Em carta ao diretor de O Diabo, um leitor do Porto estranha
algumas tiradas linguísticas do Papa Francisco, designadamente as atinentes ao soco que poderia levar quem
eventualmente ofendesse a sua mãe e
ao facto de os bons católicos não terem de reproduzir-se
como coelhos.
Põe o leitor a hipótese de o
Pontífice ter entrado desprevenido para o exercício do cargo e não possuir
suficiente experiência no desempenho. Tenho de me posicionar contra essa
suposição, dado que ninguém tem experiência do exercício do pontificado quando
lá chega, por mais próximos que possam ter sido os contactos havidos com os
bispos de Roma em exercício.
Recordo-me de um professor que
tive e a quem, presente num ato conciliar na Basílica de São Pedro, parecia que
Paulo VI ainda estava um tanto inibido, a aprender a ser Papa. Ora, Montini
viveu anos e anos a trabalhar na Secretaria de Estado ao lado de Tardini, às
ordens de Pio XII, que, após a morte do Secretário de Estado que herdou de Pio
XI, não designou ninguém para o cargo, cabendo ao Pontífice a direção direta
deste importante dicastério da Cúria Romana. Nem por isso Paulo VI ficou
inibido de praticar um ministério petrino, embora sem desafinamento no
essencial em relação à tradição recebida dos predecessores, contudo numa
perspetiva de ajornamento, reforma e inovação – feliz em muitos gestos, dos que
Bergoglio aprecia e adota, e pioneiro dos périplos pontificais pelo mundo e do
discurso nos mais importantes areópagos internacionais, como a ONU e a OIT.
Porém, o consulente explora em
Francisco a pretensa dicotomia entre o falador argentino e o bispo de Roma,
chegando ao ponto de declarar que “está a chegar o momento de sugerir a Sua
Santidade que se cale um bocadinho”. Julgo tal sugestão excessiva, para não
dizer tão hipócrita e verrinosa como a daqueles para quem este Papa pretende
fazer uma revolução na Igreja que cilindre os que pensem, sintam e ajam ao
contrário do Papa Bergoglio. E comporta uma similitude com a apreciação dos que
esperam que Francisco aceite as ideias, atitudes e situações a que os
predecessores torciam o nariz (Mais uma tirada que não tolerariam
os escandalizadiços!),
ficando desiludidos por ele elogiar Paulo VI, o Papa que se opôs, estribado
numa comissão especializada, à vaga do neomalthusianismo global que impendia
sobre o mundo.
***
Penso que nos tempos que correm
não podemos agarrar-nos a aspetos de pequena minudência, mas saber distinguir o
discurso informal, em que o interlocutor pode e talvez deva utilizar uma
linguagem mais solta (não esqueçamos que o Papa utilizou as
aludidas tiradas discursivas perante jornalistas que faziam perguntas), e o discurso formal – de
homilia, alocução preparada, mensagem pontifícia, encíclica, exortação
apostólica, motu próprio, quirógrafo,
etc. – em que as palavras têm de valer como posição oficial. Ademais, Francisco
já teve outras anomias discursivas de que ninguém se escandalizou. Menciono, a
título de exemplo, quando disse no Brasil que os brasileiros não podem querer
tudo: se Deus é brasileiro, não podem querer que o Papa seja brasileiro. Também
disse, sem que alguém o levasse muito à letra, que andaria aqui uns dois ou
três anos. E não veio mal ao mundo por isso.
É certo que este Papa será mais
useiro e vezeiro na utilização de anomias discursivas. No entanto, não podemos
esquecer que outros dos seus predecessores também o fizeram. Tornou-se
proverbial a advertência de Leão XIII na resposta ao decano dos cardeais que o
felicitava, em nome do sacro colégio, por mais um aniversário e fazia votos de
que chegasse ao menos aos cem anos: “Não
queira Vossa Eminência pôr limites à misericórdia divina!”. Dizem que
também o místico Pio XII dissera, para alguém, que a Igreja tinha à sua
disposição oito sacramentos: o batismo, a confirmação, a eucaristia, a
penitência, a santa unção, a ordem, o matrimónio e a santa ignorância. E era
este último o que salvava mais pessoas.
