Nos
domingos XXII, XXIII, XXIV, XXV e XXVI do Tempo Comum no Ano B, tomam-se para
2.ª leitura da Liturgia da Palavra da Missa dominical consideráveis e
significativos trechos da Epístola de Tiago. Pelo que ela apresenta de polémico
e pertinente, convém uma referência, ainda que modesta, esta peça do Novo
Testamento (NT).
***
Pertinência da epístola e problemas de canonicidade
A Epístola
de Tiago não foi recorrentemente comentada ao longo dos séculos, provavelmente
pela sua índole de exortação moral e sabor judaico: só duas vezes menciona o
nome de Jesus (1,1; 2,1) e propõe
como modelos apenas figuras do Antigo Testamento (AT): Abraão, Job, Raab, Elias. Mas atualmente merece especial
interesse dos estudiosos por apresentar uma exposição viva e espontânea da
mensagem no ambiente das primitivas comunidades cristãs de origem judaica e
revelar uma série de contrastes que despertam a atenção. É uma das epístolas
católicas do Novo Testamento (NT), assim designadas porque foram escritas como cartas circulares, isto é,
para serem lidas em várias igrejas, ao contrário das Epístolas de Paulo,
enviadas a igrejas específicas ou a determinadas personalidades. Entretanto,
fica evidenciado pelo conteúdo que o autor dirige os seus conselhos aos
cristãos judeus recém-convertidos.
Não foi
originalmente confirmada como livro inspirado pela autoridade da
Igreja. No começo do século IV, Eusébio de Cesareia afirmava que ela
ainda é contestada por alguns. Na Reforma Protestante, alguns teólogos,
como Martinho Lutero, argumentavam que a Epístola não deveria integrar o
NT canónico, devido à alegada controvérsia entre a “justificação pelas obras”,
ali contida, e a “justificação pela fé” pregada nas cartas paulinas.
Lutero via aí uma contradição com a doutrina do sola fide (“só pela fé”).
Na África, desconhecem-na Tertuliano e Cipriano; e o catálogo de Mommsen (cerca do ano de 360) não a contém. Não figura no cânone de Muratori, editado por Ludovico
Antonio Muratori, e é muito duvidoso que tenha sido citada por Clemente
Romano ou pelo autor do Pastor de Hermas. Foi, porém, incluída entre
os 27 livros do NT relacionados por Atanásio de Alexandria e,
posteriormente, confirmada por uma série de concílios no século IV. E, nas
igrejas de língua siríaca, foi apenas no decurso do século
IV que a epístola foi introduzida no cânone do Novo Testamento. Mas, mesmo
não tendo canonicidade, não criou problemas no Egito, onde Orígenes
a citou como inspirada. Com o passar dos tempos a maior parte das
denominações do
Cristianismo considerou-a
como uma epístola canónica do NT.
Só se
percebe que é epístola pelo primeiro versículo, pois tem o aspeto de homilia.
Mostra grande afinidade com os livros do AT, mormente os Sapienciais (Pr, Sb e Sir), Proféticos (Is, Jr e Ml) e com os escritos judaicos (Pirqê Abot,
Testamento dos 12 Patriarcas, etc.). Mas está
impregnada do espírito cristão. Nela se contam 29 dependências do Sermão da
Montanha (Mt 5-7), duas alusões ao Batismo (1,21; 2,7) e à lei da liberdade (1,25; 2,12), a relação entre a fé e as obras, problema candente
no cristianismo (2,14-26), a única
referência expressa do NT à Unção dos Enfermos (5,14-15) e a insistência na perfeição (1,4.17.25; 2,22;
3,2), como em Mateus.
