sábado, 31 de janeiro de 2015

São João Bosco, pai e mestre da juventude

João Melchior Bosco nasceu em 16 de agosto de 1815, em Becchi, perto de Castelnuovo, na diocese de Turim, e faleceu em 31 de janeiro de 1888, na cidade de Turim. Nascido do segundo casamento de Francesco Bosco com Margherita Occhiena, tinha uma família ainda composta pelo irmão do primeiro casamento do pai, António, e do seu irmão germano mais velho, José.
Sofreu muitas privações nos primeiros anos. Órfão de pai, quando tinha apenas dois anos de idade, teve uma infância marcada pela pobreza da família, num contexto da difícil situação económica porque passava o norte da Itália. Fez a primeira comunhão em 1826 e, em 1828, começou a estudar, passando aos dezasseis anos a frequentar a escola de Castelnuovo D'Asti. Em 30 de outubro de 1835, quando completou vinte anos, ingressou no Seminário de Chieri, vindo a ser ordenado sacerdote em 5 de junho de 1841, pelo bispo Luigi Fransoni, após o que se transferiu para Turim.
Foi em Turim que sentiu que Deus o chamava a consagrar a sua vida aos jovens pobres e abandonados, a quem devia ajudar a tornarem-se cidadãos honestos e bons cristãos, por meio da promoção humana e da educação da fé. A revolução industrial na Itália levou para as grandes cidades um grande contingente de jovens sem família. Desde 1809, em Milão, a igreja católica mantinha um tipo de obra assistencial para jovens denominada oratório, que se ocupava do seu lazer, educação e catequese. 
O primeiro oratório de Turim foi fundado em 1841, pelo padre Giovanni Cochi. Influenciado por essa iniciativa, Bosco funda, em 8 de dezembro de 1841, um oratório em Turim, quando atende e ensina o jovem Bartolomeo Garelli na sacristia da Igreja de São Francisco de Assis. A 8 de dezembro de 1844, o oratório passa a denominar-se Oratório de São Francisco de Sales, constituindo o embrião da primeira casa Salesiana, e a 12 de abril de 1846 passou a ter sua sede definitiva numa propriedade de Francisco Pinardi, no bairro turinense de Valdocco. Tratava-se de jovens que, arrancados da zona rural pelas dificuldades aí existentes, buscavam trabalho na cidade grande.

A missão de Dom Bosco em favor da juventude pobre, para ser duradoura, precisava de pessoas decididas a trabalhar com ele e exigia instituições que garantissem a continuidade do empreendimento. Sob a ação do Espírito Santo – que lhe deu especial sensibilidade para captar, mediante várias experiências, o abandono e os perigos em que se achavam os jovens de seu tempo – o grande apóstolo compreendeu logo que essa pesada tarefa só poderia apoiar-se em homens que se consagrassem inteiramente à obra. E o mesmo Espírito fez desabrochar no coração dos primeiros discípulos o chamamento à consagração total na vida religiosa.

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Politicamente, o cenário do Piemonte e de toda a Itália era de caráter revolucionário, com inúmeros conflitos entre um Estado em formação e a Igreja Católica, durante todo o período do Risorgimento. Os biógrafos de Dom Bosco anotam a sua grande amizade com políticos como Camilo de Cavour e Humberto Ratazzi, e outras pessoas influentes como a Marquesa Barolo, bem como a amizade direta com os papas Pio IX e Leão XIII. Localmente, o arcebispo de Turim que ordenou o padre João Bosco, esteve no exílio e preso, tendo recusado os últimos sacramentos ao ministro Santa Rosa, pelo que foi repreendido pelo Rei Vítor Emanuel. O seu sucessor, Dom Lorenzo Gastaldi, teve uma longa disputa com João Bosco, que resultou num processo canónico. A paz entre ambos só se fez por decisão de Leão XIII. As relações com políticos italianos e com papas, de forma muito direta, teriam dado a João Bosco uma posição política que parecia, sobretudo ao bispo Gastaldi, ameaçar a ordem hierárquica eclesiástica.
Porém, João Bosco, que fora camponês, estudante e aprendiz de vários ofícios, era agora um padre e educador, pelo que pensava sobretudo em organizar uma associação religiosa. Só que o contexto político da unificação da Itália, marcado pela disputa pela separação entre Estado e Igreja, não estimulava a criação de uma ordem religiosa nos moldes tradicionais. Por isso, o ministro Umberto Ratazzi sugeriu-lhe a organização de uma sociedade de cidadãos que se dedicasse às atividades educativas realizadas pelos oratórios em moldes civis. Bosco propõe, em 1854, a Sociedade de São Francisco de Sales, que seria vista como uma associação de cidadãos aos olhos do Estado e como uma associação religiosa perante a Igreja. Após consulta ao Papa Pio IX, Bosco recebeu dos seus companheiros padres, seminaristas e leigos a adesão à Sociedade de São Francisco de Sales (a congregação salesiana) em 18 de dezembro de 1859 e, em 14 de março de 1862, os primeiros salesianos (padres e irmãos fraternalmente iguais) fizeram os votos religiosos de pobreza voluntária, obediência inteira e castidade perpétua. A partir de 1863, além dos oratórios, os salesianos passam a dedicar-se também aos colégios e escolas católicas para meninos e jovens. Com a separação entre Estado e Igreja, passou a haver forte demanda por escolas católicas, fazendo com que esse tipo de instituições se disseminasse rapidamente. As regras da Sociedade, chamadas Constituições, foram aprovadas pela autoridade da Igreja em 1874. À morte do fundador, em 1888, a Sociedade contava com 768 membros, com 26 casas fundadas nas Américas e 38 na Europa.
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Por volta de 1872, na convicção de que era vontade de Deus que se ocupasse também das meninas, fundou em Mornese (Itália), com Maria Domingas Mazzarello, o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, o das irmãs salesianas.
Dom Bosco tinha ainda a certeza de que o maior número possível de cristãos devia unir forças para o bem do próximo, sobretudo dos jovens pobres. Percebeu então que a Congregação Salesiana devia ser como que o fermento animador de um vasto movimento de fraternidade em que homens e mulheres participassem da sua missão e espírito, cada um segundo o próprio estado de vida. Nasceu assim a Associação dos Cooperadores Salesianos, terceira instituição que se valeria do carisma de Dom Bosco. É um movimento com 25.000 leigos que, com espírito salesiano, se comprometem nas atividades pastorais das comunidades eclesiais locais.
Por seu turno, as Voluntárias de Dom Bosco são uma instituição secular, criada em consonância com a constituição Provida Mater Ecclesia, de Pio XII, em 1947. Compõe-se de mulheres que professam os votos religiosos (pobreza voluntária, obediência inteira e castidade perpétua), mas permanecem com seus familiares ou a sós e, a par de uma atividade prisional, se entregam às mais diversas atividades pastorais, conforme as necessidades das igrejas locais. 
Mas o mestre da juventude dirigiu também a sua atenção para os adultos da classe popular, especialmente dos camponeses, nos quais ele via uma classe altamente desfavorecida, sem meios de se promover humana e cristãmente. E o seu amor ao próximo estendeu-se aos povos que viviam nas periferias, em regiões pagãs, aos quais, mais tarde, enviou os salesianos como missionários. Escreveu o mestre ainda vários opúsculos de cultura religiosa.
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No atinente à educação, deve referir-se que “a educação é permanente”. Educa-se ao longo da vida toda e por meio da própria vida, de tal modo que o movimento dos ex-alunos visa manter os jovens unidos aos seus educadores pela amizade, como Dom Bosco idealizara. Por outro lado, o termo “família” é continuamente empregado na tradição salesiana para indicar a unidade de ideal e os laços de fraternidade que se estabelecem entre os salesianos, as salesianas, os cooperadores e as voluntárias. Pertencem também à Família Salesiana, em sentido amplo, os alunos, os ex-alunos, bem como outras pessoas que, de diversos modos, se interessam pela obra salesiana. O órgão oficial da Família Salesiana é o Boletim Salesiano, publicação bimestral, composto e impresso nas Escolas Profissionais Salesianas (SP).
Dom Bosco deixou como herança aos salesianos o sistema preventivo, um método educativo que, afastando a repressão pelos castigos corporais, se baseia inteiramente na razão, na religião e na bondade. É o método do Evangelho vivido na alegria e no serviço. Os educadores devem estar sempre fraternalmente presentes no meio dos jovens, em seus grupos e atividades.
