Senhor dos Perseguidos

Ainda no outro milénio, passei por uma freguesia do concelho de Castro Daire, mais propriamente a freguesia de Gosende, por ocasião da festa de São Pedro, o padroeiro. Como é usual em muitas paróquias, também ali, o abade de então fez a nomeação pública dos mordomos de todos os santos e santas, bem como de diversos títulos de Cristo e da Virgem Maria. Entre essas nomeações, uma delas me ficou na memória – a do Senhor dos Perseguidos.

Nesta quadra natalícia, precisamente no dia 28 de dezembro, em que, se não fora domingo (foi o dia da Sagrada Família), se teria celebrado a festa dos Santos Inocentes – vá lá saber-se porquê – lembrei-me do Senhor dos Perseguidos.

Depois, pensei melhor e reparei que esse “Senhor dos Perseguidos” é o mesmo “Senhor Perseguido”. Com efeito, esses santos inocentes são aqueles meninos que foram mortos à ordem de Herodes por ocasião do Nascimento de Jesus. Mas o grande perseguido era o menino que nascera no presépio de Belém e que Maria e José, avisados pelo anjo, levaram em fuga para o Egito (cf Mt 2,13-14). Com efeito, Herodes tinha pedido aos magos que se informassem bem acerca do menino – o rei dos judeus – e que, depois de O encontrarem, lhe viessem comunicar porque também ele O queria homenagear. Porém, os magos foram avisados em sonhos da mortífera intenção Herodiana e, por consequência, regressaram ao seu país por outro caminho (cf Mt 2,8-12). Ora, Herodes, sentindo-se defraudado pela atitude dos magos, determinou a morte de todos os meninos de Belém e arredores com menos de dois anos de idade (cf Mt 2,17).

Já o Antigo Testamento nos dá conta do martírio do velho Eleázer e dos irmãos Macabeus (cf 2Mac 6,18-31; 7,1-42), da morte dos filhos de Raquel em Ramá (Jr 31,15) e da morte dos profetas e apedrejamento daqueles que são enviados a Jerusalém (com ecos neotestamentários – Lc 13,34; Mt 23,27) por via da perseguição – factos antecipatórios dos que viriam a suceder com Cristo e com aqueles que O seguiriam.

No entanto, o grande perseguido e perseguido até à morte é o próprio Jesus Cristo. Os Evangelhos apresentam esse epifenómeno persecutório ao longo dos diversos textos. João explica o insucesso das perseguições pelo facto de ainda não ter chegado a hora (Jo 7,30). Mas, chegada a hora, a perseguição consumou-se (cf Jo 19,16.17.30).

Por outro lado, Jesus promete perseguições e a morte àqueles que O seguem: “sereis levados à presença de governadores e de reis, por minha causa para dardes testemunho diante deles e dos pagãos” (Mt 10,18), pois, “o discípulo não é mais do que o Mestre, nem o servo mais do que o Senhor” (Mt 10,24). Mas Cristo identifica-se com os perseguidos, os desprezados e os maltratados: “quem vos rejeita, a Mim me rejeita” (Lc 10,26); “sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que deixastes de o fazer” (Mt 25,45).

Assim se percebe que Jesus Cristo não é somente o “Senhor dos Perseguidos” como é mesmo o “Senhor Perseguido” na pessoa dos “Perseguidos”.

Esta afirmação é ilustrada com a visão de Paulo a caminho de Damasco. Paulo, convicto e feroz perseguidor dos discípulos de Jesus, ia a Damasco munido de credenciais dos Sacerdotes e dos Chefes para prender quantos seguidores ali encontrasse. Entretanto, já perto de Damasco, viu-se envolvido por uma intensa luz vinda do céu; e, caindo por terra, ouviu uma voz que lhe perguntava: “Saulo, Saulo, porque me persegues”? E Paulo pergunta: “Quem és tu Senhor”? E a resposta foi clara: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (At 9,1-5).