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Estilo e
linguagem
O autor
exprime-se num grego de alto nível, só comparável ao da Epístola aos Hebreus. O
texto contém muitos hebraísmos expressos em construções tipicamente hebraicas (1,22; 2,12;
4,11), paralelismo, parataxe, genitivo
de qualidade (1,25; 5,15); e tem, efetivamente
um vocabulário rico (63 palavras não aparecem no resto do NT, 45
encontram-se nos Setenta e 4 estão ausentes do grego helenístico) e utiliza os recursos retóricos da diatribe cínico-estoica,
pequenos diálogos com um interlocutor imaginário (2,14-26), interrogações retóricas (2,4.5b.14.16;
3,11-12; 4,4.5) e
interpelações incisivas (1,16.19; 4,13; 5,1), mais de 60 imperativos, paradoxos e contrastes (1,26;
2,13.26; 3,15; 4,12) e
frequentes exemplos e comparações – o que dá à Epístola grande vivacidade, fazendo
pensar em escritores como Epicteto ou Séneca.
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A questão da
autoria e do tempo da escrita
Havia vários
homens importantes no Novo Testamento que se chamavam Tiago. O autor
identifica-se somente como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1).
É mencionado
Tiago, irmão de Jesus, no Evangelho de Mateus (Mt 13,55) e no de Marcos (Mc 6,3). Esse Tiago tornou-se seguidor do Senhor após a
Ressurreição. Estava entre os discípulos que, no cenáculo, esperavam a vinda
do Espírito Santo e “perseveravam de modo unânime em oração e
súplica” (At 1,14). Segundo o
relato do historiador Flávio Josefo, teria sido martirizado nas mãos dos
judeus no ano 63 d. C, pensando alguns que é este o autor da Epístola. Assim
dum homem nessa posição de responsabilidade e autoridade haver-se-ia de esperar
uma carta pastoral de conselhos práticos concernentes a questões que afetavam a
vida espiritual da Igreja, sendo exatamente isto que é encontrado na Epístola.
E outros supõem que o autor seria o outro apóstolo Tiago, filho de Alfeu (Mt 10,3), o que é visto com hesitação pelos antigos eruditos,
sendo que os modernos ainda o discutem, inclinando-se para a negativa.
Todavia,
esta epístola terá sido escrita pelo apóstolo Tiago, filho de Zebedeu (Mt 10,2; Mc
13,17; Lc 6,14),
que Herodes Agripa I ordenou à morte em 44 d. C. (At 12,2). Contudo, alguns eruditos repudiam esta tese, que é
a comummente seguida.
Também, por
exemplo, os Padres Capuchinhos sustentam que a hipótese de um escrito posterior
pseudoepigráfico não oferece probabilidade, pois um estranho que se quisesse
servir dum nome notável não deixaria de apelar para títulos tão importantes
como “Apóstolo” ou “Irmão do Senhor”, coisa que o autor não faz, limitando-se a
apresentar-se modestamente como “servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (1,1). Assim, a teoria de a Epístola ser um escrito
judaico retocado por cristãos, como alguns defenderam, é destituída de base
sólida, dado que tem um cunho cristão. A Tradição da Igreja é unânime em
atribuí-la a um Apóstolo do Senhor, de nome Tiago; e, se a perfeição do grego
utilizado não condiz com um Tiago palestino, isto poderia dever-se à redação
cuidada dum culto secretário judeo-cristão ligado ao Apóstolo. Mas o autor
também não deve ser Tiago Maior, o Apóstolo irmão de João, pois foi martirizado
muito cedo (em 42 ou 44). E alguns
pensam que tão pouco é o outro Apóstolo do mesmo nome, o filho de Alfeu (vd Mc 3,18
par.), mas um terceiro Tiago, “o irmão
do Senhor”, homem de grande prestígio, ligado aos Apóstolos e chefe da
comunidade de Jerusalém (At 12,17; 15,13-21; 21,18-25; Gl 1,19; 2,9.12), o qual, após a Ressurreição, passou a crer em
Jesus. A identificação habitual destes dois Tiagos (o Menor, “filho
de Alfeu” e “o Irmão do Senhor”) só se
teria dado no correr dos séculos, a partir do que se diz em Gl 1,19: “Não vi nenhum outro Apóstolo, exceto Tiago,
irmão do Senhor”.
Trata-se,
enfim, de uma questão largamente discutida, pois este texto de Gálatas pode
entender-se de outra maneira, traduzindo, em vez de “exceto Tiago”, por “mas
somente Tiago”.
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Quanto ao
tempo da escrita da Epístola, não há evidências, na Epístola ou de fontes
externas, que ajudem a determinar com exatidão a data em que ela foi escrita.