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Mas a obra mais caraterística de Dom Bosco é o Oratório Festivo, que funciona onde há comunidades salesianas. Os oratórios festivos, renovados segundo as exigências de tempo e de lugar, têm o escopo de entreter adolescentes e jovens particularmente aos domingos e feriados através do desporto, da música, do teatro, do cinema, das excursões e de vários outros divertimentos, proporcionando-lhes também a ocasião de participarem em reuniões catequéticas e celebrações eucarísticas. Propiciam-lhes, ao mesmo tempo, uma significativa experiência de vida comunitária.
A fim de concretizarem hoje a sua missão, os salesianos desenvolvem a sua atividade em torno de três eixos fundamentais: a opção pelos jovens e pelos pobres; a atividade catequética; e a pastoral missionária.
A opção pelos pobres concretiza-se no trabalho educativo pastoral em benefício dos jovens mais pobres e das classes populares, sobretudo no ensino profissional. A atividade catequética insere-se em toda a atividade educativa nas escolas, paróquias, escolas, infantários, estabelecimentos de educação pré-escolar, oratórios, casas de acolhimento de meninos de rua... Já a pastoral missionária específica Ad gentes desenvolve-se nas Missões em vários países da Ásia, África e América.
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Tendo participado no dinamismo do período do Risorgimento e entabulado relação com os seus atores principais, Dom Bosco acabou por participar indiretamente na resolução do último aspeto que aquele movimento deixou em aberto para o século XX: a Questão Romana. O momento da beatificação de Dom Bosco, em 1929, coincide com a Concordata de São João de Latrão, celebrada entre Benito Mussolini e o Cardeal Pietro Gasparri, com a anuência e aprovação superior do Papa Pio XI. A coincidência configura em si uma expressão de nacionalismo italiano, com Mussolini, que estudara um ano no colégio salesiano de Faenza, a elogiar Dom Bosco, e com Pio XI, a pôr fim ao poder temporal da Igreja, permitindo a unificação da Itália e o encontro em Mussolini de um “homem da Providência”. Já na canonização de Dom Bosco, em 1934, o contexto era totalmente outro. Descontente com os fatídicos rumos totalitários do fascismo e do nazismo, Pio XI escrevia duas encíclicas, uma em alemão e outra em italiano, condenando ambas as ideologias.
O uso político da popularidade e italianidade de Dom Bosco e dos salesianos é recorrente na República Italiana. Em 2005, o então primeiro-ministro Silvio Berlusconi, de visita ao Instituto Salesiano Santo Ambrósio, em Milão, de que fora aluno, recordou que aprendera com Dom Bosco que “é preciso estar de acordo com todos”.
A memória litúrgica de São João Bosco passa a 31 de janeiro, com missa e ofício próprios. Foi São João Paulo II que o aclamou com toda a propriedade “Pai e Mestre da Juventude”.

A sorte das empresas privatizadas e não só

Estávamos habituados a perceber que o peso do Estado na economia se estabelecesse com base em posicionamento ideológico ou numa perspetiva pragmática.
Assim, quando um país confia a direção política a um governo posicionado à esquerda, é expectável que a tendência seja a das nacionalizações para combate ou à fúria competitiva ou aos grandes monopólios que o sistema capitalista constrói na tessitura das relações económicas. Nesta perspetiva estatizante, intenta-se que a principal função do Estado seja a distribuição igualitária da riqueza, pelo que ao poder político compete a propriedade dos principais meios de produção. Por outro lado, tudo o que seja considerado bem público – como a saúde, a educação, a segurança social, a banca, os seguros e a comunicação social – ficam sob a alçada direta ou indireta do Estado. Quando muito, os poderes aceitam alguma propriedade no quadro da economia como estímulo à realização dos indivíduos ou dos grupos enquanto peças válidas da máquina global, como toleram e reconhecem a atividade privada (particular e cooperativa) no domínio dos bens não essencialmente económicos como supletiva da ação do poder político. Por conseguinte, muitas das empresas e serviços privados são objeto da nacionalização direta ou indireta. Cresce o setor empresarial do Estado e o poder controlador do Estado.
O contrário acontece quando um país entrega a sua direção a um setor liberal. O Estado deixa a economia à iniciativa e ao sabor das entidades privadas, numa ótica da livre concorrência, tirando partido da noção libertária das liberdades política, social e económica. Nesta perspetiva, bens como saúde, educação, segurança social, banca, seguros e comunicação social assumem uma vertente económica e, por consequência, ficam sob a alçada dos privados, assumindo o Estado uma posição residual para a prestação dos serviços, consignados na declaração universal dos direitos do homem (e diplomas com força equiparada) a quem os privados não os queiram prestar. Nesta ótica, empresas e serviços do setor público passam com facilidade para o setor privado, no pressuposto da melhoria da gestão e da melhor rentabilidade ou aduzindo a necessidade de reestruturação. Pode eventualmente suceder que haja nacionalização de alguma empresa, se isso se tornar necessário para salvar o sistema, ou colocar sob a tutela direta do Estado empresas e serviços, se o serviço de guerra ou a situação de calamidade pública o exigir ou recomendar.
Se no primeiro caso, se argumenta com o interesse público, o combate à especulação e o rigor na administração, vertido este nos deveres de isenção, imparcialidade e transparência, entre outros, no segundo, sói aduzir-se a rentabilidade que o espírito de iniciativa empresta ao empreendimento económico ou equiparado, à maior capacidade dos privados, à maior produção, circulação e consumo de bens. Acrescenta-se, por sistema, a denúncia da inoperacionalidade da gestão pública, as excessivas regalias dos trabalhadores públicos, as frequentes suspensões de trabalho, os desperdícios, as gorduras do Estado. E reserva-se para o Estado a definição dos grandes objetivos estratégicos, a função reguladora e arbitral e os serviços mais diretamente conexos com a soberania: justiça, forças armadas, polícia e impostos. Por conseguinte, muitas das empresas e serviços do setor público são objeto da privatização direta ou indireta. Decresce o setor empresarial do Estado e, pelo menos numa fase intermédia, desenvolve-se o setor empresarial municipal e intermunicipal, em nome das alegadas vantagens da gestão de proximidade.  
Entre uma opção e outra surge uma terceira via, que alguns situam na pragmática levada a cabo por Tony Blair e seu imediato sucessor Gordon Brown, no Reino Unido, e ensaiada por António Guterres, em Portugal. No entanto, ela fora ensaiada em vários países europeus sob a égide do corporativismo. Em qualquer dos casos, o Estado pontifica na propriedade dos melhores estabelecimentos de ensino, num conjunto alargado de unidades de saúde, na propriedade dos bancos emissores; e reserva para si um complexo de serviços e empreendimentos, intervém em grande número de empresas e fiscaliza todas as empresas e serviços privados. O Estado, além dos serviços diretamente ligados à soberania, assume-se numa postura intervencionista. E, como tal, detém o controlo de muitas empresas e serviços considerados bens públicos (pelo menos a nível de uma posição dominante), intervém com uma certa planificação da economia, procede a algum condicionamento agrícola, industrial e comercial. Os funcionários públicos (sobretudo em setores especiais) são em relativamente grande número e integram-se em carreiras relativamente bem estruturadas. Por outro lado, decidem-se nacionalizações ou privatizações conforme a necessidade de viabilizar ou sanear serviços e empresas. E confiam-se iniciativas, empreendimentos e desenvolvimentos de projetos, mesmo de interesse nacional, a estruturas intermédias, como se estabelecem parcerias público-privadas em muitos setores, por incapacidade imediata do Estado de lançar os projetos ou para contornar as regras de gestão e contabilidade públicas. E, para mais nos espantarmos, vemos criadas empresas ou entidades públicas empresariais com gestão privada, como a Parpública, a Parque Escolar, muitos dos hospitais públicos, as fundações universitárias, etc., como vemos muitas empreitadas e serviços de responsabilidades públicas (da administração central e autárquica) sistematicamente alocadas a entidades privadas – empresas, sociedades de advogados, sociedades de arquitetos, sociedades de engenheiros, sociedades de economistas, entidades empresariais constituídas ad hoc. Costuma dizer-se que a municipalização de serviços é meio caminho para a sua privatização, justamente pela tendência de os municípios alocarem a sua execução a privados através de concurso (público ou limitado) ou com recurso ao ajuste direto.
