terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Um Papa desafinado!

Bastou que o Papa Francisco tivesse lançado mão de um hipotético exemplo eloquente para ilustrar a clareza da sua tese para que o considerassem desafinado aqueles construtores de opinião que habitualmente o elogiam baseados no estilo ou na informalidade de parte de seu discurso. Isto acontece porque não ouvem as suas declarações de modo holístico, não atingem a profundidade de sua linguagem aparentemente fácil e, muitas vezes, coloquial e, sobretudo, não o leem. No entanto, ofuscaram a doutrina e os pontos de vista de seus antecessores, sobretudo o Papa emérito, de quem destacam como positivo apenas o gesto da renúncia.
Mas voltemos a Francisco. De que orquestra é que ele desafinou, se é que existe alguma séria e abrangente no posicionamento das questões que se levantam hoje sobre a relação entre a liberdade de expressão e o dever de respeitar as posições de outrem, mormente naquilo que diz respeito às religiões, que se estribam nas liberdades de pensamento, de expressão, de culto (em privado e em público), de manifestação, de associação, de ensino e de estabelecimento de protocolos com quem quer que entendam, incluindo os Estados que estejam disponíveis.
Durante o encontro com os jornalistas no voo de Colombo para Manila, no passado dia 15 de janeiro, o Pontífice prestou declarações sobre a violência do terrorismo, a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. E fê-lo de modo informal em resposta a uma pergunta do jornalista Sébastien Maillard, pelo grupo francês:
Santo Padre, ontem de manhã, durante a Missa, falou da liberdade religiosa como direito humano fundamental. Mas, no respeito das diferentes religiões, até que ponto se pode chegar na liberdade de expressão, já que também esta é um direito humano fundamental?
Na sua resposta, Francisco começou por elogiar a sensatez da pergunta formulada e, com a humildade que se lhe reconhece no discurso público informal (utilizando palavras como “creio”, “pense”, “não sei”, “digamos”, as reticências e verbos no modo conjuntivo), declarou: “Creio que ambos sejam direitos humanos fundamentais: a liberdade religiosa e a liberdade de expressão”. E continuou: “Não se pode esconder uma verdade, ou seja, que cada um tem o direito de praticar a sua religião, sem ofender, livremente. Assim fazemos, assim queremos que todos façam”.
Depois, foi claro na condenação da guerra, do terrorismo, da violência:
Não se pode ofender, fazer a guerra, matar em nome da própria religião, isto é, em nome de Deus. Aquilo que está a acontecer agora faz-nos pensar… surpreende-nos. Mas não esqueçamos a nossa história: quantas guerras religiosas tivemos! O senhor pense na ‘noite de São Bartolomeu’... Como se compreende aquilo? Também nós fomos pecadores neste ponto. Mas não se pode matar em nome de Deus. Isto é uma aberração. Matar em nome de Deus é uma aberração. Creio que isto seja o ponto principal na liberdade de religião: deve-se praticar com liberdade, sem ofender, mas sem impor nem matar”.
No atinente à liberdade de expressão, o Pontífice foi mais longe que o comum dos pensadores, políticos e comentadores, salientando nessa liberdade não só o direito de expressão, mas também a obrigação de se dizer o que se pensa quando está em causa o bem comum, obrigação que impende especialmente sobre quem tem responsabilidades públicas:
“Quanto à liberdade de expressão. Cada um tem não só a liberdade, o direito, mas também a obrigação de dizer o que pensa para ajudar o bem comum. A obrigação. Pensemos num deputado, num senador: se ele não disser aquilo que, no seu modo de ver, é a verdadeira estrada, não colabora para o bem comum. E não só estes… muitos outros. Temos a obrigação de dizer abertamente; temos esta liberdade, mas sem ofender”.
Sobre a forma de reagir, foi claro como prometeu e deu um hipotético exemplo, mas cujo conteúdo ou similar dá origem no dia a dia a reações como aquela que ele caraterizou:
“É verdade que não se pode reagir violentamente, mas se o Dr. Gasbarri, grande amigo, me diz um palavrão contra a minha mãe, apanha um soco. É normal! É normal (este “normal” não significa “de acordo com as normas”, mas “habitualmente” ou “em reação primária – assim interpreto). Não se pode provocar, não se pode insultar a fé dos outros, não se pode zombar da fé”.
E citou o Papa Bento XVI. Citou-o de cor, confessando que não se lembra bem de qual o discurso (efetivamente foram pelo menos dois: 12.09.2006, em Regensburg; e 22-09-2011, no Parlamento alemão), para condenar a consideração por alguns de que as religiões configuram uma espécie de subcultura, alegando a herança “iluminista” (Bento refere sobretudo o “positivismo”, que já representa uma degradação do iluminismo) e estabelecendo para elas um regime de tolerância, mas vilipendiando o seu valor:
“O Papa Bento XVI, num discurso – não me lembro bem onde – falara desta mentalidade pós-positivista, da metafísica pós-positivista, que acabava por levar a crer que as religiões ou as expressões religiosas são uma espécie de subcultura, que são toleradas, mas valem pouco, não fazem parte da cultura iluminada. E este é um legado do Iluminismo. Há tantas pessoas que insultam as religiões, fazem pouco delas, digamos que ‘brincam’ com a religião dos outros… estas pessoas provocam e pode-lhes suceder o que aconteceria ao Dr. Gabarri se dissesse algo contra a minha mãe. Há um limite. Toda a religião tem dignidade; toda a religião que respeite a vida humana, a pessoa humana. E eu não posso fazer pouco dela. Isto é um limite. Servi-me do exemplo do limite, para dizer que, na liberdade de expressão, há limites, como no caso da minha mãe. Não sei se consegui responder à pergunta”.