Contudo, alguns estudiosos conservadores argumentam que pode ter sido escrita
em 45 d. C., enquanto outros acreditam que fora escrita em 62 d. C. Há ainda
datas mais recentes baseadas no facto de o autor não fazer qualquer menção do
problema da admissão de gentios na Igreja, posto que é conhecido que Tiago
estava profundamente preocupado com esta questão numa época posterior. Esses
que propõem uma data posterior encaram as doutrinas evangélicas contidas na
Epístola como sendo para uma Igreja que está a dar os primeiros passos na fé, o
que favorece a tese da datação posterior às cartas aos Gálatas e aos Romanos,
em que Paulo tratou de assuntos doutrinários fundamentais. Entretanto, o
aspecto-chave não é o ano exato, mas o período. Se, como indicam os relatos
históricos extrabíblicos, Tiago foi martirizado em 63 d. C., a epístola
claramente foi escrita antes dessa data.
Entretanto,
a maioria dos estudiosos adota a seguinte posição: trata-se do primeiro escrito
cristão, dos fins da década de 40, pois tem um aspeto muito primitivo, como se
vê ao chamar à comunidade cristã “sinagoga” (traduzível por “assembleia” – 2,2), parecendo mesmo ignorar, como se disse, a crise judaizante
e a conversão dos pagãos. Outros pensam que foi escrita por volta do ano 60,
pouco antes da morte de Tiago, irmão do Senhor, que se deu pelo ano 62 ou 63,
pois pensam que Tg 2,14-26 pressupõe as Epístolas de Paulo aos Romanos e aos
Gálatas, que alguns deturpavam para justificarem uma vida fácil.
Não parece
ter base suficientemente sólida classificá-la como um escrito tardio: a
ausência de elementos do primeiro anúncio (kerigma) não serve para estabelecer a data, mas a natureza do
documento, e as semelhanças com Mateus não exigem uma redação posterior.
***
Do universo
dos destinatários
Na aplicação simbólica do autor provavelmente referida aos
judeus que aceitaram Jesus como Messias e Salvador através
da pregação do Evangelho. Tiago dirige a epístola “às doze tribos dispersas
entre as nações” (1,1). No contexto
judaico, o termo “doze tribos” designa a totalidade do Povo de Israel. O uso do termo
“dispersão” pode figurar uma alusão às primeiras perseguições sofridas pela
Igreja que levaram os convertidos a Cristo a espalharem-se por diversas regiões
palestinas e extrapalestinas, em conexão com o segmento “entre as nações”. Além
disso, Tiago, ao usar tal construção, poderia ter em mente todo o “Israel
Espiritual” que abrange os diversos fiéis a Cristo Jesus em diversas etnias,
culturas, e regiões.
Os
destinatários desta Epístola são nominalmente “as doze tribos da Dispersão” (1,1), mas não seriam nem os judeus da emigração fora da
Palestina – os da Diáspora em sentido próprio, havendo quem pense mesmo em
judeus helenizados de tendência essénia – nem os cristãos em geral, dispersos
pelo mundo (a “Diáspora” em sentido figurado). Seriam os
judeo-cristãos da Diáspora, embora sem excluir outros cristãos em contacto com
Tiago.
***
Da estrutura
e do conteúdo
Como escrito
tipicamente didático e moral, a Epístola não obedece a um plano doutrinal
previamente elaborado. Os temas sucedem-se ao correr da pena, sempre com a
preocupação dominante de apelar a que os fiéis vivam o espírito cristão em
todas as circunstâncias de um modo coerente com a fé, em perfeita unidade de
vida, pois o comportamento dos cristãos tem de ser um reflexo da sua fé.
