sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Inconsequências ou verdadeiros disparates

Acompanhei hoje, dia 22 de janeiro, pela televisão em direto uns trechos do debate sobre alguns pontos da ordem do dia da sessão do plenário da Assembleia da República (AR), incluindo o tempo de votações e houve algumas coisas que registei que julgo inconsequentes e mesmo a raiar o disparate.
Atualmente, o número de deputados em efetividade de funções é de 230, o máximo previsto constitucionalmente (vd CRP, art.º 148.º). Ora, fixando-me, a título de exemplo, num dos projetos de lei que foi submetido a votação, verifiquei que foi rejeitado, tendo obtido os seguintes resultados: 119 votos contra; 91 votos a favor; e 10 abstenções. Fazendo as contas, o somatório é de 220. Tudo teria sido bem mais transparente se a mesa da AR, conforme forneceu aqueles números, também tivesse referido o número de deputados que não estavam presentes no hemiciclo durante a votação. Bem sei que o regimento não o impõe. Porém, para quem porfia tanto na transparência e no rigor isto não é despiciendo.
Também os deputados desalinhados, explícita ou implicitamente, em relação à respetiva bancada parlamentar, fizeram saber que iriam apresentar declaração de voto nos termos regimentais. É certo que tudo se poderá ler em Diário das Sessões. Todavia, os espectadores gostariam de saber os termos em que se apoiam as declarações de voto daqueles se abstêm ou as daqueles que, tendo votado a favor (provavelmente no seguimento de orientação partidária), remetem a sua posição pessoal para o figurino da declaração de voto ulterior, sobretudo quando a matéria em apreço não foi objeto da disciplina partidária. É óbvio que, em temas fraturantes, o sentido de declaração de voto de quem vota claramente desalinhado da orientação da respetiva bancada parlamentar é percetível nos seus temos gerais, mesmo sem o conhecimento do conteúdo em concreto, ao passo que a declaração sobre abstenção ou sobre voto alinhado com o grupo torna-se, no mínimo, enigmática e incongruente.
Por outro lado, também reparei que uma deputada tomou a palavra para referi que iria apresentar declaração de voto sobre os quatro decretos-leis que foram votados. Perante a estranheza dos restantes deputados, a Sua Excelência a Senhora Presidenta da AR esclareceu que todos perceberam o que a senhora deputada tinha querido dizer.
Ora bem, é certo que a CRP não determina condições específicas para que um cidadão possa ser eleito deputado. O seu art.º 150.º até dispõe explicitamente que “são elegíveis os cidadãos portugueses eleitores, salvas as restrições que a lei eleitoral estabelecer por virtude de incompatibilidades locais ou de exercício de certos cargos”. Todavia, quem não tem o mínimo de cultura política não deveria apresentar-se a eleição ou, no mínimo, não tomar posse. Tendo-o feito, deve em boa consciência política cuidar da sua formação e não cair em afirmações inconsequentes ou disparatadas. Ademais, o n.º 3 do art.º180.º da CRP dispõe que “cada grupo parlamentar tem direito a dispor de locais de trabalho na sede da Assembleia, bem como de pessoal técnico e administrativo da sua confiança, nos termos que a lei determinar”. E os próprios partidos dispõem de sistemas de formação dos seus quadros bem como dos deputados que apresentam à eleição.
Toda a gente sabe que um decreto-lei é um diploma legislativo da responsabilidade do Governo, que o discute, aprova e apresenta ao Presidente da República para promulgação. E é só a partir daí que se denomina decreto-lei. Faz parte da competência legislativa do governo nas matérias da sua competência ou em matérias da competência da AR, de reserva relativa, o que, neste segundo caso, o Governo faz sob lei de autorização legislativa da AR.
O produto da discussão e aprovação dos deputados para valer como lei é denominado decreto e passa a denominar-se lei a partir da promulgação da parte do Presidente da República. No entanto, a iniciativa legislativa em matérias da competência da AR tem denominações específicas conforme o setor de que provenham. Os textos que o Governo apresenta à AR para discussão e aprovação como lei são propostas de lei; os textos que um grupo de deputados ou um grupo parlamentar apresentam à AR para discussão e aprovação como lei são projetos de lei; e os textos apresentados à AR para discussão e aprovação como lei por um grupo de cidadãos, em número consignado na lei, são petições.
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Porém, a incultura política displicente ou supina não é exclusiva dos deputados. Creio não ser admissível que os detentores de qualquer lugar político e os detentores de cargo público ou de gestão empresarial de topo poderem dar-se ao luxo ou ao desplante de descurar a formação política ou declarar que não leram ou não sabem o conteúdo de normativos fundamentais da República, nomeadamente a Constituição da República Portuguesa, o estatuto do pessoal e do serviço que integram e outros normativos que têm obrigação de aplicar por força dos cargos que desempenham.
O DN, de hoje, 22 de janeiro, insere, a páginas 6 e 7, um artigo de opinião sob o título “Menu das regras”, em que se tecem críticas a altas figuras militares que, por declarações públicas, “confirmam a tese de que os militares têm pouca preparação sobre o Estado de Direito Democrático (EDD) que juraram cumprir e defender”.