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A Igreja, por mandato que recebeu do seu Mestre e Fundador, tem andado pelo Mundo a fazer discípulos entre êxitos, manifestados em conversões (At 2,41; 4,4; 11,19-26) e vida de testemunho e partilha (At 2,42-47; 4,32-37; 11,27-30), e perseguições (At 4,2.18.21; 7,11-15.54-60; 12,1-19).

Já em tempos fizemos referência ao martírio de Estêvão, considerado o protomártir do cristianismo (vd At 6,8-15; 7,54-60), e sabemos que Paulo, ao sentir-se acossado pelas autoridades judaicas, que pressionavam as autoridades imperiais a condená-lo, fez valer os direitos inerentes ao seu estatuto de cidadão romano e lançou o brado “Caesarem appello” (Apelo para César) – como se pode ver nos capítulos 25 e seguintes do Livro dos Atos dos Apóstolos. Tudo sofreu, desde tempestades, iminência de naufrágio, prisão e flagelação. Porém, em nome do estatuto de cidadão romano (Civis sum romanus), recusou a morte por crucifixão (suplício de escravo), tendo morrido mártir, mas por decapitação (como se diria hoje, execução limpa).

Não se pode, entretanto, olvidar que o modelo de todos os mártires, o seu arquétipo é O Mártir do Gólgota, Jesus Cristo, de quem Enrique Perez Escrich escreve, na obra com aquele título:

“Em seguida, calcularam as suas forças e a imensidade do perigo que os ameaçava e rugindo como os habitantes das selvas africanas, com uma mão continham as pulsações do coração, devorado pela consciência, enquanto com a outra assinavam a morte do Redentor. A raivosa impotência e o cego orgulho dos tiranos fizeram com que se levantasse a Deus um cadafalso! A tragédia divina teve o seu termo. Cristo subiu ao calvário, exalou o último suspiro nos braços do lenho sagrado; foi dali tirado para o sepulcro, e ao terceiro dia elevou-se ao céu em apoteose”.

Mas o resultado não se fez esperar:

“As suas lágrimas caíram como gotas de orvalho sobre o coração da humanidade; e as suas palavras foram a fonte da consolação, o seu sangue a semente preciosíssima da religião cristã, a cruz o sagrado sinal da redenção, a chave do paraíso”.

Sobre os seus seguidores e continuadores, o autor valenciano escreve:

“Os apóstolos da fé, os propagadores da nova lei, espalharam-se pela terra e, não se importando como o martírio, começaram a semear a palavra humanidade até então desconhecida no mundo. O Cristianismo cresceu como uma bola de neve. Os circos de Roma, os tormentos da Índia, não puderam esmagar-lhe a radiante e formosa cabeça. Nero, Cómodo, Diocleciano, Maxêncio, todos esses verdugos da humanidade, sacrificaram mais de um milhão de cristãos; porém, o Cristianismo renasceu das suas cinzas como a ave fénix. Por toda a parte renasciam novos rebentos da fé, que estendiam a sua nova e viçosa seiva pelo coração da humanidade”.

É óbvio que o mencionado prosador, no seu romantismo, não examina exaustivamente todos os casos de perseguição que os cristãos têm sofrido ao longo do tempo, por força da persistência do reino das trevas, por capricho militante do antiteísmo, pelo medo da incompatibilidade dos poderes totalitariamente almejados, instituídos e mantidos (à esquerda e à direita), pela dinâmica de irracionalidade que as revoluções assumem em determinada fase ou pela sede de lucro, domínio e espezinhamento. Todavia, não deixa o autor de colocar a temática nos carris da razão e do sentido da economia da Salvação.

E a onda persecutória continua. O Papa Francisco não esquece o epifenómeno. Referiu-o na entrevista concedida a Henrique Cybermann, transmitida na SIC Notícias a 9 de junho de 2014, em que referiu:

“Os cristãos perseguidos são uma preocupação que me toca de perto como pastor. Sei muitas coisas sobre estas perseguições que não me parece prudente contar aqui, para não ofender ninguém. Mas há lugares nos quais é proibido ter uma Bíblia ou ensinar o catecismo ou andar com uma cruz. O que quero tornar mais claro é isto: estou convencido de que a perseguição contra os cristãos é hoje mais forte do que nos primeiros séculos da Igreja. Hoje há mais cristãos mártires do que naquele tempo. E não é fantasia, são os números”.