O material
está organizado em cinco capítulos. O primeiro consta de saudação aos
destinatários (1,1), a atitude cristã perante as
provações com relevância para o benefício a tirar delas (1,2-18) e a
necessidade de pôr em prática a Palavra
(1,19-27), de modo que não sejamos apenas ouvintes mas praticantes;
o segundo a borda o tema da caridade para com todos (2,1-13) e o da fé com obras (2,14-26); no terceiro, sobressaem os temas do domínio da língua (3,1-12), com vista à remoção da maledicência, e o da verdadeira
sabedoria (3,13-18); o quarto
trata da origem das discórdias (4,1-12) e da necessidade de evitar a presunção (4,13-17); e o quinto exibe as advertências aos ricos (5,1-6), exortação quanto à vinda do Senhor (7-12), exortação sobre a unção dos enfermos, a
confissão dos pecados e a oração (13-18) e uma advertência final sobre o mérito que alguém
alcança por conseguir a conversão de quem se desvie da
verdade (19-20).
***
Observa-se
frequentemente que esta Epístola é o livro com as mais marcantes caraterísticas
judaicas do NT. Mercê desse aspeto e da ênfase no comportamento piedoso, é
comparada à literatura sapiencial do AT, como se disse. Em razão da
sua preocupação com a justiça social, Tiago é recorrentemente tratado como o
Amós do NT. Nota-se, ainda, profunda similaridade dos
ensinamentos do autor com os ensinamentos de Jesus no Sermão da Montanha
(Tg 5,12;
5,2; 4,11.12; cf Mt 5,34-37; 6,19; 7,1; Lc 6,20-26.37-42); fator que é assim visto por Doremus Almy Hayes:
“Tiago é aquele que faz menos menção acerca
de Jesus do que qualquer outro autor do Novo Testamento, contudo, em
compensação, o seu discurso é o que mais se assemelha ao discurso do Mestre
quando comparado ao discurso dos outros escritores”.
Os cristãos
judeus a quem Tiago se dirige enfrentavam problemas pessoais e outros maiores
nas suas comunidades congregações devido a religiosidade e hipocrisia de alguns.
Nesse contexto, os cristãos, que despendiam absoluta atenção aos ricos (1,9-11;
2,1-13), passavam por grandes provações e
tentações (1,2.9-15) e outros
eram despudoradamente roubados pelos ricos (5,1-6). Os cristãos judaicos, por terem passado muitos anos apegados a religião
local, ainda competiam por cargos de liderança nas comunidades confirmando a sua
imaturidade na fé em Cristo.
A principal
dificuldade da Igreja era o facto de muitos dos cristãos judeus não viverem de
acordo com a profissão de fé em Jesus Cristo (1,22-25) e a maledicência causar problemas sérios (1,26;
4,11-12), a ponto de gerar conflitos e
divisões (3,14). Além disso, existia um problema no
atinente à mentalidade mundana reinante e à necessidade de renovação da mente (1,27).
Entretanto,
Tiago não discute uma série de problemas variados aleatoriamente; todos esses
conflitos têm uma só causa: a imaturidade espiritual. Com efeito,
os cristãos referidos pelo autor, em síntese, não estavam a crescer e a
amadurecer espiritualmente, fator que aponta para o tema central da
epístola: “as caraterísticas de uma vida cristã madura”.
Em várias
ocasiões Tiago usa o termo perfeito, palavra que significa maduro, completo
(1,4.17.25;
2,22; 3,2); ao fazer menção de um “perfeito
varão” (3,2) não se refere ao indivíduo impecável, mas ao
indivíduo maduro e equilibrado. O autor exorta os seus leitores a que se
desenvolvam sobre o alicerce da Salvação perfeita de Cristo e cresçam em
maturidade, enumerando algumas caraterísticas de um cristão maduro: é paciente
em meio à provação (cap. 1), sendo a
paciência, segundo o que se observa na Epístola, o cerne duma vida cristã
próspera e ideal; pratica a verdade na caridade (cap. 2); controla sua língua (cap. 3); é um
pacificador, não um contendedor (cap. 4); e ora em face dos problemas (cap. 5).
E exorta quem
já possui maturidade espiritual a que auxilie o mais fraco na fé a voltar a
prática do verdadeiro evangelho de Cristo e assim tal irmão receberá de Deus a
devida recompensa:
“Meus irmãos, se algum de vós se desviar da
verdade e alguém o trouxer de volta, lembre-se disto: Quem converte um pecador
do erro do seu caminho, salvará a vida dessa pessoa e fará que muitíssimos
pecados sejam perdoados” (Tg 5,19-20).
