Bastou que o Papa Francisco
tivesse lançado mão de um hipotético exemplo eloquente para ilustrar a clareza
da sua tese para que o considerassem desafinado aqueles construtores de opinião
que habitualmente o elogiam baseados no estilo ou na informalidade de parte de
seu discurso. Isto acontece porque não ouvem as suas declarações de modo
holístico, não atingem a profundidade de sua linguagem aparentemente fácil e,
muitas vezes, coloquial e, sobretudo, não o leem. No entanto, ofuscaram a
doutrina e os pontos de vista de seus antecessores, sobretudo o Papa emérito,
de quem destacam como positivo apenas o gesto da renúncia.
Mas voltemos a Francisco. De que
orquestra é que ele desafinou, se é que existe alguma séria e abrangente no posicionamento
das questões que se levantam hoje sobre a relação entre a liberdade de
expressão e o dever de respeitar as posições de outrem, mormente naquilo que
diz respeito às religiões, que se estribam nas liberdades de pensamento, de expressão,
de culto (em privado e em público), de manifestação, de associação, de ensino e
de estabelecimento de protocolos com quem quer que entendam, incluindo os
Estados que estejam disponíveis.
Durante o encontro com os
jornalistas no voo de Colombo para Manila, no passado dia 15 de janeiro, o Pontífice
prestou declarações sobre a violência do terrorismo, a liberdade de expressão e
a liberdade religiosa. E fê-lo de modo informal em resposta a uma pergunta do jornalista
Sébastien Maillard, pelo grupo
francês:
Santo Padre, ontem de manhã, durante a Missa,
falou da liberdade religiosa como direito humano fundamental. Mas, no respeito
das diferentes religiões, até que ponto se pode chegar na liberdade de
expressão, já que também esta é um direito humano fundamental?
Na
sua resposta, Francisco começou por elogiar a sensatez da pergunta formulada e,
com a humildade que se lhe reconhece no discurso público informal (utilizando palavras como “creio”,
“pense”, “não sei”, “digamos”, as reticências e verbos no modo conjuntivo), declarou: “Creio que ambos sejam direitos humanos
fundamentais: a liberdade religiosa e a liberdade de expressão”. E
continuou: “Não se pode esconder uma
verdade, ou seja, que cada um tem o direito de praticar a sua religião, sem
ofender, livremente. Assim fazemos, assim queremos que todos façam”.
Depois,
foi claro na condenação da guerra, do terrorismo, da violência:
“Não se pode ofender, fazer a guerra, matar em nome da própria religião,
isto é, em nome de Deus. Aquilo que está a acontecer agora faz-nos pensar…
surpreende-nos. Mas não esqueçamos a nossa história: quantas guerras religiosas
tivemos! O senhor pense na ‘noite de São Bartolomeu’... Como se compreende
aquilo? Também nós fomos pecadores neste ponto. Mas não se pode matar em nome
de Deus. Isto é uma aberração. Matar em nome de Deus é uma aberração. Creio que isto seja o ponto principal na
liberdade de religião: deve-se praticar com liberdade, sem ofender, mas sem
impor nem matar”.
No
atinente à liberdade de expressão, o Pontífice foi mais longe que o comum dos
pensadores, políticos e comentadores, salientando nessa liberdade não só o
direito de expressão, mas também a obrigação de se dizer o que se pensa quando
está em causa o bem comum, obrigação que impende especialmente sobre quem tem
responsabilidades públicas:
“Quanto à liberdade de
expressão. Cada um tem não só a liberdade, o
direito, mas também a obrigação de dizer o que pensa para ajudar o bem comum.
A obrigação. Pensemos num deputado, num senador: se ele não disser aquilo que,
no seu modo de ver, é a verdadeira estrada, não colabora para o bem comum. E
não só estes… muitos outros. Temos a obrigação de dizer abertamente; temos esta
liberdade, mas sem ofender”.
Sobre
a forma de reagir, foi claro como prometeu e deu um hipotético exemplo, mas
cujo conteúdo ou similar dá origem no dia a dia a reações como aquela que ele
caraterizou:
“É verdade que não se
pode reagir violentamente, mas se o Dr. Gasbarri, grande amigo, me diz um
palavrão contra a minha mãe, apanha um soco. É normal! É normal (este “normal”
não significa “de acordo com as normas”, mas “habitualmente” ou “em reação primária
– assim interpreto). Não se pode provocar, não se pode insultar a fé dos
outros, não se pode zombar da fé”.
E
citou o Papa Bento XVI. Citou-o de cor, confessando que não se lembra bem de
qual o discurso (efetivamente foram pelo menos dois: 12.09.2006, em Regensburg; e 22-09-2011, no Parlamento
alemão), para condenar a consideração por alguns de que as religiões
configuram uma espécie de subcultura, alegando a herança “iluminista” (Bento refere sobretudo o “positivismo”,
que já representa uma degradação do iluminismo) e estabelecendo para elas um regime de tolerância,
mas vilipendiando o seu valor:
“O Papa Bento XVI, num
discurso – não me lembro bem onde – falara desta mentalidade pós-positivista,
da metafísica pós-positivista, que acabava por levar a crer que as religiões ou
as expressões religiosas são uma espécie de subcultura, que são toleradas, mas
valem pouco, não fazem parte da cultura iluminada. E este é um legado do
Iluminismo. Há tantas pessoas que insultam as religiões, fazem pouco delas,
digamos que ‘brincam’ com a religião dos outros… estas pessoas provocam e
pode-lhes suceder o que aconteceria ao Dr. Gabarri se dissesse algo contra a
minha mãe. Há um limite. Toda a religião tem dignidade; toda a religião que
respeite a vida humana, a pessoa humana. E eu não posso fazer pouco dela. Isto
é um limite. Servi-me do exemplo do limite, para dizer que, na liberdade de
expressão, há limites, como no caso da minha mãe. Não sei se consegui responder
à pergunta”.