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Em Portugal, chegada que foi a onda neoliberal, a que se acrescentou o estigma da inevitabilidade da política austeritária porque estivéramos à beira da bancarrota por termos estado a viver acima das nossas possibilidades (quiçá por indicação de outrem), a dita terceira via cedeu o lugar ao desmantelamento do Estado e da maior parte do bolo da malha empresarial, a começar pelas empresas de bandeira (OGMA, ENVC). Já disséramos adeus à LISNAVE, SETENAVE e SOREFAME.
Começou por se afirmar que bastava suprimir os desperdícios públicos, eliminar as gorduras do Estado e obter melhor Estado através da consecução de menos Estado. Conseguir-se-ia menos e melhor Estado libertando-o da economia. Todavia, não era necessário baixar mais os salários nem eliminar ou reduzir subsídios nem despedir trabalhadores ou desfazer empresas. Impunha-se, no entanto, flexibilizar as leis do trabalho. Tudo se resolveria cumprindo o programa da troika e indo mais além – o que se traduzia na reforma do Estado, na revisão do regime das fundações e na privatização (venda) de empresas públicas. Até se entregariam a escolas a professores independentes.
Entretanto, o Governo, por via orçamental, manteve os cortes salariais, que herdou, nos funcionários públicos e aprofundou esses cortes, tirou parte do subsídio de natal a todos, arrecadou subsídios de natal e de férias a muitos funcionários públicos e reformados e aposentados, mexeu atrabiliariamente nas pensões de reforma e de aposentação (mesmo nas pensões de sobrevivência), suspendeu as reformas antecipadas, induziu a aposentações antecipadas na administração pública, estabeleceu o sistema de despedimento de trabalhadores públicos mascarado de requalificação e de rescisão do contrato de trabalho por mútuo acordo, aumentou a carga de trabalhos dos funcionários e a duração do horário semanal e deixou falir inúmeras empresas e reestruturar outras de forma caprichosa – de que resultou aumento desmedido da taxa de desemprego, emigração em barda de recursos humanos (muitos deles altamente qualificados). Reduziu institutos (criou outros), encerrou escolas (fez agrupamentos e mega-agrupamentos), unidades de saúde, tribunais, serviços de finanças, etc.
Tentando convencer o povo de que era necessário privatizar, vendeu ao desbarato um banco, o BPN (40M ), ao BIC. Não iria haver, mas houve despedimentos e foram encerrados balcões. Os gestores de topo ficaram a ter melhores vencimentos e mordomias.
Vai ser vendido, quanto antes, o Novo Banco (que é indiretamente dos contribuintes!), deixando para trás toda a teia aderente ao banco mau, o BES, cujo grupo se perdeu no complexo de empresas privadas, sendo algumas controladas por um Estado, único proprietário, a República Popular de Angola.
Venderam a ANA-aeroportos. Os privados fariam melhor. E fizeram: as taxas aeroportuárias subiram a ponto de os responsáveis pela Ryanair, a maior companhia aérea de baixo custo da Europa, terem já declarado que abandonaram a intenção de reforçar o investimento em Portugal. Por outro lado, as recentes obras de beneficiação do terminal do aeroporto internacional de Lisboa foram tecnicamente tão bem feitas que muitas das lajetas aplicadas já estão partidas.
Foi privatizada a maior parte do capital da EDP e da REN a favor de uma empresa “pública” da China. Prometiam-se menores custos para o consumidor, melhores serviços e menores rendas. E nada, antes pelo contrário! Mas há mais portugueses, como Catroga e Cardona, na EDP e na REN a auferir melhores vencimentos e mordomias. Porém, a ajuizar pelo que se passa com a Grécia, em que o poder chinês já veio contestar a política do Syriza de suspensão de privatizações, é de perguntar o que sucederá se um governo português pretender fazer alguma exigência desagradável à muito privada EDP estatal da China.
Dos CTT privatizados por via bolsista não se esperam grandes surpresas, já que previamente à venda, se executou um vasto programa de encerramentos e diminuição de encargos, incluindo a transferência do fundo de pensões e responsabilidades inerentes para alçada do Estado. Mas não passaram a servir melhor! E parece que política semelhante se estará a seguir relativamente ao grupo Águas de Portugal, SA, quanto ao regime de preços.
A privatização das seguradoras do Grupo CGD não trouxe novidades vantajosas em relação ao que se tinha anteriormente nem ao contexto geral das seguradoras – hábeis para a angariação de clientes e parcíssimas na assunção de encargos.
Quanto à PT, basta referir que que esta empresa quase modelar na prestação de serviços e na qualidade de equipamentos tem andado da casa de Anás para a casa de Caifás e de Pilatos para Herodes e de Herodes a Pilatos, para terminar no calvário da descaraterização, na sepultura do mau serviço e no apostolado do suplício de Tântalo a incomodar a tempo e fora de tempo os clientes que ainda o são e aqueles que já deixaram de o ser.
Parece que a RTP não vai ser privatizada, pelo menos enquanto o FMI não entrar em Portugal com os tanques da invasão (a Comissão Europeia, sem Barroso, já não se importa). Porém, o que se passa na Casa que “foi” de Alberto da Ponte é um bom testemunho de como anda o Governo da nação, que esse, sim, deveria ser privatizado.
Finalmente, quanto à TAP, que já passou por uma gorada tentativa de venda, só quero dizer o seguinte:
Com aquele caderno de encargos só um generoso patriota estrangeiro é que ficará com o negócio. Manter a marca TAP, o centro de decisão em Portugal, sustentar as rotas atuais e aumentar a frota e as rotas, capitalizar a empresa, não poder vender durante cinco anos, não despedir nenhum dos funcionários, reservar ao vendedor o direito de preferência numa futura compra ou o direito de reversão – tudo isto configura uma estratégia de não concretização da venda, a não ser que o caderno seja para português ver em maré pré-eleitoral ou que, em alternativa, haja um caderno B para consulta exclusiva dos candidatos. Eu não compraria uma quinta se me impusessem ainda que fosse só metade daquelas condições.
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Não foi exaustiva a minha análise, mas dá para pôr em dúvida a boa intenção de quem governa ou a sanidade dos agentes económicos à escala mundial.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Fortalecei os vossos corações (Tg 5,8)

É em torno da nervura central do versículo 8 do capítulo 5 da carta de Tiago que gravita a mensagem quaresmal do Papa Francisco para 2015. E o texto papal foi assinado, juntamente com a mensagem para o dia mundial do doente (que já tive o ensejo de comentar), no passado dia 3 de dezembro, memória de São Francisco Xavier, o santo de Navarra que se tornou o português apóstolo das Índias. Não creio que tudo isto tenha sucedido por acaso, mesmo que Francisco seja um hierarca que surpreende de tal forma que parece improvisar.
Ora, o versículo cuja nervura se referencia em epígrafe, transcrito na totalidade, é assim: “Tende, também vós, paciência e fortalecei os vossos corações, porque a vinda do Senhor está próxima”.
É certo que os primeiros cristãos, entendendo à letra as palavras de Cristo e não percebendo a transtemporalidade dos sinais, julgavam que o fim do mundo estava iminente e, com ele, a vinda gloriosa do Senhor. Não obstante, dado que a vida deste mundo é breve (como diz o povo, esta vida são dois dias), estará não iminente a vinda gloriosa de Cristo a julgar o mundo, mas a hora do encontro de cada um com Cristo a fazer a inauguração singular da vida do Além. Assim, a carta de Tiago tem plena atualidade neste apelo ao fortalecimento dos corações, já que as provações que o mundo oferece, quase sempre por culpa de alguns homens, são incontáveis e dolorosas. Porém, se firmados na fé que nos vem da escuta, proclamação e prática da Palavra divina – aliada a toda a boa obra para connosco (nomeadamente pelo domínio do juízo insensato e da língua viperinamente malédica) e para com os semelhantes, nomeadamente os que mais precisam pela penúria de bens, de saúde ou de misericórdia – teremos a paciência forjada na conexão vivencial com a sabedoria divina que moldará o homem secundum cor Christi (à semelhança do coração de Cristo que Se entregou por nós).