E, no dia 30 do mesmo mês, na memória que se faz dos Mártires da Igreja Romana, cruelmente assassinados no ano 64 na colina do Vaticano por ordem do Imperador Nero após do incêndio de Roma, o Pontífice afirmou, na homilia da Missa na Casa de Santa Marta, que “há mais cristãos perseguidos hoje do que nos primeiros séculos”. Desta vez, para sustentar as suas afirmações factuais, Francisco faz referências concretas:

Pensemos no Médio Oriente, cristãos que têm de fugir das perseguições, cristãos assassinados pelos seus perseguidores. Também os cristãos são mandados embora em modo elegante, com luvas brancas: também isto é uma perseguição. Hoje há mais testemunhas, mais mártires na Igreja do que nos primeiros séculos. E nesta Missa, fazendo memória dos nossos gloriosos antepassados, aqui em Roma, pensemos também nos nossos irmãos que vivem perseguidos, que sofrem e que com o seu sangue fazem crescer a semente de tantas Igrejas pequeninas que nascem.” 

O Papa relevou o valor do testemunho dos cristãos especialmente dos mártires, afirmando que é assim que se faz a Igreja, deixando germinar o Espírito, o qual a faz crescer e dilatar.

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Por outro lado, não se pode escamotear o facto histórico da tentação inquisitória e persecutória, de consequências dramáticas, da própria Igreja, que, depois da fase teodosiana, não se limitou a evangelizar (fazer discípulos – Mt 28,19) dando as razões da esperança (1Pe 3,15), mas chegou a forçar conversões, combater judeus e muçulmanos, impor cristianismo aos aborígenes em diversas paragens do mundo. Ousou apontar o dedo aos judeus como “deicidas” e “pérfidos”, quando a solidariedade de Cristo O fez pedir, “Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34) e o Evangelho da Graça levou Pedro a dizer, “agora sei, irmãos, que agistes por ignorância, como também os vossos chefes” (At 3,17), e Estêvão a rezar, “Senhor, não lhes atribuas este pecado” (At 7,60).

Mesmo eminentes e voluntariosos filhos da Igreja foram inquiridos, perseguidos e condenados por delito de opinião ou por desvio da doutrina da fé. Que o digam os arquivos da Congregação da Doutrina da Fé ou da sua antecessora do Santo Ofício. Também de todos estes, Cristo é o Senhor dos Perseguidos (e neles o Perseguido), bem como de todos aqueles que sofrem na carne e no espírito as agruras das novas formas de escravatura denunciadas pelo Papa para o XLVIII Dia Mundial da Paz.

Os perseguidos a considerar não serão apenas os que o são explicitamente pelo nome de Jesus, mas todos o que sofrem pela Justiça e pelo atentado à dignidade humana.

Ademais, também o Papa condena o fundamentalismo das religiões:

“[A violência em nome de Deus] é uma contradição. Não corresponde ao nosso tempo, é algo de antigo. À luz da perspetiva histórica devemos dizer que nós, cristãos, por vezes, praticámo-la. Quando penso na Guerra dos Trinta Anos, era violência em nome de Deus. Hoje é inimaginável, certo? Por vezes chegamos, através da religião, a contradições muito sérias e muito graves. Nas três religiões [monoteístas] temos os nossos grupos fundamentalistas, pequenos em relação a todo o resto. Um grupo fundamentalista, mesmo se não mata ninguém, mesmo se não atinge ninguém, é violento. A estrutura mental do fundamentalismo é violência em nome de Deus.” (cf Entrevista a Henrique Cybermann).

Bem-aventurados aqueles e aquelas que em qualquer parte do mundo e em qualquer tempo são votados à perseguição e à escravatura, porque o Perseguido dos Perseguidos, o Servo dos Servos, estará com eles!