A Mutilação Genital Feminina (MGF) é crime em Portugal desde 2015,
com a alteração ao Código Penal (CP), operada pela Lei n.º 83/2015,
de 5 de agosto, acrescentando-lhe o artigo 144.º-A, lei que entrou em vigor a 4
de setembro e que tipifica a MGF como um crime específico de ofensa grave à
integridade física.
Diz a mencionada norma:
“1 – Quem mutilar genitalmente, total ou parcialmente, pessoa do sexo
feminino através de clitoridectomia, de infibulação, de excisão ou de qualquer
outra prática lesiva do aparelho genital feminino por razões não médicas é
punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
2 – Os atos preparatórios do crime previsto no número
anterior são punidos com pena de prisão até 3 anos.”.
Dantes, a prática enquadrava-se,
sem vir explicitada, no crime de ofensa à integridade física grave com a
redação que a Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro deu ao art.º 144.º do CP, se
fosse considerado que desfigurava “grave e permanentemente” um importante órgão
da vítima, ou quando tirava ou afetava, de maneira grave, a sua “capacidade de
fruição sexual”. Veja-se o teor do referido artigo 144.º:
“Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de
forma a: a) privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo
grave e permanentemente; b) tirar-lhe ou afetar-lhe, de maneira grave, a
capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de
fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a
linguagem; c) provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente,
ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou d) provocar-lhe perigo para a
vida – é punido com pena de prisão de dois a dez anos”.
Como é fácil de ver, o crime
enquadrava-se no teor da línea b). Agora, porém, trata-se de um crime autónomo
e um crime público, não dependendo de queixa da vítima, ou seja, podendo qualquer
pessoa alertar o Ministério Público se tiver conhecimento de um caso.
Não obstante, são poucos os casos
que chegaram ao Ministério Público (MP) – no final de 2013, contavam-se
apenas três – e foram arquivados por prescrição dos factos, ausência de
indícios sobre a autoria do crime ou por se ter entendido que não se pode
aplicar a lei portuguesa à prática ocorrida fora do território nacional.
Em cumprimento da Convenção de Istambul, a alteração ao CP
que lhe introduziu o referido e transcrito art.º 144.º-A, a lei autonomiza o crime
e estabelece a moldura penal de 2 a 10 anos de prisão para “quem mutilar
genitalmente, total ou parcialmente, pessoa do sexo feminino através de
clitoridectomia, de infibulação, de excisão [formas diferentes
de MGF] ou de
qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino por razões não
médicas”; e a moldura penal de até 3 anos de prisão para a prática dos “atos
preparatórios do crime”. Podem estar implicados nos atos preparatórios e na
prática do próprio crime pais e familiares. E, se a vítima for menor de idade,
o procedimento criminal não se extingue, por efeito da prescrição, antes de perfazer
23 anos.
A lei está em conformidade com as
disposições da OMS (Organização Mundial de Saúde) em 2008. Segundo a OMS, a MGF ou corte dos
genitais femininos ou circuncisão
feminina é uma forma de violência baseada no género que inclui todos os
procedimentos que implicam a remoção parcial ou total da genitália feminina
externa, ou outras lesões aos órgãos genitais femininos por razões não médicas.
E abrange os seguintes tipos:
Remoção
parcial ou total do clítoris e/ou do prepúcio (clitoridectomia) – Tipo I;
Remoção
parcial ou total do clítoris e dos pequenos lábios, com ou sem amputação dos
grandes lábios (excisão) – Tipo II;
Estreitamento
do orifício vaginal através da criação de uma membrana selante, pelo corte e
aposição dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios, com ou sem
amputação/excisão do clítoris (infibulação) – Tipo III;
Todas as
outras intervenções nefastas sobre os órgãos genitais femininos por razões não
médicas, por exemplo: punção/picada, perfuração, incisão/corte, escarificação e
cauterização – Tipo IV.