Muitos veem nesta carta de Tiago a dimensão social – a da partilha para com aqueles que não têm (exigindo a moderação das riquezas e a conveniente partilha de bens – vd cap 5). Todavia, a carta, que em si tem esta carga de apelo social e económico, não se desliga da origem – a sabedoria divina e o íntimo da consciência do discípulo. E, por isso, o seu apelo à destruição da presunção soberba e à dirimição das discórdias, resultantes da cobiça (de pessoa, bens e talentos) flui da palavra divina e do exemplo de Cristo, que usa de misericórdia com os doentes e com os pecadores. Assim, se percebe a pertinência da última perícopa do cap. 5: recurso à oração; canto de salmos; unção dos doentes e alívio na doença; confissão e perdão dos pecados; apostolado da conversão dos pecadores.
É, pois, evidente a razão por que o Papa fez uma junção feliz entre o apoio misericordioso à doença e a espiritualidade da Quaresma (tempo de renovação para a Igreja, para as comunidades e para cada um dos fiéis: «tempo favorável» de graça, cf 2 Co 6,2) – a dinâmica da proximidade, da partilha, da interdependência e da missão.
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Salientando que “Deus nada nos pede, que antes não no-lo tenha dado” e que “não nos olha com indiferença”, Francisco acentua que Deus “tem a peito cada um de nós, conhece-nos pelo nome, cuida de nós e vai à nossa procura, quando O deixamos”. Já nós temos uma postura diferente: “Quando estamos bem e comodamente instalados, esquecemo-nos certamente dos outros (isto, Deus Pai nunca o faz!), não nos interessam os seus problemas, nem as tribulações e injustiças que sofrem; e, assim, o nosso coração cai na indiferença: encontrando-me relativamente bem e confortável”. Mas o Papa vai mais longe ao lamentar que “hoje, esta atitude egoísta de indiferença atingiu uma dimensão mundial tal que podemos falar de uma globalização da indiferença. Trata-se de um mal-estar que temos obrigação, como cristãos, de enfrentar”. Generaliza-se “a indiferença para com o próximo e para com Deus”, pelo que os cristãos têm necessidade de “ouvir, em cada Quaresma, o brado dos profetas que levantam a voz” para o despertar de todos.
Sabendo que Deus ama o mundo a ponto de lhe “entregar o seu Filho pela salvação de todo o homem”, abrindo-se definitivamente – “na encarnação, na vida terrena, na morte e ressurreição do Filho de Deus” – “a porta entre Deus e o homem, entre o Céu e a terra”, o Papa apresenta a Igreja “como a mão que mantém aberta esta porta, por meio da proclamação da Palavra, da celebração dos Sacramentos, do testemunho da fé que se torna eficaz pelo amor” (cf Gl 5,6). No entanto, o mundo “tende a fechar-se em si mesmo e a fechar a referida porta através da qual Deus entra no mundo e o mundo n'Ele”. Que interessante esta função eclesial: aquela mão!
Não obstante, aquela mão, que mantém aberta aquela porta – é a Igreja – “não deve jamais surpreender-se, se se vir rejeitada, esmagada e ferida”. Pelo contrário, “o povo de Deus tem necessidade de renovação, para não cair na indiferença nem se fechar em si mesmo”.
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Em função da almejada renovação, o Pontífice apresenta três itens ou tópicos de reflexão / meditação: a comunhão dos santos; a guarda dos irmãos; e o fortalecimento do homem de Deus “para que seja perfeito e esteja preparado para toda o obra boa” (2 Tm 3,16).
Em relação ao primeiro tópico, parte da sentenciosa admiração paulina “Se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros (1 Co 12,26). A Igreja, com o seu ensinamento e testemunho, oferece-nos o amor de Deus, “que rompe esta reclusão mortal em nós mesmos que é a indiferença”. Assim, o cristão, implicado na Igreja, mistério de comunhão, “é aquele que permite a Deus revesti-lo da sua bondade e misericórdia, revesti-lo de Cristo para se tornar, como Ele, servo de Deus e dos homens”.
A Quaresma é, pois, segundo o discurso papal, “um tempo propício para nos deixarmos servir por Cristo e, deste modo, tornarmo-nos como Ele”. Isto acontece, em especial, “quando ouvimos a Palavra de Deus e recebemos os sacramentos, nomeadamente a Eucaristia”, em que nos tornamos “naquilo que recebemos: o corpo de Cristo”. E, “neste corpo, não encontra lugar a tal indiferença que, com tanta frequência, parece apoderar-se dos nossos corações; porque, quem é de Cristo, pertence a um único corpo e, n’Ele, um não olha com indiferença o outro.
Assim, a Igreja afirma-se como a communio sanctorum, “não só porque nela tomam parte os Santos mas também porque é comunhão de coisas santas: o amor de Deus, que nos foi revelado em Cristo, e todos os seus dons”. Ora, segundo o Papa e de acordo com a carta de Tiago, “nesta comunhão dos Santos e nesta participação nas coisas santas, aquilo que cada um possui, não o reserva só para si, mas tudo é para todos”.
Quanto ao segundo tópico, Francisco parte da interrogação de Deus a Caim, após o fratricídio, “Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9). E toma em linha de conta o que ensinou sobre a Igreja para a sua aplicação a cada uma das paróquias e outras comunidades. E começa por se interrogar:
“Nestas realidades eclesiais, consegue-se experimentar que fazemos parte de um único corpo? Um corpo que, simultaneamente, recebe e partilha aquilo que Deus nos quer dar? Um corpo que conhece e cuida dos seus membros mais frágeis, pobres e pequeninos? Ou refugiamo-nos num amor universal pronto a comprometer-se lá longe no mundo, mas que esquece o Lázaro sentado à sua porta fechada?” (cf Lc 16,19-31)
Depois, aponta a necessidade de, “para receber e fazer frutificar plenamente aquilo que Deus nos dá”, ultrapassar, em duas direções, as fronteiras da Igreja visível: na união à Igreja do Céu, pela oração; e na relação com a sociedade circundante, com os pobres e com os incrédulos.
No atinente à primeira direção, há que referir que da oração da Igreja resulta a instauração da recíproca “comunhão de serviços e bens que chega até à presença de Deus”. Nestes termos, com os Santos, que encontraram a plenitude em Deus, os cristãos integram aquela comunhão onde o amor vence a indiferença. Assim, o Pontífice tem a ousadia de negar que a Igreja do Céu seja triunfante, “porque deixou para trás as tribulações do mundo e usufrui sozinha do gozo eterno”, mas afirma que o é, porque “aos Santos é concedido já contemplar e rejubilar com o facto de terem vencido definitivamente a indiferença, a dureza de coração e o ódio, graças à morte e ressurreição de Jesus”. E, apoiado no testemunho de Teresa de Lisieux, doutora da Igreja, acrescenta que, “enquanto esta vitória do amor não impregnar todo o mundo, os Santos caminham connosco, que ainda somos peregrinos”. De igual modo, “também nós participamos dos méritos e da alegria dos Santos e eles tomam parte na nossa luta e no nosso desejo de paz e reconciliação”, já que, “para nós, a sua alegria pela vitória de Cristo ressuscitado é origem de força para superar tantas formas de indiferença e dureza de coração”.
No concernente à segunda direção apontada, sublinha a índole missionária da Igreja, a qual, por sua natureza, é “não fechada em si mesma, mas enviada a todos os homens”. E a sua missão consiste no “paciente testemunho d’ Aquele que quer conduzir ao Pai toda a realidade e todo o homem”. Por isso, “a Igreja segue Jesus Cristo pela estrada que a conduz a cada homem, até aos confins da terra (cf At 1,8), podendo nós ver, no nosso próximo, o irmão e a irmã por quem Jesus morreu e ressuscitou. E o fluxo da comunhão dos Santos, expressa no Símbolo dos Apóstolos, consiste nisto: “Tudo aquilo que recebemos, recebemo-lo também para eles. E, vice-versa, tudo o que estes irmãos possuem é um dom para a Igreja e para a humanidade inteira”.