O próprio João Paulo II, sem que
alguém se escandalizasse, bradou em Portugal para os jovens que o aplaudiam, a 14
de maio de 1982: “Não basta aplaudir o
Papa; é preciso ouvir o Papa!”. E, quando passou a apoiar-se numa bengala (canadiana) na sequência de uma queda na
banheira, foi-lhe perguntado por um jornalista porque precisava da bengala. E
ele deu a explicação óbvia, mas acrescentou que também lhe daria jeito para
corrigir alguns jornalistas.
Já Bento XVI não teve a mesma
sorte da tolerância da opinião pública. Ninguém ou quase ninguém valoriza as
denúncias públicas que ele desferiu sobre os excessos da economia de mercado, a
ditadura do relativismo, as clamorosas desigualdades sociais, o discurso
vigoroso que por ocasião do natal de 2010 fez perante a Cúria Romana, ou as
posições públicas e dolorosas contra a pedofilia e abusos sexuais por parte de
muitos membros do clero. Nunca lhe perdoaram a estigmatização que trouxe da CDF (Congregação da Doutrina da Fé) ou a proveniência da Baviera. Não é lícito olvidar a sua empatia no Brasil com
os jovens que a sociedade colocou de parte nem a empolgante manifestação de fé
da Jornada Mundial da Juventude em Madrid com que o Papa alemão se envolveu,
mesmo perante uma repentina e furiosa tempestade.
Entretanto, algumas das suas
iniciativas ficaram queimadas pelo alegado deslize no discurso na Universidade
de Ratisbona, pela desvalorização da eficácia do preservativo no encontro com
os jornalistas no voo da viagem pastoral à África ou pelo levantamento da
excomunhão a um bispo da Fraternidade de São Pio X, que veio a negar o
holocausto (como se o Papa tivesse a obrigação de saber das
declarações prévias ou posteriores dos bispos). Até o seu terceiro volume sobre Jesus Cristo (o
da Infância) ficou
marcado pela alegada expulsão da vaca e do burro do presépio, quando apenas
constata que os Evangelhos não mencionam a presença de animais no presépio.
***
As pessoas a quem tenho o ensejo
de confiar o que penso sobre o Papa Francisco e as que eventualmente leem
aquilo que vou escrevendo a seu respeito, sabem muito bem qual é a minha
posição a respeito do atual Pontífice. Não alinho naquela anomia discursiva que
proferiu quando disse que não era um teólogo e tive a ocasião de explicitar o
meu ponto de vista sobre tal anomia. Aliás, ele próprio quando, no encontro com
os jornalistas no voo de Manila para Roma em 19 de janeiro, se referiu aos
beatos que foram ou vão ser proximamente objeto da canonização equipolente,
acentuou o seu enquadramento na teologia da Evangelii
Gaudium, a sua primeira exortação apostólica (afinal,
assume-se como teólogo),
como poderia mencionar a encíclica Lumen
Fidei. E também não acredito que ele seja mais apreciado pelo homem da rua
do que pelos teólogos, como não considero que se possa afirmar que o seu
discurso não seja profundo. Sempre ouvi dizer – e disso estou plenamente
convicto, até por experiência própria – que a maior profundidade de
conhecimento sobre uma determinada matéria permite um à vontade maior no seu
tratamento e na comunicação da mesma aos outros. Por isso, julgo que se devem
desenganar aqueles que pretendem confundir coloquialidade da linguagem
franciscana com qualquer pretensa superficialidade, aligeiramento ou brevidade
de discurso.