O escrito de
Tiago é a Escritura de referência (Tg 5,13-15) para a prática da unção dos enfermos:
“Se algum de vós estiver doente, chame os
anciãos da igreja, a fim de que estes orem sobre a pessoa enferma, ungindo-a
com óleo em o Nome do Senhor; e a oração, feita com fé, curará o doente, e o
Senhor o levantará”.
***
Como foi
dito, esta Epístola é o único escrito do NT a referir expressamente o
Sacramento da Unção dos Doentes (5,13-15), que não aparece como um piedoso costume, mas como
um dos Sacramentos instituídos por Cristo. De facto, a unção é feita apenas
pelos presbíteros da Igreja, em nome do Senhor e obtém efeitos sobrenaturais,
como o perdão dos pecados.
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A questão
relacionada com a passagem do cap. 2,14-26
A intensa
vertente de ensino do autor da Epístola a incidir nos resultados práticos da fé
cristã, às vezes, torna-o um aparente oponente de Paulo no que toca à salvação,
visto que este enfatiza que a salvação é resultado exclusivo da fé (Rm 4), pensamento aparentemente contrário ao que Tiago
defende. Tamanha é a aparente contradição entre os dois escritos no assunto
relativo a salvação, que Lutero, pretenso adepto do pensamento de Paulo,
designou a Epístola de Tiago como contrária a fé cristã e a denominou de “epístola de palha”.
Entretanto,
ao analisar-se cautelosamente a Epístola e o pensamento do autor, nota-se a
ocorrência de diferenças linguísticas em função do público-alvo: Paulo escreveu
a gentios e Tiago a cristãos judeus. Neste aspeto, Tiago usa a palavra ‘fé’
referindo-se a um consentimento marcadamente intelectual, ao passo que o uso
paulino do termo ‘fé’ se refere à convicção que transporta consigo o
consentimento da vontade. Quando Paulo menciona ‘obras’, refere-se às obras da
Lei, isto é, as obras do legalismo judaico, que nunca poderiam dar salvação,
enquanto Tiago usa o mesmo termo referindo-se às boas ações que fluem
naturalmente dum coração coerente com a fé professada e cheio de amor por Deus
e pelo próximo.
É evidente
nas Escrituras que os ensinamentos de Paulo e os de Tiago são substancialmente
concordes, porquanto Paulo também escreve:
“Pois, diante de Deus, não são os que
simplesmente ouvem a Lei considerados justos, mas os que obedecem à Lei, estes
serão declarados justos” (Rm 2,13).
Portanto, os
ensinamentos de Tiago retratam a fé como força transformadora, que molda cada
cristão à imagem de Cristo – mudança exteriorizada através do viver santo,
justo, e reto (Tg 1,4). Por conseguinte, não há contradição
com a teologia paulina, mas sim complemento: enquanto Paulo retrata o “primeiro”
estágio da vida cristã, a redenção, Tiago versa o “segundo” estágio, os frutos
da redenção na vida dos remidos.
***
Na aplicação litúrgica dominical do Tempo Comum no Ano
B
No XXII
domingo (Tg
1,17-18.21b-22.27), afirma-se
que toda a dádiva vem do Alto, que é necessário
sermos não apenas ouvintes da Palavra (expressa no conjunto dos livros
santos, que têm o seu ápice no Evangelho), mas seus praticantes
em coerência da fé que professamos, e que a verdadeira religião consiste no
compromisso com os oprimidos, explorados, marginalizados e descartados – expressos
em “os órfãos e as viúvas nas suas tribulações” – (sob pena de a
nossa religiosidade ser vã) e em não nos
deixarmos contaminar pela mundanidade.
No XXIII
domingo (Tg 2,1-5), condena-se contundentemente o nosso comum
procedimento de discriminação de pessoas e grupos, mesmo na assembleia
litúrgica, a imagem sacramental da Igreja – o que significa traição à pessoa de
Jesus Cristo e banalização da celebração litúrgica por idolatria às pessoas e
grupos socialmente qualificados e ignorância e desprezo pelos marginalização – pobres,
doentes, incultos e descartados.