Depois, vem o terceiro e último tópico, em torno do tema global da mensagem quaresmal cujo móbil fundamental é o combate sem tréguas à indiferença. O fortalecimento dos corações na fé acentua a dimensão pessoal da fé, que vive da dimensão comunitária e a incrementa. Não se pode remeter a obra salvífica para o abstrato do “todos” (que poderia ficar nas nuvens sem atingir ninguém), mas fazê-la aterrar no “todos” e no “cada um”. O mesmo se diga dos côngruos deveres. A este respeito, o Papa explicita:
Também como indivíduos temos a tentação da indiferença. Estamos saturados de notícias e imagens impressionantes que nos relatam o sofrimento humano, sentindo ao mesmo tempo toda a nossa incapacidade de intervir.
E sugere, “para não nos deixarmos absorver por esta espiral de terror e impotência”: a oração “na comunhão da Igreja terrena e celeste”, crentes na força e na eficácia da “oração de muitos”; a ajuda, “com gestos de caridade, tanto a quem vive próximo de nós como a quem está longe, graças aos inúmeros organismos caritativos da Igreja”; e a assunção do sofrimento dos outros como um “apelo à conversão, porque a necessidade do irmão” recorda-nos a fragilidade da vida e a dependência de Deus e dos irmãos.
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Como iniciativas concretas, o Papa Francisco sugere: a iniciativa 24 horas para o Senhor, para ser celebrada em toda a Igreja – mesmo a nível diocesano – nos dias 13 e 14 de Março; um sinal concreto, mesmo que pequeno de participação na humanidade que temos em comum; e o aproveitamento desta Quaresma, por parte de cada um, como um percurso de formação do coração – um coração misericordioso, “um coração forte, firme, fechado ao tentador mas aberto a Deus; um coração que se deixe impregnar pelo Espírito e levar pelos caminhos do amor que conduzem aos irmãos e irmãs; no fundo, um coração pobre, isto é, que conhece as suas limitações e se gasta pelo outro”.
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Em consonância com o corpo do texto, Francisco coroa a sua mensagem com uma pequena jaculatória retirada das súplicas das Ladainhas ao Sagrado Coração de Jesus e que pretende que seja prece paradigmática desta Quaresma: Fac cor nostrum secundum cor tuum (Faz o nosso coração semelhante ao Teu). Será a vitória da misericórdia e generosidade contra a globalização da indiferença!

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

PACC: um ministerialíssimo tiro no pé

Perante o mesmo facto são legítimas várias leituras. No entanto, quem tem responsabilidades numa determinada matéria não pode avaliar um facto afirmando uma coisa e o seu contrário. Por outro lado, quem tem responsabilidades públicas perante uma situação complexa, deve tirar as conclusões mais adequadas à solução da complexidade.
Vem isto a propósito da PACC (prova de avaliação de conhecimentos e capacidades) a que o MEC (Ministério da Educação e Ciência) sujeita os candidatos à docência que tenham uma habilitação superior conducente à carreira de professor (a) e que não tenham uma experiência docente de pelo menos 5 anos de serviço. A predita prova consta de duas partes: uma igual para todos (eliminatória), aplicada a 2490 candidatos (não professores integrados na carreira), em 19 de dezembro passado; e outra (ou outras) específica consoante o grupo ou grupos de recrutamento a que pertence o candidato, a aplicar a partir de 1 de fevereiro próximo.
O número acima referido já é deduzido do número de 2811 candidatos validamente inscritos, mas que faltaram à PACC. E este número já fora deduzido da totalidade dos que tentaram a inscrição, mas que não foi validada por erros cometidos aquando da utilização da aplicação informática, submissão fora de prazo ou não apresentação atempada dos comprovativos indicados.
Não me pronunciando sobre os motivos que levaram um considerável número de candidatos a não comparecer à prova, por desconhecidos, mas que podem prender-se com situações imprevistas ou desleixo, acuso o toque da irresponsabilidade da indicação de documentos cujo comprovativo se não apresenta e a arrogância que alguns manifestam em relação aos mais velhos por via da sua alegada infoiliteracia, que os inibe de se manterem competentes para lá dos 50 anos de idade. É caso para dizer em latim: “euge, euge!”. Tanta prosápia para falharem no mais óbvio…
Mas o MEC não pode alegar que os resultados da PACC, que excluíram já 34,3% dos candidatos (o MEC diz abusivamente “professores”) que a ela se sujeitaram, mostram que ela era necessária como instrumento de seleção.
Mais: o Ministro, perante os deputados que se faziam eco da não validade da prova defendida pelo conselho científico do IAVE-IP, afiançava a PACC como um “instrumento importante para escolher os melhores professores para as escolas públicas”. Porém, ao ser confrontado com o facto de a prova não avaliar o essencial para a função docente, Crato assentiu argumentando com os exames de condução, que não avaliam tudo, mas avaliam o conhecimento de umas regras e de uns sinais e não escolhem os melhores condutores. Universidade = escola de condução e MEC = centro de inspeção de condução? Boa!
É o que eu chamo a afirmação de algo e do seu contrário. Por outro lado, eu argumento com o que se passa em geral com as escolas de condução, cujo escopo não é propriamente preparar condutores, mas preparar pessoas para o exame. Por isso, os cidadãos, seus clientes, são adestrados através de testes de resposta de escolha múltipla e do exercício de umas tantas manobras de condução para “tirarem a carta”. Depois, na prática aprendem a ser condutores. E eu não queria que a escola pública se limitasse a preparar os alunos exclusivamente para exame final, através de uma assídua bateria de testes, descurando o essencial das aprendizagens. Analogamente, penso ser indesejável que a formação inicial de professores desembocasse numa prova, que a coberto da necessidade de compreensão de enunciados e de resolução de problemas ou do desenvolvimento da capacidade de raciocínio, obrigasse os candidatos a resolver uns crucigramas, uns sudokus, números cruzados, anagramas, caça-palavras ou sopas de letras.
Aliás, as palavras do MEC, às vezes, revelam a verdadeira e única intenção, recentemente pela boca do responsável pela pasta: “Temos um número de candidatos muito superior ao número de lugares”. Para quê mais palavras?
Na última audição perante a Comissão de Educação, Ciência e Cultura, Sua Excelência deu um ministerialíssimo tiro no pé. Bem sei que os meus colegas atreitos acriticamente ao novo dicionário terminológico me virão dizer que um adjetivo relacional como “ministerial” não se coloca à esquerda do nome nem admite graus. A isso posso responder que a Igreja Católica, “perita em humanidade”, como dizia Paulo VI e repetia à saciedade João Paulo II, consagrou a expressão “Romano Pontífice”. “Romano” é um adjetivo relacional e vem à esquerda do nome “pontífice”! Também os poetas se dirigiam ao príncipe como “sereníssimo senhor”. Não creio que este “sereníssimo” fosse um adjetivo qualificativo stricto sensu. Vá lá, abram exceções, caso contrário ainda me reprovam na PACC.
A serem verdadeiros os resultados percentuais publicitados pelo IAVE-IP, que suponho não estar ali para enganar, a solução não passa principalmente pela prova. Se não, vejamos:
Segundo o IAVE-IP, 40,4% dos candidatos tiveram uma classificação entre 10 e 14,9 pontos (em 20) e 24,8% uma classificação igual ou superior a 15. A nível da pontuação, 16% dos candidatos deram respostas com cinco ou mais erros e 28,7% cometeram um ou dois erros; e, ao nível da acentuação, foram 28,7% os que responderam com um ou dois erros. No que se refere à ortografia, em 29,1% dos casos registam-se um ou dois erros e em 19,9% cinco erros ou mais. Já no atinente à sintaxe, 16% apresentaram respostas com três ou mais erros destes.
Entretanto, é de salientar que 34,7% dos candidatos não apresentaram quaisquer erros nas respostas. Porém, o Ministro parece saborear a declaração: “não faz sentido nenhum que um professor dê 20 erros de ortografia numa frase”. Diga-se que estes não são os mais graves.
Ora sendo assim, algo está mal, mas a PACC não traz qualquer solução sustentável e credível. Há que intervir na formação inicial, a cargo de instituições do ensino superior. É necessário arredar dos candidatos ao ensino superior que quem não sabe ou não quer fazer mais nada vai para o ensino e ter a ousadia de criar exigências ao nível da abertura de cursos, do acesso aos mesmos e da sua ministração e da avaliação das aprendizagens. Depois, é necessário exigir capacidade de compreensão, raciocínio e expressão, bem como de relações interpessoais e perfil ético em todos os cursos superiores e não só nos destinados à docência. Neste sentido, seria útil desfazer a ideia “universitária” de que não importa tanto o escrever bem (corretamente), mas escrever com rigor. E é preciso pôr os estudantes a escrever em português e bem (sem tolher a escrita em línguas estrangeiras, mas não descurando o português que também é língua de ciência) e a comunicar em bom português.
