Sim, é efetivamente um santo do
Sri Lanka (antigo Ceilão ou Taprobana), mas de origem portuguesa,
porque nascido ainda no século XVII na Índia então portuguesa. É este o padre
clandestino da vela, que o Papa Francisco canonizou no passado dia 14 de
janeiro no contexto celebração da Eucaristia a que presidiu na Galle Face Green, em Colombo, capital do Sri Lanka juntamente
com a cidade de Kotte.
Trata-se de uma canonização
“equipolente”, prevista no direito da Igreja há séculos, que Francisco explicou,
a pedido do padre Frederico Lombardi, no encontro com os jornalistas durante o
voo de Colombo pra Manila, a 15 de janeiro. Referiu que se utiliza quando um
beato ou beata goza há muito tempo da “veneração do povo de Deus”, que
indiscutivelmente lhe reconhece a santidade, não se fazendo então “o processo
do milagre”. Depois, deu indicações específicas: Ângela de Foligno foi a primeira.
Vieram, a seguir, pessoas que foram grandes evangelizadoras: Pedro Favre, evangelizador
da Europa, podendo dizer-se que “morreu pela estrada, enquanto viajava
evangelizando”, aos quarenta anos de idade; Francisco de Laval e Maria da
Encarnação, “os evangelizadores do Canadá” e praticamente “os fundadores da
Igreja no Canadá, ele como bispo e ela como religiosa, com todo o apostolado
que lá fizeram”; “José de Anchieta, no Brasil, o fundador de São Paulo”; agora “José
Vaz, evangelizador do Sri Lanka”; e, em setembro, Junípero Serra, nos Estados
Unidos, “o evangelizador da sua parte oeste”. São figuras que fizeram uma
vigorosa evangelização e estão em sintonia com a espiritualidade e a teologia
da Evangelii Gaudium.
***
Os dados biográficos podem ler-se a partir da síntese
biográfico-panegírica do novo santo, feita adrede à Rádio Vaticano por D.
Eduardo Aldo Cerrato, Bispo de Ivrea, e da homilia papal da canonização. Esta
canonização é uma grande alegria para Índia e Sri Lanka (e para Portugal, digo eu), e para o Oratório de S. Filipe de Néri,
que vê inscrito no álbum dos santos um dos seus sacerdotes, de quem João Paulo
II, há 20 anos, no ato sua beatificação, a 21 de janeiro, dizia:
“Em consideração a tudo aquilo que o Padre Vaz foi e
fez, de como o fez e nas circunstâncias nas quais conseguiu desenvolver a
grande obra de salvar uma Igreja em perigo, é justo saudá-lo como o maior
missionário que a Ásia já teve”.
Os seus confrades tinham consciência da sua insigne grandeza,
segundo um registo que remonta a janeiro de 1711, acerca do Padre Vaz, exposto
à veneração dos fiéis na igreja de Kandy:
“Em 16 de janeiro morreu o venerável Padre Vaz, Vigário
Geral desta missão e pai dos missionários. A dor e a desolação provocadas pela
sua perda são muito grandes e não podem ser descritas, pois ele foi verdadeiramente,
um sacerdote santo”.
José Vaz havia entrado clandestinamente (vestido como escravo e na condição de
mendigo) no Ceilão,
terra acossada pela perseguição dos Calvinistas holandeses contra os católicos,
após a conquista da ilha. Os sacerdotes foram assassinados ou expulsos, as
igrejas profanadas ou destruídas, os fiéis dispersos, aterrorizados pelas
ameaças de morte. Todavia, à sua morte, a Igreja havia-se tornado florescente,
com 70 000 fervorosos católicos, 15 igrejas, 400 capelas, 10 sacerdotes e
inúmeros catequistas leigos, que cuidavam da formação do povo, utilizando os
manuais deste padre compostos em línguas locais (tâmil e cingalês), o qual, pela santidade de vida e zelo apostólico, lançou
raízes tão profundas como resistentes às sucessivas tempestades que assolaram o
território.
Nascido na Índia, no vilarejo de Benaulim, território de Goa,
a 21 de abril de 1651, numa família de Bramini Konkany, convertida ao
cristianismo no século XVI, prosseguiu em Goa, após os estudos preparatórios, a
formação humanística na universidade dos jesuítas, e a filosófica e teológica
no Colégio dominicano de S. Tomás de Aquino. Ordenado sacerdote em 1676,
começou o seu ministério na localidade de nascimento, mas foi logo convidado a
pregar na Catedral e a dedicar-se ao serviço de confissões e direção
espiritual. E, no ano seguinte, consagrou-se como “Servo de Maria”, através do documento
designado por cartão de servidão.
