melhorem ainda mais.
Por sua vez, o Vaticano considera que o acordo, um avanço após anos de negociações, “não é político, mas pastoral”, e espera que leve à “plena comunhão de todos os católicos chineses”.
Mas as perspetivas do acordo dividiram comunidades de católicos em toda a China, com alguns a temerem uma maior supressão se o Vaticano ceder mais controlo a Pequim e outros a quererem ver a reaproximação e evitar um potencial desacordo.
Porém, o Papa, no voo de regresso da Estónia ao Vaticano, respondeu calmamente, assumindo a total responsabilidade pela sua celebração: “o acordo, eu próprio assinei as cartas de nomeação plenipotenciária”, disse, “eu sou o responsável”. E pediu que se rezasse pelos que, “tendo vivido muitos anos nas costas de clandestinidade”, não entendem hoje o seu alcance. Na verdade, como recordou, em todos os acordos de paz, “ambos os lados perdem algo” e todavia agora “é o Papa quem nomeia” os bispos chineses. E não se trata apenas da nomeação, mas também da análise do perfil dos candidatos, que é feita em diálogo, ficando a nomeação reservada ao Papa.
A este respeito, Francisco elogiou a “paciência” e a “sabedoria” dos negociadores do Vaticano – do cardeal Parolin a Monsenhor Celli, ao padre Rota Graziosi – dizendo ter avaliado todos os “dossiês dos bispos cuja nomeação ainda não tinha o aval pontifício” e lembrando que a mesma se tornou de exclusiva pertinência papal em tempos não tão distantes. E também frisou o apoio que recebeu dos episcopados do mundo, que afirmaram a sua proximidade com o Papa e a oração pelas suas intenções, bem como as manifestações de fiéis e bispo chineses, tanto da Igreja dita Tradicional como da Igreja dita Patriótica. 
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E, a 26 de setembro, a pretexto do Acordo, Francisco endereçou uma eloquente Mensagem aos Católicos Chineses e à Igreja Universal, de que fez menção na audiência geral, na Praça de São Pedro, no mesmo dia, e em cujo topo se lê:
Demos graças ao Senhor porque é eterna a sua misericórdia e reconhecemos que foi Ele quem nos criou e nós pertencemos-Lhe, somos o seu povo e as ovelhas do seu rebanho” (Sl 100/99,3).
Depois, retoma palavras da carta de Bento XVI, acima referida:
“Igreja Católica na China, pequeno rebanho presente e ativo na vastidão de um imenso povo que caminha na história, como ressoam encorajadoras e provocantes para ti as palavras de Jesus: Não temas, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino (Lc 12,32) (…); por isso, brilhe a vossa luz diante dos homens de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai, que está nos Céus” (Mt 5,16).
Segundo o Vatican News, o texto de 11 páginas, dirigido aos Católicos chineses, às Autoridades e a toda a Igreja católica, é marcado por expressões que demonstram a solicitude pastoral para com os fiéis e o povo chinês em geral da parte do Pontífice, que escreve:
Num momento tão significativo para a vida da Igreja e através desta breve Mensagem, antes de mais nada desejo assegurar que vos tenho diariamente presente nas minhas orações e partilhar convosco os sentimentos que moram no meu coração”.
Considerando a existência, no presente, de perplexidades e perspetivas de esperança entre os católicos chineses, a mensagem procura explicar o significado do Acordo e expressa as esperanças do Papa no futuro da Igreja na China. Efetivamente, a grande finalidade é sustentar e promover o anúncio do Evangelho, alcançar e conservar a unidade plena e visível da Comunidade católica na China. Para isso, o Bispo de Roma pede um ato de confiança aos fiéis, superando os momentos inevitáveis de perplexidade, pois é a fé que muda a história.
Se Abraão tivesse pretendido condições sociais e políticas ideais antes de sair da sua terra, talvez nunca tivesse partido. Mas não! (…) Portanto, não foram as mudanças históricas que lhe permitiram confiar em Deus, mas foi a sua fé pura que provocou uma mudança na história.” – Garante o Pontífice.