Não pode, apesar de tudo, o MEC descurar a formação inicial de professores, mas ao mesmo tempo dotar estes diplomados de outras ferramentas que os qualifiquem para o exercício de outra atividade. Não vá acontecer que se generalize a onda de desmotivação e as escolas fiquem desertas de quadros ou de pessoas qualificadas para colmatar as necessidades eventuais do sistema educativo ou que as instituições do ensino superior estejam a formar pessoas exclusivamente para “o mercado do desemprego”.
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Relativamente a esta matéria, as duas federações sindicais de professores e a Associação Nacional dos Professores Contratados, mantêm que a prova visa apenas a exclusão de docentes da profissão. Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof (Federação Nacional de Professores), lançou o seguinte desafio aos pais: “Gostava que os pais se dessem ao trabalho de ir à página do Instituto de Avaliação Educacional [IAVE] na Internet e lessem a prova. Será que ficam mais descansados por entregar os filhos a um professor que tivesse passado naquela coisa?”. É óbvio que ele próprio assegura que “não”. E adiantou que “a PACC é de uma inutilidade completa, a não ser para afastar professores que, em setembro, muito convenientemente para o Governo, já não aparecerão como não colocados”.
Por seu turno, João Dias da Silva, secretário-geral da FNE (Federação Nacional de Educação), concorda com Nogueira e cita o conselho científico do IAVE-IP que, num parecer de novembro passado, considerou que a PACC não é “válida” nem “fiável”, tendo como “propósito mais evidente” impedir o acesso à carreira docente (aqueles que “chumbam” não poderão dar aulas).
No mesmo rumo, César Israel Paulo, da ANPC (Associação Nacional dos Professores Contratados), destacou “os efeitos perversos” de um sistema que impede os professores que chumbaram na componente comum de fazerem a 2.ª parte e que “supostamente vai avaliar as competências científicas e pedagógicas”. E lamentou o que vem sucedendo: “O MEC afastou pessoas que poderiam ter resultados excelentes nessas áreas, que são as que interessam – é inadmissível”.
No entanto, os candidatos à PACC não deram sempre mostras de aprumo e correção quer nas imediações das escolas onde decorreram as provas quer dentro dos próprios lugares da prova. Pode dizer-se que os casos foram pouco numerosos, mas em todo o caso é conveniente evitar passar à opinião pública imagem distorcida do perfil dos candidatos. Por sua vez, os sindicatos não ganham eficácia com reivindicação desvirtuada, pouco expressiva e não massiva, bem como com a declaração de greve para o exíguo setor dos vigilantes.
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Finalmente, não deixo de registar a posição de duas especialistas em educação, as pedagogas Leonor Santos e Maria Emília Brederode dos Santos, que apontam fragilidades aos testes escritos e defendem que a qualidade dos professores se obtém com acompanhamento. Assim, segundo asseguraram ao DN, se o país quer garantir a qualidade do ensino, deve reforçar a formação profissional dos licenciados (agora os mestres), nomeadamente no primeiro ano de trabalho, em vez de apostar em provas que são limitadas na identificação de aptidões – ou na falta delas – para dar aulas. Leonor Santos garante que não será através da PACC – que registou mais de um terço de chumbos – que o Ministro alcançará o objetivo de “escolher os melhores professores”. Sendo em contexto de trabalho que estas competências são identificadas e desenvolvidas, “isso consegue-se através do ano de indução na carreira, no início da sua atividade [o período probatório], em que o professor trabalha com o acompanhamento próximo de profissionais competentes e experientes”, o que, tendo chegado a ser legislado [nos anos 1980], não chegou a concretizar-se de forma generalizada.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Os escandalizadiços, coitados!

Em carta ao diretor de O Diabo, um leitor do Porto estranha algumas tiradas linguísticas do Papa Francisco, designadamente as atinentes ao soco que poderia levar quem eventualmente ofendesse a sua mãe e ao facto de os bons católicos não terem de reproduzir-se como coelhos.
Põe o leitor a hipótese de o Pontífice ter entrado desprevenido para o exercício do cargo e não possuir suficiente experiência no desempenho. Tenho de me posicionar contra essa suposição, dado que ninguém tem experiência do exercício do pontificado quando lá chega, por mais próximos que possam ter sido os contactos havidos com os bispos de Roma em exercício.
Recordo-me de um professor que tive e a quem, presente num ato conciliar na Basílica de São Pedro, parecia que Paulo VI ainda estava um tanto inibido, a aprender a ser Papa. Ora, Montini viveu anos e anos a trabalhar na Secretaria de Estado ao lado de Tardini, às ordens de Pio XII, que, após a morte do Secretário de Estado que herdou de Pio XI, não designou ninguém para o cargo, cabendo ao Pontífice a direção direta deste importante dicastério da Cúria Romana. Nem por isso Paulo VI ficou inibido de praticar um ministério petrino, embora sem desafinamento no essencial em relação à tradição recebida dos predecessores, contudo numa perspetiva de ajornamento, reforma e inovação – feliz em muitos gestos, dos que Bergoglio aprecia e adota, e pioneiro dos périplos pontificais pelo mundo e do discurso nos mais importantes areópagos internacionais, como a ONU e a OIT.
Porém, o consulente explora em Francisco a pretensa dicotomia entre o falador argentino e o bispo de Roma, chegando ao ponto de declarar que “está a chegar o momento de sugerir a Sua Santidade que se cale um bocadinho”. Julgo tal sugestão excessiva, para não dizer tão hipócrita e verrinosa como a daqueles para quem este Papa pretende fazer uma revolução na Igreja que cilindre os que pensem, sintam e ajam ao contrário do Papa Bergoglio. E comporta uma similitude com a apreciação dos que esperam que Francisco aceite as ideias, atitudes e situações a que os predecessores torciam o nariz (Mais uma tirada que não tolerariam os escandalizadiços!), ficando desiludidos por ele elogiar Paulo VI, o Papa que se opôs, estribado numa comissão especializada, à vaga do neomalthusianismo global que impendia sobre o mundo.
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Penso que nos tempos que correm não podemos agarrar-nos a aspetos de pequena minudência, mas saber distinguir o discurso informal, em que o interlocutor pode e talvez deva utilizar uma linguagem mais solta (não esqueçamos que o Papa utilizou as aludidas tiradas discursivas perante jornalistas que faziam perguntas), e o discurso formal – de homilia, alocução preparada, mensagem pontifícia, encíclica, exortação apostólica, motu próprio, quirógrafo, etc. – em que as palavras têm de valer como posição oficial. Ademais, Francisco já teve outras anomias discursivas de que ninguém se escandalizou. Menciono, a título de exemplo, quando disse no Brasil que os brasileiros não podem querer tudo: se Deus é brasileiro, não podem querer que o Papa seja brasileiro. Também disse, sem que alguém o levasse muito à letra, que andaria aqui uns dois ou três anos. E não veio mal ao mundo por isso.
É certo que este Papa será mais useiro e vezeiro na utilização de anomias discursivas. No entanto, não podemos esquecer que outros dos seus predecessores também o fizeram. Tornou-se proverbial a advertência de Leão XIII na resposta ao decano dos cardeais que o felicitava, em nome do sacro colégio, por mais um aniversário e fazia votos de que chegasse ao menos aos cem anos: “Não queira Vossa Eminência pôr limites à misericórdia divina!”. Dizem que também o místico Pio XII dissera, para alguém, que a Igreja tinha à sua disposição oito sacramentos: o batismo, a confirmação, a eucaristia, a penitência, a santa unção, a ordem, o matrimónio e a santa ignorância. E era este último o que salvava mais pessoas.
O próprio João Paulo II, sem que alguém se escandalizasse, bradou em Portugal para os jovens que o aplaudiam, a 14 de maio de 1982: “Não basta aplaudir o Papa; é preciso ouvir o Papa!”. E, quando passou a apoiar-se numa bengala (canadiana) na sequência de uma queda na banheira, foi-lhe perguntado por um jornalista porque precisava da bengala. E ele deu a explicação óbvia, mas acrescentou que também lhe daria jeito para corrigir alguns jornalistas.
