Acompanhei hoje, dia 22 de janeiro,
pela televisão em direto uns trechos do debate sobre alguns pontos da ordem do
dia da sessão do plenário da Assembleia da República (AR), incluindo o tempo de
votações e houve algumas coisas que registei que julgo inconsequentes e mesmo a
raiar o disparate.
Atualmente, o número de deputados
em efetividade de funções é de 230, o máximo previsto constitucionalmente (vd
CRP, art.º 148.º).
Ora, fixando-me, a título de exemplo, num dos projetos de lei que foi submetido
a votação, verifiquei que foi rejeitado, tendo obtido os seguintes resultados:
119 votos contra; 91 votos a favor; e 10 abstenções. Fazendo as contas, o
somatório é de 220. Tudo teria sido bem mais transparente se a mesa da AR,
conforme forneceu aqueles números, também tivesse referido o número de
deputados que não estavam presentes no hemiciclo durante a votação. Bem sei que
o regimento não o impõe. Porém, para quem porfia tanto na transparência e no
rigor isto não é despiciendo.
Também os deputados desalinhados,
explícita ou implicitamente, em relação à respetiva bancada parlamentar,
fizeram saber que iriam apresentar declaração de voto nos termos regimentais. É
certo que tudo se poderá ler em Diário
das Sessões. Todavia, os espectadores gostariam de saber os termos em que
se apoiam as declarações de voto daqueles se abstêm ou as daqueles que, tendo
votado a favor (provavelmente no seguimento de
orientação partidária),
remetem a sua posição pessoal para o figurino da declaração de voto ulterior,
sobretudo quando a matéria em apreço não foi objeto da disciplina partidária. É
óbvio que, em temas fraturantes, o sentido de declaração de voto de quem vota
claramente desalinhado da orientação da respetiva bancada parlamentar é
percetível nos seus temos gerais, mesmo sem o conhecimento do conteúdo em
concreto, ao passo que a declaração sobre abstenção ou sobre voto alinhado com
o grupo torna-se, no mínimo, enigmática e incongruente.
Por outro lado, também reparei
que uma deputada tomou a palavra para referi que iria apresentar declaração de
voto sobre os quatro decretos-leis que foram votados. Perante a estranheza dos
restantes deputados, a Sua Excelência a Senhora Presidenta da AR esclareceu que
todos perceberam o que a senhora deputada tinha querido dizer.
Ora bem, é certo que a CRP não determina
condições específicas para que um cidadão possa ser eleito deputado. O seu
art.º 150.º até dispõe explicitamente que “são
elegíveis os cidadãos portugueses eleitores, salvas as restrições que a lei
eleitoral estabelecer por virtude de incompatibilidades locais ou de exercício
de certos cargos”. Todavia, quem não tem o mínimo de cultura política não
deveria apresentar-se a eleição ou, no mínimo, não tomar posse. Tendo-o feito,
deve em boa consciência política cuidar da sua formação e não cair em afirmações
inconsequentes ou disparatadas. Ademais, o n.º 3 do art.º180.º da CRP dispõe
que “cada grupo parlamentar tem direito a
dispor de locais de trabalho na sede da Assembleia, bem como de pessoal técnico
e administrativo da sua confiança, nos termos que a lei determinar”. E os
próprios partidos dispõem de sistemas de formação dos seus quadros bem como dos
deputados que apresentam à eleição.
Toda a gente sabe que um
decreto-lei é um diploma legislativo da responsabilidade do Governo, que o
discute, aprova e apresenta ao Presidente da República para promulgação. E é só
a partir daí que se denomina decreto-lei. Faz parte da competência legislativa
do governo nas matérias da sua competência ou em matérias da competência da AR,
de reserva relativa, o que, neste segundo caso, o Governo faz sob lei de
autorização legislativa da AR.
O produto da discussão e
aprovação dos deputados para valer como lei é denominado decreto e passa a
denominar-se lei a partir da promulgação da parte do Presidente da República.
No entanto, a iniciativa legislativa em matérias da competência da AR tem
denominações específicas conforme o setor de que provenham. Os textos que o
Governo apresenta à AR para discussão e aprovação como lei são propostas de
lei; os textos que um grupo de deputados ou um grupo parlamentar apresentam à
AR para discussão e aprovação como lei são projetos de lei; e os textos
apresentados à AR para discussão e aprovação como lei por um grupo de cidadãos,
em número consignado na lei, são petições.
***
Porém, a incultura política
displicente ou supina não é exclusiva dos deputados. Creio não ser admissível
que os detentores de qualquer lugar político e os detentores de cargo público
ou de gestão empresarial de topo poderem dar-se ao luxo ou ao desplante de
descurar a formação política ou declarar que não leram ou não sabem o conteúdo
de normativos fundamentais da República, nomeadamente a Constituição da República
Portuguesa, o estatuto do pessoal e do serviço que integram e outros normativos
que têm obrigação de aplicar por força dos cargos que desempenham.
O DN, de hoje, 22 de janeiro, insere, a páginas 6 e 7, um artigo de
opinião sob o título “Menu das regras”, em que se tecem críticas a altas figuras
militares que, por declarações públicas, “confirmam a tese de que os militares
têm pouca preparação sobre o Estado de Direito Democrático (EDD) que juraram cumprir e
defender”.