Reconheço que Francisco traz à
Igreja e ao devir cristão algumas novidades doutrinais, se não ao nível
nuclear, ao menos ao nível da evidência e do enfoque. Refiro a imagem da Igreja
em saída às periferias existenciais e a do hospital de campanha ao serviço da
humanidade ferida. Menciono a marca da ação pastoral com o odor das ovelhas ou
a preferência por uma Igreja acidentada porque se envolve a sério, a uma Igreja
limpa e segura que não sai do seu centro de conforto. Acentuo o discurso
veemente perante as altas figuras da malha eclesiástica, como o discurso das
quinze doenças ou disfunções, bem como o discurso à Congregação dos Bispos e
aos Núncios Apostólicos sobre o perfil pessoal, teológico, espiritual e
pastoral do Bispo – incluindo a capacidade e tenacidade em se atravessar
perante Deus e os poderes em favor do seu povo como Moisés.
Todavia, para enaltecer o perfil,
a teologia, o discurso, os gestos e a ação do Papa Francisco, não quero nem
julgo necessário (e ele tem mostrado que não o quer) subestimar o perfil, a
teologia, o discurso, os gestos e a ação dos predecessores. Tenho referido
abertamente que o meu Papa de referência é ou foi Paulo VI, pelos motivos que,
por vezes, tenho apontado (e fiquei bem contente com a sua beatificação). No
entanto, não posso deixar de relevar toda a ação de João Paulo II (para
já não falar dos eloquentes sinais que o curtíssimo pontificado de João Paulo I
deu à Igreja e ao Mundo)
sobretudo no atinente à geopolítica europeia, às políticas sociais e
económicas, à teologia do trabalho e à teologia do corpo e à presença física na
maior parte dos países do Orbe. Quanto ao Papa Bento XVI, é relevante o
discurso espiritual, teológico e pastoral, a denúncia das injustiças sociais, a
leitura que faz da História e a preocupação ecológica. Tornam-se inesquecíveis
os seus discursos no Parlamento de Berlim e no Parlamento de Londres, tal como
o dinamismo impresso nos diversos marcos da sua viagem a Portugal em maio de
2010.
Ora, parece que já disse tudo sobre
o Papa argentino. Não, não disse nem direi. No entanto, apraz-me sublinhar que
a sua teologia ecológica vem na continuidade da postura discursiva do seu
predecessor imediato. Só que Francisco, além de a fazer dimanar apenas da
dinâmica bíblica da criação, como o Papa alemão, insere-a, logo a partir do
início do seu pontificado, na obrigação de providência que, ao contrário de
Caim, que achava esquisito ter de ser o guarda do seu irmão, todos temos de, a
exemplo de São José, guardar Jesus, Maria, Deus, os irmãos, o mundo criado e a nós mesmos. Também
nesta vertente da obrigação de providência somos semelhantes a Deus. Provavelmente,
também nesta matéria, os escandalizadiços poderão encontrar pedras de tropeço,
já que Francisco, ao realçar a obrigação ecológica dos homens, os aponta como
os maiores responsáveis pelos cataclismos naturais, por via das suas
intervenções indisciplinadas na natureza. Já isto seria mau para alguns, mas
será pior a anomia discursiva ao citar o aforismo: Deus perdoa sempre (Não
saberá o Papa que os seis pecados contra o espírito Santo não têm perdão?!), os homens às vezes (Então
os homens não devem perdoar sempre?!),
mas a natureza nunca perdoa (será ela imputável?!).
***
Ora, é tempo de nos desprendermos
das anomias discursivas presentes no discurso informal, mesmo no do Papa, que
também é gente e precisa de usar exemplos ilustrativos e socorrer-se das
comparações, metáforas e hipérboles do quotidiano. Não acompanho Aura Miguel,
que pensa que o Papa não devia ter falado nos coelhos. Temos de ser menos
hipercríticos e mais atentos ao essencial, mais reflexivos, mais pró-ativos e
talvez mais cristãos.
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