Já Bento XVI não teve a mesma sorte da tolerância da opinião pública. Ninguém ou quase ninguém valoriza as denúncias públicas que ele desferiu sobre os excessos da economia de mercado, a ditadura do relativismo, as clamorosas desigualdades sociais, o discurso vigoroso que por ocasião do natal de 2010 fez perante a Cúria Romana, ou as posições públicas e dolorosas contra a pedofilia e abusos sexuais por parte de muitos membros do clero. Nunca lhe perdoaram a estigmatização que trouxe da CDF (Congregação da Doutrina da Fé) ou a proveniência da Baviera. Não é lícito olvidar a sua empatia no Brasil com os jovens que a sociedade colocou de parte nem a empolgante manifestação de fé da Jornada Mundial da Juventude em Madrid com que o Papa alemão se envolveu, mesmo perante uma repentina e furiosa tempestade.
Entretanto, algumas das suas iniciativas ficaram queimadas pelo alegado deslize no discurso na Universidade de Ratisbona, pela desvalorização da eficácia do preservativo no encontro com os jornalistas no voo da viagem pastoral à África ou pelo levantamento da excomunhão a um bispo da Fraternidade de São Pio X, que veio a negar o holocausto (como se o Papa tivesse a obrigação de saber das declarações prévias ou posteriores dos bispos). Até o seu terceiro volume sobre Jesus Cristo (o da Infância) ficou marcado pela alegada expulsão da vaca e do burro do presépio, quando apenas constata que os Evangelhos não mencionam a presença de animais no presépio.
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As pessoas a quem tenho o ensejo de confiar o que penso sobre o Papa Francisco e as que eventualmente leem aquilo que vou escrevendo a seu respeito, sabem muito bem qual é a minha posição a respeito do atual Pontífice. Não alinho naquela anomia discursiva que proferiu quando disse que não era um teólogo e tive a ocasião de explicitar o meu ponto de vista sobre tal anomia. Aliás, ele próprio quando, no encontro com os jornalistas no voo de Manila para Roma em 19 de janeiro, se referiu aos beatos que foram ou vão ser proximamente objeto da canonização equipolente, acentuou o seu enquadramento na teologia da Evangelii Gaudium, a sua primeira exortação apostólica (afinal, assume-se como teólogo), como poderia mencionar a encíclica Lumen Fidei. E também não acredito que ele seja mais apreciado pelo homem da rua do que pelos teólogos, como não considero que se possa afirmar que o seu discurso não seja profundo. Sempre ouvi dizer – e disso estou plenamente convicto, até por experiência própria – que a maior profundidade de conhecimento sobre uma determinada matéria permite um à vontade maior no seu tratamento e na comunicação da mesma aos outros. Por isso, julgo que se devem desenganar aqueles que pretendem confundir coloquialidade da linguagem franciscana com qualquer pretensa superficialidade, aligeiramento ou brevidade de discurso.
Reconheço que Francisco traz à Igreja e ao devir cristão algumas novidades doutrinais, se não ao nível nuclear, ao menos ao nível da evidência e do enfoque. Refiro a imagem da Igreja em saída às periferias existenciais e a do hospital de campanha ao serviço da humanidade ferida. Menciono a marca da ação pastoral com o odor das ovelhas ou a preferência por uma Igreja acidentada porque se envolve a sério, a uma Igreja limpa e segura que não sai do seu centro de conforto. Acentuo o discurso veemente perante as altas figuras da malha eclesiástica, como o discurso das quinze doenças ou disfunções, bem como o discurso à Congregação dos Bispos e aos Núncios Apostólicos sobre o perfil pessoal, teológico, espiritual e pastoral do Bispo – incluindo a capacidade e tenacidade em se atravessar perante Deus e os poderes em favor do seu povo como Moisés.
Todavia, para enaltecer o perfil, a teologia, o discurso, os gestos e a ação do Papa Francisco, não quero nem julgo necessário (e ele tem mostrado que não o quer) subestimar o perfil, a teologia, o discurso, os gestos e a ação dos predecessores. Tenho referido abertamente que o meu Papa de referência é ou foi Paulo VI, pelos motivos que, por vezes, tenho apontado (e fiquei bem contente com a sua beatificação). No entanto, não posso deixar de relevar toda a ação de João Paulo II (para já não falar dos eloquentes sinais que o curtíssimo pontificado de João Paulo I deu à Igreja e ao Mundo) sobretudo no atinente à geopolítica europeia, às políticas sociais e económicas, à teologia do trabalho e à teologia do corpo e à presença física na maior parte dos países do Orbe. Quanto ao Papa Bento XVI, é relevante o discurso espiritual, teológico e pastoral, a denúncia das injustiças sociais, a leitura que faz da História e a preocupação ecológica. Tornam-se inesquecíveis os seus discursos no Parlamento de Berlim e no Parlamento de Londres, tal como o dinamismo impresso nos diversos marcos da sua viagem a Portugal em maio de 2010.
Ora, parece que já disse tudo sobre o Papa argentino. Não, não disse nem direi. No entanto, apraz-me sublinhar que a sua teologia ecológica vem na continuidade da postura discursiva do seu predecessor imediato. Só que Francisco, além de a fazer dimanar apenas da dinâmica bíblica da criação, como o Papa alemão, insere-a, logo a partir do início do seu pontificado, na obrigação de providência que, ao contrário de Caim, que achava esquisito ter de ser o guarda do seu irmão, todos temos de, a exemplo de São José, guardar Jesus, Maria, Deus, os irmãos, o mundo criado e a nós mesmos. Também nesta vertente da obrigação de providência somos semelhantes a Deus. Provavelmente, também nesta matéria, os escandalizadiços poderão encontrar pedras de tropeço, já que Francisco, ao realçar a obrigação ecológica dos homens, os aponta como os maiores responsáveis pelos cataclismos naturais, por via das suas intervenções indisciplinadas na natureza. Já isto seria mau para alguns, mas será pior a anomia discursiva ao citar o aforismo: Deus perdoa sempre (Não saberá o Papa que os seis pecados contra o espírito Santo não têm perdão?!), os homens às vezes (Então os homens não devem perdoar sempre?!), mas a natureza nunca perdoa (será ela imputável?!).
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Ora, é tempo de nos desprendermos das anomias discursivas presentes no discurso informal, mesmo no do Papa, que também é gente e precisa de usar exemplos ilustrativos e socorrer-se das comparações, metáforas e hipérboles do quotidiano. Não acompanho Aura Miguel, que pensa que o Papa não devia ter falado nos coelhos. Temos de ser menos hipercríticos e mais atentos ao essencial, mais reflexivos, mais pró-ativos e talvez mais cristãos.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Plano Estratégico para as Migrações (2015-2020)

Entra hoje, dia 26 de janeiro, em discussão pública, por dez dias úteis, o Plano Estratégico para as Migrações (2015-2020), abreviadamente denominado PEM, que tem uma vertente de incentivo e apoio ao empreendedorismo, capaz de atrair quem emigrou. Por outro lado, faz a gestão da atribuição / distribuição de verbas comunitárias que financiam medidas para emigrantes, imigrantes e “novos portugueses”.
O PEM consta de anexo a um projeto de resolução do Conselho de Ministros, cujo conteúdo vem articulado com outros programas de inclusão, como o Programa Escolhas, já em desenvolvimento e, depois de entrar em vigor, será sustentado pelo “financiamento comunitário 2014-2020, sem onerar de forma acrescida o orçamento nacional”.
O documento em discussão pública estará disponível no portal na Internet do governo.
Partindo da evolução do fluxo migratório português – forte surto emigratório nas décadas de 60 e de 70, do século passado, numerosa entrada de imigrantes na década de noventa do mesmo século, naturalização de muitos descendentes de imigrantes no início do século XXI e abandono do país por muitos nos últimos quatro anos, sob a troika – o Governo entendeu lançar um programa abrangente e polifacetado.
Andreia Sanches, em peça jornalística específica no Público de hoje, salienta que deverão ser aprovadas, até ao final deste ano, as regras e os procedimentos de atribuição de “vistos-talento”, para estudantes, investigadores, artistas e outros migrantes talentosos que efetivamente possam ser especialmente úteis ao país. Afirma, ainda, que esta é uma das 102 medidas do PEM, já antes avançada pelo Governo, vindo agora a estabelecer-se um prazo para a sua concretização.