Porém, Bento
XVI, tanto no discurso polémico na Universidade de Regensburg como no francamente aplaudido pelo Parlamento alemão no
Palácio
Reichstag de Berlim, situa os conteúdos assumidos por
Bergoglio nas sequelas do positivismo. Condenando a mentalidade puramente positivista,
o Papa Ratzinger, em 12.09.2006, entre outras coisas, afirmou:
“Só o tipo de certeza que deriva da
sinergia entre matemática e experiência nos permite falar de cientificidade.
Tudo o que pretenda ser ciência deve confrontar-se com este critério. E assim
as ciências que dizem respeito à realidade humana, como a história, a
psicologia, a sociologia e a filosofia, procuravam também aproximar-se deste
cânone da cientificidade. Entretanto, para as nossas reflexões, é ainda
importante o facto de o método como tal excluir o problema de Deus,
apresentando-o como problema acientífico ou pré-científico. Mas, aqui estamos
perante uma redução do espaço próprio da ciência e da razão, facto este que é
obrigatório pôr em questão”.
E, em 22-09-2011, assegurou:
“O conceito positivista de
natureza e de razão, a visão positivista do mundo é, no seu conjunto, uma
parcela grandiosa do conhecimento humano e da capacidade humana, à qual não
devemos de modo algum renunciar. Mas ela mesma no seu conjunto não é uma
cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda a sua
amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura
suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de
subculturas, aquela diminui o homem, ameaça a sua humanidade”.
Neste contexto de relação
entre a fé e razão, o Papa alemão lembrou o contributo do cristianismo para a
cultura jurídica, originado num movimento filosófico e jurídico do século II a.C.,
desenvolvido ainda na Idade Média cristã e chegado ao clímax na Declaração dos
Direitos Humanos de 1949, assumidos pela encíclica Pacem in Terris, de São João XXIII. Segundo Bento XVI, tanto a
ética como a religião “são consideradas fora do âmbito da razão no sentido
estrito do termo”. E, para dirimir esta questão, esperava que houvesse “uma discussão
pública”, com o escopo de superar “os preconceitos positivistas que criaram uma
mentalidade redutora da religião, considerada como uma subcultura:
“A razão positivista, que
se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do
que é funcional, assemelha-se aos edifícios de cimento armado sem janelas, nos
quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes
dois elementos do amplo mundo de Deus. (…) Não podemos iludir-nos, pois em tal
mundo autoconstruído bebemos em segredo e igualmente nos recursos de Deus, que
transformamos em produtos nossos. É preciso tornar a abrir as janelas, devemos
olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto
de modo justo”.
***
Entretanto,
por ocasião do voo de regresso ao Vaticano, a 19 de janeiro, o Papa Francisco
completou o seu pensamento, voltando à questão da liberdade de expressão e a
reação violenta, dadas as repercussões das suas declarações anteriores. Porfiou
que não estava a justificar qualquer forma de violência e defendeu o seu ponto
de vista sobre a liberdade de expressão e os seus limites. Mais. A liberdade de expressão não dá o direito de ofender o próximo:
“Em teoria, podemos dizer que uma
reação violenta a uma ofensa, a uma provocação, não é aceitável, não é uma
coisa boa. Temos de fazer o que o Evangelho diz, devemos oferecer a outra face.
Em teoria, podemos dizer que entendemos o que é a liberdade de expressão. Em
teoria, todos concordamos. Mas somos humanos. E há a prudência, que é uma
virtude da coexistência humana. Eu não posso insultar ou provocar alguém
continuamente sob risco de o deixar exasperado e sob o risco de receber uma
reação injusta”. (…). “O que estou a dizer é que a liberdade de expressão
precisa de levar em conta a natureza humana e isso significa que é preciso ser-se
prudente. A prudência é a virtude humana que regula os nossos relacionamentos.
Uma reação violenta é sempre ruim (...) É por isso que a liberdade deve andar
sempre de mãos dadas com a prudência”.
***
Sendo
assim, pergunto-me de quem é que o Papa desafinou? Certamente que não da linha
dos seus predecessores e da doutrina da Igreja, mas da linha infelizmente vigente
na História durante bastante tempo. Desafinou do comum dos políticos (alguns dos quais apregoam
a não violência, mas praticam-na; outros cantam a liberdade de expressão, mas
perseguem, prendem e até matam jornalistas…), dos pensadores, jornalistas e interventores
como Rashdie e outros que defendem a liberdade de expressão sem limites para si
próprios, mas negam-na aos outros e dos cobardes que não dizem o que pensam com
medo ou para agradar aos chefes. E que autoridade têm todos estes para dizerem
que o Papa está desafinado? Demais, gosto de apreciar uma boa composição musical
em que o compositor utilizou na harmonização as dissonâncias de onde a onde,
mas sobretudo na cadência ou ponto de órgão (com o acorde de 7.ª diminuta) no compasso anterior ao
final ou, até, por vezes, um acorde do modo menor com a 5.ª diminuta.
Depois,
mais do que afirmar que “a minha liberdade termina quando ou onde começa a
liberdade do outro”, quero assentar em que “a liberdade de cada um nasce com o
nascimento de cada um”, “é simultânea com a dos outros” e torna-se capaz de
expressão quando se atinge o uso da razão. Assim, quando as liberdades de uns e
de outros se chocam, dispomos dos remédios do bom senso e da prudência. Por isso,
se firmam acordos, se estabelece o protocolo e se convencionaram formas de tratamento
e definiram precedências.
Já
agora, um aviso: se por estas matérias acham que Francisco desafinou, preparem-se
que mais desafinações virão.
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