terça-feira, 11 de setembro de 2018

Estranho o que se passa com o crime da mutilação genital feminina


A Mutilação Genital Feminina (MGF) é crime em Portugal desde 2015, com a alteração ao Código Penal (CP), operada pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, acrescentando-lhe o artigo 144.º-A, lei que entrou em vigor a 4 de setembro e que tipifica a MGF como um crime específico de ofensa grave à integridade física.
Diz a mencionada norma:
1 – Quem mutilar genitalmente, total ou parcialmente, pessoa do sexo feminino através de clitoridectomia, de infibulação, de excisão ou de qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino por razões não médicas é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos. 
2 – Os atos preparatórios do crime previsto no número anterior são punidos com pena de prisão até 3 anos.”.
Dantes, a prática enquadrava-se, sem vir explicitada, no crime de ofensa à integridade física grave com a redação que a Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro deu ao art.º 144.º do CP, se fosse considerado que desfigurava “grave e permanentemente” um importante órgão da vítima, ou quando tirava ou afetava, de maneira grave, a sua “capacidade de fruição sexual”. Veja-se o teor do referido artigo 144.º:
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: a) privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente; b) tirar-lhe ou afetar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; c) provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou d) provocar-lhe perigo para a vida – é punido com pena de prisão de dois a dez anos”.
Como é fácil de ver, o crime enquadrava-se no teor da línea b). Agora, porém, trata-se de um crime autónomo e um crime público, não dependendo de queixa da vítima, ou seja, podendo qualquer pessoa alertar o Ministério Público se tiver conhecimento de um caso.
Não obstante, são poucos os casos que chegaram ao Ministério Público (MP) – no final de 2013, contavam-se apenas três – e foram arquivados por prescrição dos factos, ausência de indícios sobre a autoria do crime ou por se ter entendido que não se pode aplicar a lei portuguesa à prática ocorrida fora do território nacional.
Em cumprimento da Convenção de Istambul, a alteração ao CP que lhe introduziu o referido e transcrito art.º 144.º-A, a lei autonomiza o crime e estabelece a moldura penal de 2 a 10 anos de prisão para “quem mutilar genitalmente, total ou parcialmente, pessoa do sexo feminino através de clitoridectomia, de infibulação, de excisão [formas diferentes de MGF] ou de qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino por razões não médicas”; e a moldura penal de até 3 anos de prisão para a prática dos “atos preparatórios do crime”. Podem estar implicados nos atos preparatórios e na prática do próprio crime pais e familiares. E, se a vítima for menor de idade, o procedimento criminal não se extingue, por efeito da prescrição, antes de perfazer 23 anos.
A lei está em conformidade com as disposições da OMS (Organização Mundial de Saúde) em 2008. Segundo a OMS, a MGF ou corte dos genitais femininos ou circuncisão feminina é uma forma de violência baseada no género que inclui todos os procedimentos que implicam a remoção parcial ou total da genitália feminina externa, ou outras lesões aos órgãos genitais femininos por razões não médicas. E abrange os seguintes tipos:
Remoção parcial ou total do clítoris e/ou do prepúcio (clitoridectomia) – Tipo I;
Remoção parcial ou total do clítoris e dos pequenos lábios, com ou sem amputação dos grandes lábios (excisão) – Tipo II;
Estreitamento do orifício vaginal através da criação de uma membrana selante, pelo corte e aposição dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios, com ou sem amputação/excisão do clítoris (infibulação) – Tipo III;
Todas as outras intervenções nefastas sobre os órgãos genitais femininos por razões não médicas, por exemplo: punção/picada, perfuração, incisão/corte, escarificação e cauterização – Tipo IV.
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Um texto do Público, de 9 de setembro pp (a pgs 18 e 19), subscrito por Aline Flor, assinala que, três anos após a tipificação do crime, só um inquérito foi instaurado pelo MP, que, desde 2015, as CPCJ abriram 11 processos e que apenas “265 mulheres estão referenciadas pelo SNS”.
Os casos de MGF não serão muito frequentes ou, pelo menos visíveis, sendo talvez por isso difícil saber o que fazer face a eles. De facto, sabe-se que a MGF é uma realidade no país, realizada por norma em meninas entre os 0 e os 15 anos, nos países de origem das famílias ou em Portugal, e que dela pode podem resultar sequelas graves para a saúde e para o desenvolvimento das mulheres. Estima-se que, entre nós, 6576 mulheres e raparigas, com 15 ou mais anos, tenham sido vítimas desta prática e que 1830 meninas com menos de 15 anos estejam em risco de ser submetidas a ela ou até já o tenham sido.
