terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Os escandalizadiços, coitados!

Em carta ao diretor de O Diabo, um leitor do Porto estranha algumas tiradas linguísticas do Papa Francisco, designadamente as atinentes ao soco que poderia levar quem eventualmente ofendesse a sua mãe e ao facto de os bons católicos não terem de reproduzir-se como coelhos.
Põe o leitor a hipótese de o Pontífice ter entrado desprevenido para o exercício do cargo e não possuir suficiente experiência no desempenho. Tenho de me posicionar contra essa suposição, dado que ninguém tem experiência do exercício do pontificado quando lá chega, por mais próximos que possam ter sido os contactos havidos com os bispos de Roma em exercício.
Recordo-me de um professor que tive e a quem, presente num ato conciliar na Basílica de São Pedro, parecia que Paulo VI ainda estava um tanto inibido, a aprender a ser Papa. Ora, Montini viveu anos e anos a trabalhar na Secretaria de Estado ao lado de Tardini, às ordens de Pio XII, que, após a morte do Secretário de Estado que herdou de Pio XI, não designou ninguém para o cargo, cabendo ao Pontífice a direção direta deste importante dicastério da Cúria Romana. Nem por isso Paulo VI ficou inibido de praticar um ministério petrino, embora sem desafinamento no essencial em relação à tradição recebida dos predecessores, contudo numa perspetiva de ajornamento, reforma e inovação – feliz em muitos gestos, dos que Bergoglio aprecia e adota, e pioneiro dos périplos pontificais pelo mundo e do discurso nos mais importantes areópagos internacionais, como a ONU e a OIT.
Porém, o consulente explora em Francisco a pretensa dicotomia entre o falador argentino e o bispo de Roma, chegando ao ponto de declarar que “está a chegar o momento de sugerir a Sua Santidade que se cale um bocadinho”. Julgo tal sugestão excessiva, para não dizer tão hipócrita e verrinosa como a daqueles para quem este Papa pretende fazer uma revolução na Igreja que cilindre os que pensem, sintam e ajam ao contrário do Papa Bergoglio. E comporta uma similitude com a apreciação dos que esperam que Francisco aceite as ideias, atitudes e situações a que os predecessores torciam o nariz (Mais uma tirada que não tolerariam os escandalizadiços!), ficando desiludidos por ele elogiar Paulo VI, o Papa que se opôs, estribado numa comissão especializada, à vaga do neomalthusianismo global que impendia sobre o mundo.
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Penso que nos tempos que correm não podemos agarrar-nos a aspetos de pequena minudência, mas saber distinguir o discurso informal, em que o interlocutor pode e talvez deva utilizar uma linguagem mais solta (não esqueçamos que o Papa utilizou as aludidas tiradas discursivas perante jornalistas que faziam perguntas), e o discurso formal – de homilia, alocução preparada, mensagem pontifícia, encíclica, exortação apostólica, motu próprio, quirógrafo, etc. – em que as palavras têm de valer como posição oficial. Ademais, Francisco já teve outras anomias discursivas de que ninguém se escandalizou. Menciono, a título de exemplo, quando disse no Brasil que os brasileiros não podem querer tudo: se Deus é brasileiro, não podem querer que o Papa seja brasileiro. Também disse, sem que alguém o levasse muito à letra, que andaria aqui uns dois ou três anos. E não veio mal ao mundo por isso.
É certo que este Papa será mais useiro e vezeiro na utilização de anomias discursivas. No entanto, não podemos esquecer que outros dos seus predecessores também o fizeram. Tornou-se proverbial a advertência de Leão XIII na resposta ao decano dos cardeais que o felicitava, em nome do sacro colégio, por mais um aniversário e fazia votos de que chegasse ao menos aos cem anos: “Não queira Vossa Eminência pôr limites à misericórdia divina!”. Dizem que também o místico Pio XII dissera, para alguém, que a Igreja tinha à sua disposição oito sacramentos: o batismo, a confirmação, a eucaristia, a penitência, a santa unção, a ordem, o matrimónio e a santa ignorância. E era este último o que salvava mais pessoas.
O próprio João Paulo II, sem que alguém se escandalizasse, bradou em Portugal para os jovens que o aplaudiam, a 14 de maio de 1982: “Não basta aplaudir o Papa; é preciso ouvir o Papa!”. E, quando passou a apoiar-se numa bengala (canadiana) na sequência de uma queda na banheira, foi-lhe perguntado por um jornalista porque precisava da bengala. E ele deu a explicação óbvia, mas acrescentou que também lhe daria jeito para corrigir alguns jornalistas.
Já Bento XVI não teve a mesma sorte da tolerância da opinião pública. Ninguém ou quase ninguém valoriza as denúncias públicas que ele desferiu sobre os excessos da economia de mercado, a ditadura do relativismo, as clamorosas desigualdades sociais, o discurso vigoroso que por ocasião do natal de 2010 fez perante a Cúria Romana, ou as posições públicas e dolorosas contra a pedofilia e abusos sexuais por parte de muitos membros do clero. Nunca lhe perdoaram a estigmatização que trouxe da CDF (Congregação da Doutrina da Fé) ou a proveniência da Baviera. Não é lícito olvidar a sua empatia no Brasil com os jovens que a sociedade colocou de parte nem a empolgante manifestação de fé da Jornada Mundial da Juventude em Madrid com que o Papa alemão se envolveu, mesmo perante uma repentina e furiosa tempestade.