***
Um texto do Público, de 9 de setembro pp (a pgs 18 e 19), subscrito por Aline Flor,
assinala que, três anos após a tipificação do crime, só um inquérito foi
instaurado pelo MP, que, desde 2015, as CPCJ abriram 11 processos e que apenas
“265 mulheres estão referenciadas pelo SNS”.
Os casos de MGF não serão muito
frequentes ou, pelo menos visíveis, sendo talvez por isso difícil saber o que
fazer face a eles. De facto, sabe-se que a MGF é uma realidade no país, realizada
por norma em meninas entre os 0 e os 15 anos, nos países de origem
das famílias ou em Portugal, e que dela pode podem resultar sequelas graves
para a saúde e para o desenvolvimento das mulheres. Estima-se que, entre nós, 6576
mulheres e raparigas, com 15 ou mais anos, tenham sido vítimas desta prática e
que 1830 meninas com menos de 15 anos estejam em risco de ser submetidas a ela
ou até já o tenham sido.
Como foi dito, o MP só instaurou um
inquérito nestes três anos, embora as CPCJ (Comissões de Proteção
de Crianças e Jovens)
tenham aberto 11 processos: 2 em 2015 (não se sabendo se antes
ou depois da predita alteração legislativa),
8 em 2016 e um em 2017. E, em 2017, houve ainda um processo reaberto, segundo
os relatórios da CNPDPCJ (Comissão Nacional de Promoção dos
Direitos e Proteção das Crianças e Jovens).
Pelos dados disponíveis, as CPCJ que recebem maior número de sinalizações de MGF
encontram-se na área metropolitana de Lisboa. No entanto, não se apuraram que
tipo de casos as CPCJ sinalizaram. Pode tratar-se de crianças que já tinham
sido excisadas ou de casos de risco em que se atuou junto das famílias para
tentar impedir a MGF.
E, segundo a Procuradoria-Geral
da República, desde a entrada em vigor da Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, só
foi registado um inquérito, em 2016, por factos enquadráveis no crime de MGF,
que terminou por arquivamento por procurador do Ministério Público sem ir a
julgamento.
De acordo com o Público, nas férias da Páscoa de 2016, uma
menina nascida em Portugal e então na idade 5 anos, viajou com a mãe, portuguesa
de origem guineense, para ser apresentada às avós no Senegal. Então, o MP abriu
um inquérito para acompanhar o processo de promoção e proteção logo antes da
viagem pelo facto de o caso ter chegado à CPCJ por a família ter ido à consulta
do viajante e o médico haver estranhado alguns comportamentos. Semanas após o regresso,
a CPCJ teve notícias da menina: fora ao médico de família, que identificou uma
cicatriz suspeita de ser por MGF, pelo que notificou a Comissão. Passados 2
meses, o IML (Instituto de Medicina Legal) relatava a ablação do capuz do
clítoris, confirmando a MGF do tipo I a, na classificação da OMS. No fim de 3
meses, o processo foi arquivado por despacho do procurador por não dispor “de elementos concretos que permitissem
imputar a um agente concreto o facto que a lei elege como crime”, que terá
sido “praticado fora do território
nacional por cidadão não português”.
Porém, apesar de considerar que o
crime foi, “com elevada probabilidade”, praticado no Senegal, “por pessoa que
não foi possível identificar”, o MP inexplicavelmente caraterizou os factos como
ofensa à integridade física simples, com base na análise da legislação
anterior, em 2013, mesmo reconhecendo ter acontecido na viagem de 2016, já com
a nova lei em vigor.
Como em 2013 não havia ainda o
art.º 144.º-A e o CP não especificava o tipo de crime da MGF, foi considerado o
art.º 143.º (Ofensa à integridade física simples), que
estabelece:
“1 – Quem ofender o corpo ou a saúde de
outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 – O procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a
ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no
exercício das suas funções ou por causa delas.
3 – O tribunal pode dispensar de pena quando: a) tiver
havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu
primeiro; ou b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.”.