Como foi dito, o MP só instaurou um inquérito nestes três anos, embora as CPCJ (Comissões de Proteção de Crianças e Jovens) tenham aberto 11 processos: 2 em 2015 (não se sabendo se antes ou depois da predita alteração legislativa), 8 em 2016 e um em 2017. E, em 2017, houve ainda um processo reaberto, segundo os relatórios da CNPDPCJ (Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens). Pelos dados disponíveis, as CPCJ que recebem maior número de sinalizações de MGF encontram-se na área metropolitana de Lisboa. No entanto, não se apuraram que tipo de casos as CPCJ sinalizaram. Pode tratar-se de crianças que já tinham sido excisadas ou de casos de risco em que se atuou junto das famílias para tentar impedir a MGF.
E, segundo a Procuradoria-Geral da República, desde a entrada em vigor da Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, só foi registado um inquérito, em 2016, por factos enquadráveis no crime de MGF, que terminou por arquivamento por procurador do Ministério Público sem ir a julgamento.
De acordo com o Público, nas férias da Páscoa de 2016, uma menina nascida em Portugal e então na idade 5 anos, viajou com a mãe, portuguesa de origem guineense, para ser apresentada às avós no Senegal. Então, o MP abriu um inquérito para acompanhar o processo de promoção e proteção logo antes da viagem pelo facto de o caso ter chegado à CPCJ por a família ter ido à consulta do viajante e o médico haver estranhado alguns comportamentos. Semanas após o regresso, a CPCJ teve notícias da menina: fora ao médico de família, que identificou uma cicatriz suspeita de ser por MGF, pelo que notificou a Comissão. Passados 2 meses, o IML (Instituto de Medicina Legal) relatava a ablação do capuz do clítoris, confirmando a MGF do tipo I a, na classificação da OMS. No fim de 3 meses, o processo foi arquivado por despacho do procurador por não dispor “de elementos concretos que permitissem imputar a um agente concreto o facto que a lei elege como crime”, que terá sido “praticado fora do território nacional por cidadão não português”.
Porém, apesar de considerar que o crime foi, “com elevada probabilidade”, praticado no Senegal, “por pessoa que não foi possível identificar”, o MP inexplicavelmente caraterizou os factos como ofensa à integridade física simples, com base na análise da legislação anterior, em 2013, mesmo reconhecendo ter acontecido na viagem de 2016, já com a nova lei em vigor.
Como em 2013 não havia ainda o art.º 144.º-A e o CP não especificava o tipo de crime da MGF, foi considerado o art.º 143.º (Ofensa à integridade física simples), que estabelece:
1 – Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 – O procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas. 
3 – O tribunal pode dispensar de pena quando: a) tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.”.
Assim, constituindo um crime semipúblico, o despacho de arquivamento resultou da falta de “queixa validamente formulada pelo ofendido ou pelo seu representante legal”.
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Paula Ribeiro Faria, jurista e professora de Direito Penal na Universidade Católica (Porto), discorda da interpretação de se tratar de crime de ofensas corporais simples. A autora de “A Convenção de Istambul e a mutilação genital feminina”, em que avalia as lacunas da lei anterior, entende que, visto os factos se terem passado em 2016, não há “dúvidas nenhumas relativamente ao tipo legal”, pois a ablação do capuz do clítoris é mutilação parcial contemplada no artigo 144.º-A do CP. Porém, mesmo não concordando com o enquadramento dado ao crime, admite que a conclusão poderia não ter sido diferente, frisando:
Houve um problema de prova... O acerto da decisão, quanto a mim, está aí. Não sendo possível provar quando foi ou quem foi, torna-se altamente indeterminado. Em termos do direito penal, isto é muito difícil de contornar.”.
Por sua vez, Elisabete Brasil, da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), admite que existam “questões técnico-jurídicas que possam ter levado à decisão de arquivamento”, mas que parece claro estarem preenchidos os requisitos do crime de MGF, de acordo com a lei vigente.
Para as organizações que estão no terreno, há claras falhas que levaram ao desfecho referido.
Sónia Duarte, coordenadora da APF (Associação para o Planeamento da Família) Lisboa, que acompanhou o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) quando a família da predita criança foi abordada no aeroporto, antes de embarcar, explica:
Na forma como o caso foi acompanhado, houve alguma falta de prontidão na necessidade de proteger uma criança do risco. Por haver alguma falta de atuação, depois também não houve provas necessárias ou suficiente evidência para seguir de determinada maneira.”.
Todavia, admite a possibilidade de haver barreiras por parte dos profissionais, no sentido de levar a cabo uma situação destas. Não sugere uma condenação no respeitante à família, mas entende que deveria “existir um caso que tem de facto uma consequência, com um efeito mediático para mostrar que, em Portugal, este assunto é sério”.