Nesse texto opinativo, o capitão-de-mar-e-guerra reservista Jorge da Silva Paulo aponta-lhes o dedo por confundirem o EDD com Estado Providência e pensarem que os seus deveres para com ele se reduzem às eleições, desconhecendo as organizações políticas e administrativas de Portugal e da União Europeia. Muitos chegam até a confundir instituições com pessoas e órgãos com os seus titulares e desconhecem a organização financeira, mesmo quando quanto tomam decisões nessa área. Diz o articulista que esse desconhecimento ou confusão se inscreve no desprezo pelo Direito, que acham ser matéria de juristas.
Mais. Ilustra estas afirmações com o caso de um ex-CEM (chefe de estado maior) que terá dito aos deputados, com a possibilidade de o público ouvir, que só uma vez lera a Constituição e o fizera “de través” (Resta-me saber qual das versões terá lido de través, já que o texto constitucional de 1976 passou por sete revisões, estando em vigor o texto de 2005!). Ademais, terá o dito ex-CEM revelado que não gosta de uma determinada lei pelo facto de ela não usar o léxico militar e assegurando que a doutrina é o fundamento da ação dos militares. Evidentemente que o citado oficial superior reservista argumenta – e bem – que a doutrina não provém da tradição nem emana do chefe, mas decorre da Constituição e das leis, que vinculam todos os cidadãos.
Ora, os militares quando ingressam nos quadros permanentes fazem um juramento de fidelidade cuja fórmula se transcreve do art.º 111.º do EMFAR (estatuto dos militares das forças armadas):
“Juro, por minha honra, como português e como oficial / sargento / praça da(o) Armada / Exército / Força Aérea, guardar e fazer guardar a Constituição da República, cumprir as ordens e deveres militares, de acordo com as leis e regulamentos, contribuir com todas as minhas capacidades para o prestígio das Forças Armadas e servir a minha Pátria em todas as circunstâncias e sem limitações, mesmo com o sacrifício da própria vida.”
(vd: DL n.º 236/99, de 25 de junho, com as alterações feitas pela Declaração de Rectificação n.º 10-BI/99, de 31 de julho, pela Lei n.º 25/2000, de 23 de agosto, pelo DL n.º 232/2001, de 25 de agosto, pelo DL n.º 197-A/2003, de 30 de agosto, pelo DL n.º 70/2005, de 17 de março, pelo DL n.º 166/2005, de 23 de setembro, e pelo DL n.º 310/2007, de 11 setembro).
Ora, é caso para perguntar como é que podem guardar e fazer guardar a Constituição da República, cumprir as ordens e deveres militares, de acordo com as leis e regulamentos” se não os leem? Ou se não os leem aqueles que detêm, segundo o EMFAR, funções progressivas de comando direção e chefia e que devem administrar a disciplina e a justiça? Recordo que na administração da justiça pode eventualmente encontrar-se alguma norma ferida de inconstitucionalidade, devendo promover-se o processo de apreciação dessa norma por quem de direito, o tribunal competente com o conveniente recurso até ao TC.
Podem objetar que eles não leem, já que têm assessores jurídicos e outros. Nesse caso, devem optar por conter-se publicamente e não se armarem em não leitores da CRP ou das leis, já que dispõem da sua leitura feita por outrem.
No entanto, há que ter em conta a advertência do citado articulista no sentido de que “por muito que valham as especificidades e culturas, quem desconhece as regras formais por que se rege, e no EDD a todos por igual, está condenado, sem sequer o perceber (eu penso que, muitas vezes, sem o querer saber), a fazer e repetir asneiras, graves, pelo impacto que advém de ocorrerem num pilar da soberania (o pilar militar, especifico eu) à custa dos contribuintes”.
Cumpre, em abono desta advertência, citar dois artigos da CRP: o art.º 273.º, que, em seu n.º 1, estabelece que “é obrigação do Estado assegurar a defesa nacional”; e o art.º 275.º, que define a missão das forças armadas. O n.º 1 deste artigo confia às forças armadas “a defesa militar da República”, estabelecendo o seu n.º 3 que elas “obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei”.
Demais, Jorge Silva Paulo aduz – e bem – o facto de que quem faz reivindicações não despreza a lei nem a ignora, como também os oficiais sabem de cor as licenças e as punições dos regulamentos disciplinares, embora muitos não conheçam as disposições procedimentais a seguir. Porém, como afirma outro ex-CEM, ironicamente conhecem diplomas legais de EDD estrangeiros.
Tudo isso é mau, mesmo muito mau. E o máximo responsável é o Presidente, que nomeou estes chefes e que é o comandante supremo das forças armadas (vd CRP, art.º 133.º/p; e art.º 120.º).
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Sendo assim, é-me dado concluir que o desconhecimento da constituição e das leis da parte de quem deve zelar pelo seu cumprimento se afigura como grave incoerência e incúria, mas ter a prosápia de o alardear é perfeito disparate. Ou poderíamos tolerar que o Presidente da República viesse a confessar que só uma vez lera a Constituição e de través? Ou ainda: será que as dúvidas de constitucionalidade (vd CRP, art.º 278.º) que um decreto do Parlamento ou do Governo podem suscitar ao Presidente serão de natureza pessoal? Não é crível, pois não? 

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