Assim, constituindo um crime
semipúblico, o despacho de arquivamento resultou da falta de “queixa validamente formulada pelo ofendido
ou pelo seu representante legal”.
***
Paula Ribeiro Faria, jurista e
professora de Direito Penal na Universidade Católica (Porto), discorda da interpretação de se
tratar de crime de ofensas corporais simples. A autora de “A Convenção de Istambul e a mutilação genital feminina”, em que
avalia as lacunas da lei anterior, entende que, visto os factos se terem passado
em 2016, não há “dúvidas nenhumas
relativamente ao tipo legal”, pois a ablação do capuz do clítoris é mutilação
parcial contemplada no artigo 144.º-A do CP. Porém, mesmo não concordando com o
enquadramento dado ao crime, admite que a conclusão poderia não ter sido
diferente, frisando:
“Houve um
problema de prova... O acerto da decisão, quanto a mim, está aí. Não sendo
possível provar quando foi ou quem foi, torna-se altamente indeterminado. Em
termos do direito penal, isto é muito difícil de contornar.”.
Por sua vez, Elisabete Brasil, da
UMAR (União
de Mulheres Alternativa e Resposta),
admite que existam “questões técnico-jurídicas que possam ter levado à decisão
de arquivamento”, mas que parece claro estarem preenchidos os requisitos do
crime de MGF, de acordo com a lei vigente.
Para as organizações que estão no
terreno, há claras falhas que levaram ao desfecho referido.
Sónia Duarte, coordenadora da APF
(Associação
para o Planeamento da Família)
Lisboa, que acompanhou o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) quando a família da predita criança
foi abordada no aeroporto, antes de embarcar, explica:
“Na forma
como o caso foi acompanhado, houve alguma falta de prontidão na necessidade de
proteger uma criança do risco. Por haver alguma falta de atuação, depois também
não houve provas necessárias ou suficiente evidência para seguir de determinada
maneira.”.
Todavia, admite a possibilidade
de haver barreiras por parte dos profissionais, no sentido de levar a cabo uma situação
destas. Não sugere uma condenação no respeitante à família, mas entende que
deveria “existir um caso que tem de facto
uma consequência, com um efeito mediático para mostrar que, em Portugal, este
assunto é sério”.
Já Alexandra Alves Luís, da
associação Mulheres Sem Fronteiras,
obsequiada com o prémio Mudar Agora o
Futuro em 2017 considera a autonomização da lei “muito importante também
para as comunidades afectadas” e sustenta que o objetivo “não é meter pessoas
na prisão”, mas ter a lei a funcionar como “elemento dissuasor” e as pessoas se
sentirem “legitimadas para se oporem à prática”. Em contraponto, a coordenadora
do Movimento Musqueba – Associação de Promoção e Valorização da Mulher Guineense,
a jurista Diana Lopes, embora tenha como bom “haver a autonomização da lei”, lamenta
que nada tenha mudado. E vinca:
“Se temos a
perceção de que acontece em Portugal, mas não há condenações, é percetível que
não é feito muito bem o trabalho de casa das entidades de direito... Parece que
as entidades que deveriam fazer alguma coisa não fazem muito.”.
***
A tudo isto se junta o problema
da formação que pode estar na origem da insuficiente abordagem destes casos ou
na tímida interpretação da lei ou, ainda, na dificuldade em lidar com práticas
ligadas a arreigadas conceções culturais que hoje nos parecem obsoletas. Quem não
se recorda da circuncisão masculina como marca de pertença a um povo eleito? E quem
não atina no facto de em alguns povos a menina ser pertença do pai ou de quem
fizer as suas vezes, que a passa, na idade núbil, para propriedade do marido. O
adultério era crime, não propriamente por ser um pecado da carne, mas por
atentar contra os direitos do marido, não se podendo cobiçar a mulher do próximo
como não se lhe podia cobiçar o boi, o jumento ou algum dos seus bens.