A novidade que o aludido projeto de resolução, que pode ser consultado desde já no portal do governo, é a inclusão de um programa de “Empreendedorismo para Emigrantes”, a lançar também este ano, ou seja, o Governo vai também “apoiar a criação de empresas por nacionais não residentes em território nacional”. Porém, ao contrário do que acontece em relação a outras medidas deste PEM, que vêm devidamente quantificadas e calendarizadas, não se compromete com metas sobre quantas empresas a criar. No entanto explicita:
“Dispondo Portugal de uma vasta e muito qualificada diáspora, hoje enriquecida por novos perfis migratórios de jovens que têm procurado outros destinos, estará aí a primeira fonte de migrantes que nos interessa enquanto nação captar.”

Com este programa, o governo pretende: a atração de cidadãos portugueses muito qualificados; “a promoção de políticas de apoio à reintegração de emigrantes economicamente vulneráveis, não residentes em território nacional há mais de um ano” (um dos compromissos não quantificado é “apoiar despesas de deslocação e estabelecimento em território nacional”); e a “capacitação dos imigrantes empreendedores”, com programas de incentivo à criação do próprio emprego.
O PEM (2015-2020)” – note-se que a nota de “estratégico” é fundamental – é concebido e preparado num país “em défice demográfico” e a enfrentar “uma emergência social, económica e política nacional”.  Por isso, o Governo, tendo em conta que também outros países tradicionalmente sujeitos a significativos fluxos de imigração e de emigração têm procurado gradualmente articular e integrar as políticas migratórias, quer as relativas às entradas, quer as relativas às saídas, internalizando uma visão integrada do fenómeno imigratório e emigratório, quis – quiçá demasiado tarde – agir de forma similar, tomando em consideração a especificidade da nossa realidade. Assim, reconhecendo que as migrações têm um impacto positivo na sociedade em muitas e diferentes dimensões, Portugal posiciona-se hoje perante cinco desafios particularmente decisivos, que convocam as migrações e a que urge responder:
(i) o combate transversal ao défice demográfico e o equilíbrio do saldo migratório; (ii) a consolidação da integração e capacitação das comunidades imigrantes residentes em Portugal, respeitando e aprofundando a tradição humanista de Portugal; (iii) a inclusão dos novos portugueses, em razão da aquisição de nacionalidade ou da descendência de imigrantes; (iv) a resposta à mobilidade internacional, através da internacionalização da economia portuguesa, na perspetiva da captação de migrantes e da promoção das migrações como o incentivo ao crescimento económico; e (v) o acompanhamento da nova emigração portuguesa, através do reforço dos laços de vínculo e da criação de incentivos para o regresso e reintegração de cidadãos nacionais emigrados.

A estratégia do programa pauta-se pelo aprimoramento da absoluta garantia da dignidade da pessoa humana e da promoção da igualdade entre homens e mulheres, em estreita articulação com as políticas públicas de segurança interna e com as políticas para a emigração.
Além da aprovação do PEM, o projeto de Resolução do Conselho de Ministros, contempla, designadamente: a criação da Rede de Pontos Focais de Acompanhamento do PEM, constituída por dois representantes de cada um dos ministérios, um efetivo e um suplente, para o seu acompanhamento e execução; a elaboração de um relatório anual de execução do PEM pelo Alto Comissariado para as Migrações, I.P. (ACM, I.P.) a apresentar ao Conselho para as Migrações; e a determinação de que a assunção de compromissos para a execução das medidas do PEM, incluindo os inerentes à ação das suas estruturas de operacionalização, depende de fundos disponíveis por parte das entidades públicas competentes.
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As 102 medidas inscritas no PEM atingem as várias áreas e com as diversas especificações. De acordo com o exemplo apresentado por Andreia Sanches, no capítulo “Políticas de coordenação dos fluxos migratórios”, diz-se que, até ao final do ano, o país deverá dispor de “um plano de contingência” que permita a disponibilização de meios e a cabal resposta humanitária perante eventuais “afluxos maciços de imigrantes”.
Por outro lado, a coerência do PEM na resposta aos desafios acima enunciados leva a integrar as mencionadas medidas em cinco eixos políticos prioritários:
i) Eixo I – Políticas de integração de imigrantes, cujos objetivos visam a consolidação da atividade de integração, capacitação e combate à discriminação dos imigrantes e grupos étnicos na sociedade portuguesa (combate a todas as formas de racismo e xenofobia), tendo em vista uma melhor mobilização do seu talento e competências, a valorização da diversidade cultural, o reforço da mobilidade social, da descentralização das políticas de integração e uma melhor articulação com a política de emprego e o acesso a uma cidadania comum.
ii) Eixo II – Políticas de promoção da inclusão dos novos portugueses, cujos objetivos perspetivam o reforço de medidas de promoção da integração e inclusão dos novos portugueses (em articulação com o Programa Escolhas, já em desenvolvimento), nomeadamente dos descendentes de imigrantes e de todos aqueles que, entretanto, acederam à nacionalidade portuguesa, através de ações nos domínios da educação, formação profissional, transição para o mercado de trabalho, participação cívica e política, inclusão digital, empreendedorismo e capacitação.
iii) Eixo III – Políticas de coordenação dos fluxos migratórios, cujos objetivos dizem respeito à valorização e promoção internacional de Portugal enquanto destino de migrações, através de ações nacionais e internacionais de identificação, captação e fixação de migrantes, contribuindo para uma gestão mais adequada e inteligente dos fluxos migratórios e para o reforço da atração e circulação de talento e capital humano.
iv) Eixo IV – Políticas de reforço da legalidade migratória e da qualidade dos serviços migratórios, cujos objetivos se prendem com o reforço da capacidade de intervenção transversal na execução da política migratória, através do aprofundamento da rede de parcerias com entidades públicas e privadas, do enquadramento e acompanhamento dos potenciais migrantes, do recurso a ferramentas eletrónicas, da flexibilização dos procedimentos de entrada e da afirmação de uma cultura reforçada de qualidade e de boas práticas na prestação dos serviços migratórios.
v) Eixo V – Políticas de incentivo, acompanhamento e apoio ao regresso dos cidadãos nacionais emigrantes, cujos objetivos visam ações e programas, em coordenação com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que promovam, acompanhem e apoiem o regresso de cidadãos nacionais emigrados ou o reforço dos seus laços de vínculo a Portugal, contribuindo por essa via para a reversão do movimento emigratório de cidadãos portugueses.
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Vai outrossim proceder-se à criação de um “novo portal com potencialidades ao nível da gestão dos serviços migratórios, de forma desmaterializada”, para concretizar o “Simplex Migrante”, bem como ao estabelecimento de uma nova plataforma online, que permita que em qualquer parte do mundo se possa formular um pedido de visto.
Também vem especificamente mencionada no documento a agilização dos procedimentos de inscrição dos estudantes internacionais nos estabelecimentos de ensino superior e dos procedimentos de reagrupamento familiar – sendo, neste último caso, o público-alvo referido o que tem Autorização de Residência para Atividade de Investimento (ARI), ou seja, os detentores dos chamados vistos dourados (os ditos vistos Gold), mas também outros, como professores e investigadores estrangeiros.
A estratégia traçada passa ainda por mudar, ainda este ano, o quadro legislativo referente às punições de atos discriminatórios em função da nacionalidade ou origem étnica e, em todo o tempo, intensificar o combate à utilização ilegal de mão-de-obra (nomeadamente o trabalho não declarado) e ao tráfico de seres humanos, bem como promover a melhoria das condições do trabalho. E, no atinente à Educação e Cultura, pretende-se “promover o ensino da língua portuguesa aos migrantes, crianças e adultos”, com o envolvimento das escolas, do Instituto de Emprego, entre outras entidades, e “valorizar talentos desconhecidos, provenientes de bairros desfavorecidos”.
Por fim, no capítulo do “Apoio à transição dos descendentes para o mercado de trabalho” prevê-se a concretização de “medidas de fomento da responsabilidade social das empresas, no sentido de acolher em estágio e/ou emprego jovens descendentes qualificados”. E, para apoiar “a criação de soluções de empreendedorismo económico e social pelos descendentes de imigrantes” haverá um concurso anual de ideias para jovens.
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Oxalá que o PEM passe efetivamente do papel e não sirva de aproveitamentos indevidos!