Para dar este passo, a primeira questão a enfrentar era as nomeações episcopais, que fez surgir o fenómeno da clandestinidade na Igreja presente na China. E Francisco relata que desde o início do seu pontificado recebeu “sinais e testemunhos concretos” de fiéis e bispos que manifestavam “o desejo sincero de viver a sua fé em plena comunhão com a Igreja universal e com o Sucessor de Pedro”. “Por isso, depois de ter examinado atentamente cada uma das situações pessoais e escutado diversos pareceres, refletiu e rezou muito, procurando o verdadeiro bem da Igreja na China. Por fim, decidiu conceder a reconciliação aos restantes sete Bispos “oficiais” ordenados sem Mandato Pontifício e, removidas todas as relativas sanções canónicas, readmiti-los na plena comunhão eclesial.
Francisco convida, pois, todos os católicos chineses a fazerem-se artífices de reconciliação, crendo ser possível iniciar um percurso inédito, que ajudará a curar as feridas do passado, a restabelecer a plena comunhão de todos os católicos chineses e a abrir uma fase de colaboração mais fraterna, para assumir com renovado empenho a missão do anúncio do Evangelho.
Tendo em conta que as experiências dolorosas do passado pertencem ao tesouro espiritual da Igreja na China e de todo o Povo de Deus peregrino na terra, o Papa assegura que “o Senhor, através do crisol das próprias provações, nunca deixa de nos cumular com as suas consolações e preparar-nos para uma alegria maior” na certeza absoluta de “aqueles que semeiam com lágrimas – como afirma o Salmo 126 – vão recolher com alegria”.
O Acordo, apesar de se limitar a alguns aspetos da vida da Igreja, pode contribuir para escrever esta página nova da Igreja Católica na China, pois é a primeira vez que se introduzem elementos estáveis de colaboração entre as Autoridades do Estado e a Sé Apostólica, com a esperança de garantir bons Pastores à comunidade católica. E à Igreja chinesa cabe o papel de procurar bons candidatos para o serviço episcopal, pois, não se trata de nomear funcionários para a gestão das questões religiosas, mas de ter “verdadeiros Pastores segundo o coração de Jesus”.
O Acordo é um instrumento que por si só não resolve todos os problemas existentes. Por isso, no plano pastoral, a comunidade católica na China é chamada a estar unida de modo que “todos os cristãos, sem distinção, realizem gestos de reconciliação e comunhão”. E, no plano civil e político, os católicos chineses são chamados a ser bons cidadãos, que amem plenamente a pátria e sirvam o seu país com empenho e honestidade, sem se eximirem de proferir uma “palavra crítica” quando necessária.
Depois de se dirigir aos Bispos, sacerdotes e pessoas consagradas, propondo a caridade pastoral como a bússola do ministério, pela superação dos contrastes do passado, pela renúncia à afirmação de interesses pessoais e pelo cuidado dos fiéis, o Papa dirige-se aos jovens, por ocasião do Sínodo dos Jovens, pedindo colaboração, entusiasmo, sem medo de levar a todos a alegria do Evangelho. E faz um pedido a todos os fiéis no mundo inteiro:
Temos uma tarefa importante: acompanhar com oração fervorosa e amizade fraterna os nossos irmãos e irmãs na China. Com efeito, devem sentir que, no caminho que se abre diante deles neste momento, não estão sozinhos.
Por fim, dirige-se às autoridades chinesas, convidando ao diálogo e cooperação, reiterando a disponibilidade da Santa Sé para trabalhar com elas na sinceridade pela causa do bem comum:
Renovo o convite a continuarem, com confiança, coragem e clarividência, o diálogo iniciado há algum tempo. Desejo assegurar que a Santa Sé continuará a trabalhar com sinceridade para crescer numa amizade autêntica com o povo chinês.”.
Segundo o Pontífice, há que aprender um novo estilo de colaboração simples e diária entre as Autoridades locais e as Autoridades eclesiásticas”, definindo este diálogo árduo, mas ao mesmo tempo fascinante. Com efeito, a Igreja na China não é alheia à história do país nem pede privilégio algum: a sua finalidade no diálogo com as Autoridade civis é “alcançar uma relação tecida de respeito recíproco e de profundo conhecimento”.
A mensagem conclui com uma oração a Nossa Senhora, Auxílio dos Cristãos, implorando do Senhor o dom da paz.
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Enfim, “Laudemus Deum: oremus pro Ecclesia et pro Pontifice” em prol dum futuro de paz e frutífera cooperação eclesial e política a bem do Povo e da Igreja, que serve a Deus trabalhando com as pessoas e pelas pessoas em dinamismo comunitário e sinodal.
2018.09.27 – Louro de Carvalho

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