Ora, a formação nesta área tem de
atingir o CEJ (Centro de Estudos Judiciários), as CPCJ, os magistrados em
exercício, as polícias de investigação criminal e os profissionais de saúde.
Dizem-nos que já existe a
formação sobre MGF no CEJ, incluída nos módulos sobre violência doméstica e de
género, mas que falta a formação contínua dos magistrados nesta área; e que o pessoal
das CPCJ tem participado em formações, sendo a Comissão Nacional uma das
entidades que tem o manual do tratamento de casos de MGF atualizado com o enquadramento
legal de 2015. Todavia, para a CIG (Cidadania e Igualdade
de Género), os
manuais das CPCJ e dos órgãos de polícia criminal necessitam de revisão e atualização,
prevista em conformidade com o novo plano de ação de combate à violência contra
as mulheres, para dezembro de 2019.
Por seu turno, as ONG consideram
que é preciso ir mais fundo, pois “isto não pode depender da sensibilidade da
procuradora ou do procurador”, como assegura Alice Frade, diretora executiva da
P&D Factor – População e Desenvolvimento, que vem trabalhando nestas
temáticas em parceria com a Guiné-Bissau. O combate à MGF passa sobretudo pelo
contacto com as comunidades, onde tem de se intervir na prevenção, sensibilizando
as lideranças e a população. E é preciso atuar a nível da saúde para que os
profissionais estejam preparados para reconhecer casos de MGF e prestar
cuidados de saúde adequados às mulheres que foram submetidas àquela prática. De
acordo com o novo plano de ação de combate à violência contra as mulheres, a
atualização da Orientação Técnica da DGS (Direcção-Geral de Saúde) sobre MGF destinada a
profissionais de saúde, elaborada em 2012, deverá ficar concluída até dezembro
de 2020. Com efeito, dos mais de 6 milhares de mulheres e raparigas sujeitas à
MGF ou em risco de o serem, apenas 265 situações de MGF foram sinalizadas desde
que a PDS (Plataforma de Dados da Saúde) passou a integrar um campo
específico de recolha de informação nesta área (entre abril de
2014 e a 1.ª quinzena de junho deste ano).
Nos últimos balanços, foram identificadas 99 mulheres entre 2014 e 2015, e 80
em 2016, sendo que muitas destas mulheres continuam a precisar de cuidados
especiais de saúde em termos físicos e psicológicos.
Porém, a formação disponibilizada
aos profissionais de saúde ainda não chega a todos. No relatório de 2015, a DGS
reconhece que o facto de todos os registos terem sido feitos por profissionais de
saúde de Lisboa e Vale do Tejo é explicável “pela maior concentração de
mulheres migrantes oriundas de países onde se pratica a MGF” e “pela realização
de diversas ações de formação e de sensibilização destinadas a profissionais
nessa mesma região”.
Para combater esta lacuna a Secretaria
de Estado para a Cidadania e a Igualdade de Género está a preparar um protocolo
a anunciar em breve para a área da saúde. A Secretária de Estado Rosa Monteiro disse
que gostaria de desenvolver “um trabalho sistemático” que abranja profissionais
não apenas nos centros de saúde, mas também equipas de saúde escolar e uma
concertação com o programa Escolhas,
com o envolvimento do ACM (Alto Comissariado para as Migrações).
***
Enfim, não basta a Lei. É preciso
interpretá-la corretamente e aplicá-la. Mas, tratando-se de uma matéria sensível
que, dadas as implicações civilizacionais e culturais, implica mudança
atitudinal e comportamental, há muito que trabalhar junto das populações-alvo e
suas lideranças. Para isso requer-se formação, disponibilidade, trabalho e capacidade
de tolerância e de encaixe. Mudar pessoas não é o mesmo que deslocar objetos.
Há generosidades e resistências… É a vida, mas os direitos da mulher e da
criança têm de ser garantidos pela comunidade!
2018.09.11 – Louro de Carvalho
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