Já Alexandra Alves Luís, da associação Mulheres Sem Fronteiras, obsequiada com o prémio Mudar Agora o Futuro em 2017 considera a autonomização da lei “muito importante também para as comunidades afectadas” e sustenta que o objetivo “não é meter pessoas na prisão”, mas ter a lei a funcionar como “elemento dissuasor” e as pessoas se sentirem “legitimadas para se oporem à prática”. Em contraponto, a coordenadora do Movimento Musqueba – Associação de Promoção e Valorização da Mulher Guineense, a jurista Diana Lopes, embora tenha como bom “haver a autonomização da lei”, lamenta que nada tenha mudado. E vinca:
Se temos a perceção de que acontece em Portugal, mas não há condenações, é percetível que não é feito muito bem o trabalho de casa das entidades de direito... Parece que as entidades que deveriam fazer alguma coisa não fazem muito.”.
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A tudo isto se junta o problema da formação que pode estar na origem da insuficiente abordagem destes casos ou na tímida interpretação da lei ou, ainda, na dificuldade em lidar com práticas ligadas a arreigadas conceções culturais que hoje nos parecem obsoletas. Quem não se recorda da circuncisão masculina como marca de pertença a um povo eleito? E quem não atina no facto de em alguns povos a menina ser pertença do pai ou de quem fizer as suas vezes, que a passa, na idade núbil, para propriedade do marido. O adultério era crime, não propriamente por ser um pecado da carne, mas por atentar contra os direitos do marido, não se podendo cobiçar a mulher do próximo como não se lhe podia cobiçar o boi, o jumento ou algum dos seus bens.   
Ora, a formação nesta área tem de atingir o CEJ (Centro de Estudos Judiciários), as CPCJ, os magistrados em exercício, as polícias de investigação criminal e os profissionais de saúde.
Dizem-nos que já existe a formação sobre MGF no CEJ, incluída nos módulos sobre violência doméstica e de género, mas que falta a formação contínua dos magistrados nesta área; e que o pessoal das CPCJ tem participado em formações, sendo a Comissão Nacional uma das entidades que tem o manual do tratamento de casos de MGF atualizado com o enquadramento legal de 2015. Todavia, para a CIG (Cidadania e Igualdade de Género), os manuais das CPCJ e dos órgãos de polícia criminal necessitam de revisão e atualização, prevista em conformidade com o novo plano de ação de combate à violência contra as mulheres, para dezembro de 2019.
Por seu turno, as ONG consideram que é preciso ir mais fundo, pois “isto não pode depender da sensibilidade da procuradora ou do procurador”, como assegura Alice Frade, diretora executiva da P&D Factor – População e Desenvolvimento, que vem trabalhando nestas temáticas em parceria com a Guiné-Bissau. O combate à MGF passa sobretudo pelo contacto com as comunidades, onde tem de se intervir na prevenção, sensibilizando as lideranças e a população. E é preciso atuar a nível da saúde para que os profissionais estejam preparados para reconhecer casos de MGF e prestar cuidados de saúde adequados às mulheres que foram submetidas àquela prática. De acordo com o novo plano de ação de combate à violência contra as mulheres, a atualização da Orientação Técnica da DGS (Direcção-Geral de Saúde) sobre MGF destinada a profissionais de saúde, elaborada em 2012, deverá ficar concluída até dezembro de 2020. Com efeito, dos mais de 6 milhares de mulheres e raparigas sujeitas à MGF ou em risco de o serem, apenas 265 situações de MGF foram sinalizadas desde que a PDS (Plataforma de Dados da Saúde) passou a integrar um campo específico de recolha de informação nesta área (entre abril de 2014 e a 1.ª quinzena de junho deste ano). Nos últimos balanços, foram identificadas 99 mulheres entre 2014 e 2015, e 80 em 2016, sendo que muitas destas mulheres continuam a precisar de cuidados especiais de saúde em termos físicos e psicológicos.
Porém, a formação disponibilizada aos profissionais de saúde ainda não chega a todos. No relatório de 2015, a DGS reconhece que o facto de todos os registos terem sido feitos por profissionais de saúde de Lisboa e Vale do Tejo é explicável “pela maior concentração de mulheres migrantes oriundas de países onde se pratica a MGF” e “pela realização de diversas ações de formação e de sensibilização destinadas a profissionais nessa mesma região”.
Para combater esta lacuna a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade de Género está a preparar um protocolo a anunciar em breve para a área da saúde. A Secretária de Estado Rosa Monteiro disse que gostaria de desenvolver “um trabalho sistemático” que abranja profissionais não apenas nos centros de saúde, mas também equipas de saúde escolar e uma concertação com o programa Escolhas, com o envolvimento do ACM (Alto Comissariado para as Migrações).
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Enfim, não basta a Lei. É preciso interpretá-la corretamente e aplicá-la. Mas, tratando-se de uma matéria sensível que, dadas as implicações civilizacionais e culturais, implica mudança atitudinal e comportamental, há muito que trabalhar junto das populações-alvo e suas lideranças. Para isso requer-se formação, disponibilidade, trabalho e capacidade de tolerância e de encaixe. Mudar pessoas não é o mesmo que deslocar objetos. Há generosidades e resistências… É a vida, mas os direitos da mulher e da criança têm de ser garantidos pela comunidade!
2018.09.11 – Louro de Carvalho

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