Entretanto, algumas das suas iniciativas ficaram queimadas pelo alegado deslize no discurso na Universidade de Ratisbona, pela desvalorização da eficácia do preservativo no encontro com os jornalistas no voo da viagem pastoral à África ou pelo levantamento da excomunhão a um bispo da Fraternidade de São Pio X, que veio a negar o holocausto (como se o Papa tivesse a obrigação de saber das declarações prévias ou posteriores dos bispos). Até o seu terceiro volume sobre Jesus Cristo (o da Infância) ficou marcado pela alegada expulsão da vaca e do burro do presépio, quando apenas constata que os Evangelhos não mencionam a presença de animais no presépio.
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As pessoas a quem tenho o ensejo de confiar o que penso sobre o Papa Francisco e as que eventualmente leem aquilo que vou escrevendo a seu respeito, sabem muito bem qual é a minha posição a respeito do atual Pontífice. Não alinho naquela anomia discursiva que proferiu quando disse que não era um teólogo e tive a ocasião de explicitar o meu ponto de vista sobre tal anomia. Aliás, ele próprio quando, no encontro com os jornalistas no voo de Manila para Roma em 19 de janeiro, se referiu aos beatos que foram ou vão ser proximamente objeto da canonização equipolente, acentuou o seu enquadramento na teologia da Evangelii Gaudium, a sua primeira exortação apostólica (afinal, assume-se como teólogo), como poderia mencionar a encíclica Lumen Fidei. E também não acredito que ele seja mais apreciado pelo homem da rua do que pelos teólogos, como não considero que se possa afirmar que o seu discurso não seja profundo. Sempre ouvi dizer – e disso estou plenamente convicto, até por experiência própria – que a maior profundidade de conhecimento sobre uma determinada matéria permite um à vontade maior no seu tratamento e na comunicação da mesma aos outros. Por isso, julgo que se devem desenganar aqueles que pretendem confundir coloquialidade da linguagem franciscana com qualquer pretensa superficialidade, aligeiramento ou brevidade de discurso.
Reconheço que Francisco traz à Igreja e ao devir cristão algumas novidades doutrinais, se não ao nível nuclear, ao menos ao nível da evidência e do enfoque. Refiro a imagem da Igreja em saída às periferias existenciais e a do hospital de campanha ao serviço da humanidade ferida. Menciono a marca da ação pastoral com o odor das ovelhas ou a preferência por uma Igreja acidentada porque se envolve a sério, a uma Igreja limpa e segura que não sai do seu centro de conforto. Acentuo o discurso veemente perante as altas figuras da malha eclesiástica, como o discurso das quinze doenças ou disfunções, bem como o discurso à Congregação dos Bispos e aos Núncios Apostólicos sobre o perfil pessoal, teológico, espiritual e pastoral do Bispo – incluindo a capacidade e tenacidade em se atravessar perante Deus e os poderes em favor do seu povo como Moisés.
Todavia, para enaltecer o perfil, a teologia, o discurso, os gestos e a ação do Papa Francisco, não quero nem julgo necessário (e ele tem mostrado que não o quer) subestimar o perfil, a teologia, o discurso, os gestos e a ação dos predecessores. Tenho referido abertamente que o meu Papa de referência é ou foi Paulo VI, pelos motivos que, por vezes, tenho apontado (e fiquei bem contente com a sua beatificação). No entanto, não posso deixar de relevar toda a ação de João Paulo II (para já não falar dos eloquentes sinais que o curtíssimo pontificado de João Paulo I deu à Igreja e ao Mundo) sobretudo no atinente à geopolítica europeia, às políticas sociais e económicas, à teologia do trabalho e à teologia do corpo e à presença física na maior parte dos países do Orbe. Quanto ao Papa Bento XVI, é relevante o discurso espiritual, teológico e pastoral, a denúncia das injustiças sociais, a leitura que faz da História e a preocupação ecológica. Tornam-se inesquecíveis os seus discursos no Parlamento de Berlim e no Parlamento de Londres, tal como o dinamismo impresso nos diversos marcos da sua viagem a Portugal em maio de 2010.
Ora, parece que já disse tudo sobre o Papa argentino. Não, não disse nem direi. No entanto, apraz-me sublinhar que a sua teologia ecológica vem na continuidade da postura discursiva do seu predecessor imediato. Só que Francisco, além de a fazer dimanar apenas da dinâmica bíblica da criação, como o Papa alemão, insere-a, logo a partir do início do seu pontificado, na obrigação de providência que, ao contrário de Caim, que achava esquisito ter de ser o guarda do seu irmão, todos temos de, a exemplo de São José, guardar Jesus, Maria, Deus, os irmãos, o mundo criado e a nós mesmos. Também nesta vertente da obrigação de providência somos semelhantes a Deus. Provavelmente, também nesta matéria, os escandalizadiços poderão encontrar pedras de tropeço, já que Francisco, ao realçar a obrigação ecológica dos homens, os aponta como os maiores responsáveis pelos cataclismos naturais, por via das suas intervenções indisciplinadas na natureza. Já isto seria mau para alguns, mas será pior a anomia discursiva ao citar o aforismo: Deus perdoa sempre (Não saberá o Papa que os seis pecados contra o espírito Santo não têm perdão?!), os homens às vezes (Então os homens não devem perdoar sempre?!), mas a natureza nunca perdoa (será ela imputável?!).
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Ora, é tempo de nos desprendermos das anomias discursivas presentes no discurso informal, mesmo no do Papa, que também é gente e precisa de usar exemplos ilustrativos e socorrer-se das comparações, metáforas e hipérboles do quotidiano. Não acompanho Aura Miguel, que pensa que o Papa não devia ter falado nos coelhos. Temos de ser menos hipercríticos e mais atentos ao essencial, mais reflexivos, mais pró-ativos e talvez mais cristãos.

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