No XXIV
domingo (Tg 2,14-18), ensina-se-nos que, para ter fé, não basta aderir intelectualmente
a um Credo, mas é preciso estar numa atitude de acolhimento à inspiração e
graça divinas. E, em coerência com esta atitude de acolhimento, importa seguir
a exigências da fé que, em comunhão eclesial, professamos e com a qual nos
comprometemos. Se é certo que não são as obras da Lei de Moisés que nos salvam,
mas a fé em Cristo redentor, também é certo que a fé, enformada pelo amor ao próximo
como Cristo fez, ensinou e mandou, exige a prática das boas obras que o Evangelho
prescreve e a que a leitura atenta dos Sinais dos Tempos nos induz aqui e
agora. A relação entre a fé frutificante em boas obras é a roupagem do homem
perfeito.
No XXV
domingo (Tg 3,16 – 4,3), sobressai a ideia-força de que a Sabedoria, tal
como a fé, vem do Alto e, se intensamente pedida e cultivada, constitui um
antídoto poderoso conta a inveja e a rivalidade, que levam à desordem e às más
ações. Por outro lado, a sabedoria enquanto dom do Espírito Santo leva-nos a
saber o que e como rezar. Sem ela, arriscamos a pedir e a não receber porque
pedimos mal, porque pedimos o mal (a satisfação das nossas paixões e a disseminação
dos males e vícios) ou porque pedimos
sendo maus. Ora, Deus chamou-nos por meio do Evangelho para alcançarmos a
glória de Nosso Senhor Jesus Cristo.
No XXVI
domingo (Tg 5,1-4), ressoa a invectiva lucana contra os ricos (cf Lc
6,24-25a). Tiago insurge-se contra o
amontoar de riquezas por duas razões: a religiosa e a social. Por um lado, o Evangelho
de Cristo sublinha o primado do Reino dos Céus, vindo o resto por acréscimo; por
outro, a corrida ao lucro, sobretudo de forma desenfreada e ilícita, é causa de
miséria, opressão, repressão, desigualdades e injustiça social e económica,
podendo gerar cobiças, contendas, guerras e assassinatos. Além disso, o trabalhador
merece o salário condigno, sem o qual a penúria do explorado e faminto se levantará
ao céu contra o devedor injusto e fraudulento.
***
Concluindo
Em suma, a
leitura congruente da Epístola de Tiago, o Amós do NT, poderá vir a ser receita
eficaz contra a injustiça social galopante num mundo de conflito que tende a
abafar a grande generosidade das almas e o labor profícuo das instituições. Pode
ser o melhor antídoto contra a corrupção, que tende a meter-se em todos os
escaninhos da atividade humana. E apetece concluir como Tiago escreve na
Epístola: “Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descendo
do Pai das luzes, no qual não há mudanças nem períodos de sombra. Por sua livre
decisão, nos gerou com a palavra da verdade, para sermos como que as primícias
das suas criaturas” (1,17-18). E como conclui a incentivar ao apostolado junto do
irmão: “Se algum de vós se extravia da verdade e alguém o converte, saiba
que aquele que converte um pecador do seu erro salvará da morte a sua alma e
obterá o perdão de muitos pecados” (5,19-20).
Prosit!
[cf Alves, H. (coordenador), Nova Bíblia dos Capuchinhos, Difusora Bíblica, Lisboa/Fátima: 1997,
pgs 1990-1997; Den Bern, A. Dicionário Enciclopédico
da Bíblia, Vozes, Petrópolis: 1985, pg 1507; Leahy, T. “Epistola de
Santiago”, in Comentario Biblico “San
Jeronimo”, Cristiandad, Madrid: 1972, pgs 291-312; CEP, Missal Popular Dominical, Gráfica de
Coimbra, Coimbra: 1994, pgs 944.956.967-968.981.994; CEP, Missal Quotidiano Dominical e Ferial, Paulus, Lisboa: 2016, pgs
1854.1888.1923.1961.1997; https://pt.wikipedia.org/wiki/Ep%C3%ADstola_de_Tiago]
2018.09.22 – Louro de Carvalho
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