Porém, Bento XVI, tanto no discurso polémico na Universidade de Regensburg como no francamente aplaudido pelo Parlamento alemão no Palácio Reichstag de Berlim, situa os conteúdos assumidos por Bergoglio nas sequelas do positivismo. Condenando a mentalidade puramente positivista, o Papa Ratzinger, em 12.09.2006, entre outras coisas, afirmou:
“Só o tipo de certeza que deriva da sinergia entre matemática e experiência nos permite falar de cientificidade. Tudo o que pretenda ser ciência deve confrontar-se com este critério. E assim as ciências que dizem respeito à realidade humana, como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia, procuravam também aproximar-se deste cânone da cientificidade. Entretanto, para as nossas reflexões, é ainda importante o facto de o método como tal excluir o problema de Deus, apresentando-o como problema acientífico ou pré-científico. Mas, aqui estamos perante uma redução do espaço próprio da ciência e da razão, facto este que é obrigatório pôr em questão”.
E, em 22-09-2011, assegurou:
“O conceito positivista de natureza e de razão, a visão positivista do mundo é, no seu conjunto, uma parcela grandiosa do conhecimento humano e da capacidade humana, à qual não devemos de modo algum renunciar. Mas ela mesma no seu conjunto não é uma cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, ameaça a sua humanidade”.
Neste contexto de relação entre a fé e razão, o Papa alemão lembrou o contributo do cristianismo para a cultura jurídica, originado num movimento filosófico e jurídico do século II a.C., desenvolvido ainda na Idade Média cristã e chegado ao clímax na Declaração dos Direitos Humanos de 1949, assumidos pela encíclica Pacem in Terris, de São João XXIII. Segundo Bento XVI, tanto a ética como a religião “são consideradas fora do âmbito da razão no sentido estrito do termo”. E, para dirimir esta questão, esperava que houvesse “uma discussão pública”, com o escopo de superar “os preconceitos positivistas que criaram uma mentalidade redutora da religião, considerada como uma subcultura:
“A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de cimento armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus. (…) Não podemos iludir-nos, pois em tal mundo autoconstruído bebemos em segredo e igualmente nos recursos de Deus, que transformamos em produtos nossos. É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo”.
***
Entretanto, por ocasião do voo de regresso ao Vaticano, a 19 de janeiro, o Papa Francisco completou o seu pensamento, voltando à questão da liberdade de expressão e a reação violenta, dadas as repercussões das suas declarações anteriores. Porfiou que não estava a justificar qualquer forma de violência e defendeu o seu ponto de vista sobre a liberdade de expressão e os seus limites. Mais. A liberdade de expressão não dá o direito de ofender o próximo:
“Em teoria, podemos dizer que uma reação violenta a uma ofensa, a uma provocação, não é aceitável, não é uma coisa boa. Temos de fazer o que o Evangelho diz, devemos oferecer a outra face. Em teoria, podemos dizer que entendemos o que é a liberdade de expressão. Em teoria, todos concordamos. Mas somos humanos. E há a prudência, que é uma virtude da coexistência humana. Eu não posso insultar ou provocar alguém continuamente sob risco de o deixar exasperado e sob o risco de receber uma reação injusta”. (…). “O que estou a dizer é que a liberdade de expressão precisa de levar em conta a natureza humana e isso significa que é preciso ser-se prudente. A prudência é a virtude humana que regula os nossos relacionamentos. Uma reação violenta é sempre ruim (...) É por isso que a liberdade deve andar sempre de mãos dadas com a prudência”.
***
Sendo assim, pergunto-me de quem é que o Papa desafinou? Certamente que não da linha dos seus predecessores e da doutrina da Igreja, mas da linha infelizmente vigente na História durante bastante tempo. Desafinou do comum dos políticos (alguns dos quais apregoam a não violência, mas praticam-na; outros cantam a liberdade de expressão, mas perseguem, prendem e até matam jornalistas…), dos pensadores, jornalistas e interventores como Rashdie e outros que defendem a liberdade de expressão sem limites para si próprios, mas negam-na aos outros e dos cobardes que não dizem o que pensam com medo ou para agradar aos chefes. E que autoridade têm todos estes para dizerem que o Papa está desafinado? Demais, gosto de apreciar uma boa composição musical em que o compositor utilizou na harmonização as dissonâncias de onde a onde, mas sobretudo na cadência ou ponto de órgão (com o acorde de 7.ª diminuta) no compasso anterior ao final ou, até, por vezes, um acorde do modo menor com a 5.ª diminuta.
Depois, mais do que afirmar que “a minha liberdade termina quando ou onde começa a liberdade do outro”, quero assentar em que “a liberdade de cada um nasce com o nascimento de cada um”, “é simultânea com a dos outros” e torna-se capaz de expressão quando se atinge o uso da razão. Assim, quando as liberdades de uns e de outros se chocam, dispomos dos remédios do bom senso e da prudência. Por isso, se firmam acordos, se estabelece o protocolo e se convencionaram formas de tratamento e definiram precedências.

Já agora, um aviso: se por estas matérias acham que Francisco desafinou, preparem-se que mais desafinações virão.

Sem comentários:

Enviar um comentário