Nesse texto opinativo, o capitão-de-mar-e-guerra
reservista Jorge da Silva Paulo aponta-lhes o dedo por confundirem o EDD com
Estado Providência e pensarem que os seus deveres para com ele se reduzem às
eleições, desconhecendo as organizações políticas e administrativas de Portugal
e da União Europeia. Muitos chegam até a confundir instituições com pessoas e órgãos
com os seus titulares e desconhecem a organização financeira, mesmo quando
quanto tomam decisões nessa área. Diz o articulista que esse desconhecimento ou
confusão se inscreve no desprezo pelo Direito, que acham ser matéria de
juristas.
Mais. Ilustra estas afirmações
com o caso de um ex-CEM (chefe de estado maior) que terá dito aos deputados,
com a possibilidade de o público ouvir, que só uma vez lera a Constituição e o
fizera “de través” (Resta-me saber qual das versões terá
lido de través, já que o texto constitucional de 1976 passou por sete revisões,
estando em vigor o texto de 2005!).
Ademais, terá o dito ex-CEM revelado que não gosta de uma determinada lei pelo
facto de ela não usar o léxico militar e assegurando que a doutrina é o
fundamento da ação dos militares. Evidentemente que o citado oficial superior reservista
argumenta – e bem – que a doutrina não provém da tradição nem emana do chefe,
mas decorre da Constituição e das leis, que vinculam todos os cidadãos.
Ora, os militares quando
ingressam nos quadros permanentes fazem um juramento de fidelidade cuja fórmula
se transcreve do art.º 111.º do EMFAR (estatuto dos militares
das forças armadas):
“Juro,
por minha honra, como português e como oficial / sargento / praça da(o) Armada /
Exército / Força Aérea, guardar e fazer
guardar a Constituição da República, cumprir as ordens e deveres militares, de
acordo com as leis e regulamentos, contribuir com todas as minhas
capacidades para o prestígio das Forças Armadas e servir a minha Pátria em
todas as circunstâncias e sem limitações, mesmo com o sacrifício da própria
vida.”
(vd: DL n.º 236/99, de 25 de junho,
com as alterações feitas pela Declaração de Rectificação n.º 10-BI/99, de 31 de
julho, pela Lei n.º 25/2000, de 23 de agosto, pelo DL n.º 232/2001, de 25 de agosto,
pelo DL n.º 197-A/2003, de 30 de agosto, pelo DL n.º 70/2005, de 17 de março, pelo
DL n.º 166/2005, de 23 de setembro, e pelo DL n.º 310/2007, de 11 setembro).
Ora, é caso para perguntar como é
que podem “guardar e fazer guardar a Constituição da
República, cumprir as ordens e deveres militares, de acordo com as leis e
regulamentos” se não os leem? Ou se não os leem aqueles que detêm, segundo
o EMFAR, funções progressivas de comando direção e chefia e que devem administrar
a disciplina e a justiça? Recordo que na administração da justiça pode eventualmente
encontrar-se alguma norma ferida de inconstitucionalidade, devendo promover-se
o processo de apreciação dessa norma por quem de direito, o tribunal competente
com o conveniente recurso até ao TC.
Podem objetar que eles não leem,
já que têm assessores jurídicos e outros. Nesse caso, devem optar por conter-se
publicamente e não se armarem em não leitores da CRP ou das leis, já que dispõem
da sua leitura feita por outrem.
No entanto, há que ter em conta a
advertência do citado articulista no sentido de que “por muito que valham as
especificidades e culturas, quem desconhece as regras formais por que se rege,
e no EDD a todos por igual, está condenado, sem sequer o perceber (eu
penso que, muitas vezes, sem o querer saber), a fazer e repetir asneiras, graves, pelo impacto
que advém de ocorrerem num pilar da soberania (o pilar militar,
especifico eu) à
custa dos contribuintes”.
Cumpre, em abono desta
advertência, citar dois artigos da CRP: o art.º 273.º, que, em seu n.º 1,
estabelece que “é obrigação do Estado
assegurar a defesa nacional”; e o art.º 275.º, que define a missão das
forças armadas. O n.º 1 deste artigo confia às forças armadas “a defesa militar da República”,
estabelecendo o seu n.º 3 que elas “obedecem aos órgãos de soberania
competentes, nos termos da Constituição e da lei”.
Demais, Jorge Silva Paulo aduz – e
bem – o facto de que quem faz reivindicações não despreza a lei nem a ignora,
como também os oficiais sabem de cor as licenças e as punições dos regulamentos
disciplinares, embora muitos não conheçam as disposições procedimentais a
seguir. Porém, como afirma outro ex-CEM, ironicamente conhecem diplomas legais
de EDD estrangeiros.
Tudo isso é mau, mesmo muito mau.
E o máximo responsável é o Presidente, que nomeou estes chefes e que é o
comandante supremo das forças armadas (vd CRP, art.º 133.º/p; e
art.º 120.º).
***
Sendo assim, é-me dado concluir
que o desconhecimento da constituição e das leis da parte de quem deve zelar
pelo seu cumprimento se afigura como grave incoerência e incúria, mas ter a prosápia
de o alardear é perfeito disparate. Ou poderíamos tolerar que o Presidente da
República viesse a confessar que só uma vez lera a Constituição e de través? Ou
ainda: será que as dúvidas de constitucionalidade (vd
CRP, art.º 278.º) que
um decreto do Parlamento ou do Governo podem suscitar ao Presidente serão de natureza
pessoal? Não é crível, pois não?
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