Pelo ardor missionário que o possuíra, descobriu a realidade
do Ceilão, sentindo o chamamento àquela terra. Porém, as autoridades diocesanas
enviaram-no à Kanara, onde a Santa Sé erigira um Vicariato Apostólico, então
marcado por um litígio de competências e jurisdições assaz perturbador da vida
dos fiéis. Regressado a Goa em 1684, sentiu o forte desejo de entrar numa ordem
religiosa. Tendo encontrado, no Monte Boa Vista, três sacerdotes indianos que
tinham iniciado uma vida comum na Igreja de Santa Cruz dos Milagres, quis
integrar essa comunidade. Escolhido para superior, foi o verdadeiro fundador da
comunidade, a que deu o cariz espiritual e a forma jurídica da Congregação de
S. Filipe de Néri, de que chegara a notícia de Portugal, onde o Oratório fundado
pelo Venerável Bartolomeu de Quental era florescente.
Quando, no final de 1686, viu que a comunidade, rica de
vocações e de bons frutos, já podia caminhar sem ele, sentiu chegado o momento
de empreender um trabalho específico em prol dos católicos abandonados. Por isso,
juntamente com o jovem João, que o seguiu até ao fim, após várias e extenuantes
tentativas, conseguiu desembarcar na costa (em Jaffna) e entrar em Ceilão. Assim, a confirmação e o elogio da sua obra por
Clemente XI, em 26 de novembro de 1706, já encontrou o Padre Vaz envolvido em
novas lides apostólicas.
De terço no pescoço, o Padre Vaz começou a bater de porta em
porta, pedindo esmola. Entre a indiferença dos budistas e dos hinduístas, topou
alguém que nele observava com interesse aquele sinal de piedade católica.
Começou com uma família e, ao sentir-se seguro da sua fidelidade, revelou a sua
identidade. Assim se iniciou a evangelização da ilha, que continuou no vilarejo
de Jaffna, por dois anos, no exercício secreto do ministério, com a celebração
noturna da missa e a escuta dos que se lhe dirigiam para confissão e direção
espiritual.
Entretanto, o florescimento da comunidade católica irritou as
autoridades holandesas, pelo que houve bastantes mártires, mas Padre Vaz foi
posto a salvo pelos próprios fiéis que o induziram a fugir para o interior da
ilha, no pequeno, mas autónomo Estado de Kandy. O Rei, que o mandou prender, depois
de informado por observadores sobre a sua fama de santidade, acabou por se
tornar seu amigo e o padre teve a possibilidade de, percorrendo a pé o
território, pregar e difundir a fé, estabelecendo a presença da Igreja em todos
os lugares por onde passava.
O próprio rei confessou que a epidemia de varíola, surgida em
1697, teria destruído completamente a população, se a caridade e inteligência
do Padre Vaz não houvesse providenciado a cura dos doentes e o ensino de normas
de higiene.
Finalmente, na noite de 15 de janeiro de 1711, a comunidade
oratoriana pedia-lhe uma última recordação. E o Padre recomendou: “Recordai que
não se pode facilmente realizar no momento da morte o que se negligenciou fazer
em toda a vida”. E, com a vela acesa nas mãos e o nome de Jesus nos lábios,
encerrou a sua extenuante, mas frutífera peregrinação terrena.
***
Na homilia da missa de
canonização, o Papa, além de fornecer também alguns dados biográficos do novo
santo, aplicou-lhe a profecia de Isaías: Todos os confins da terra verão a
salvação do nosso Deus» (Is 52,10). Com efeito, Ele, como tantos
outros missionários na História da Igreja, respondeu à ordem do Senhor
ressuscitado para fazer discípulos de todas as nações (cf. Mt 28,19). Com as palavras e sobretudo com o exemplo,
conduziu este povo à fé que nos concede “parte na herança com todos os santificados”
(At 20,32). São José foi um sinal
eloquente da bondade e do amor de Deus pelo povo do Sri Lanka; um estímulo de
perseverança na rota do Evangelho a fim de crescermos em santidade e
testemunharmos a mensagem evangélica de reconciliação; e um exemplo, mestre e
guia seguro na saída eclesial “para as periferias, a fim de tornar Jesus Cristo
conhecido e amado por toda a parte”. É
ainda um exemplo de “sofrimento paciente por causa do Evangelho, de obediência
aos superiores, de solícito cuidado pela Igreja” (cf. At 20,28). Também
ele viveu “num período de transformações rápidas e profundas” (os
católicos estavam em minoria, às vezes, dividida; os de fora manifestavam
hostilidade e até perseguição).
Não obstante, ele, constantemente unido ao Senhor na oração, foi capaz de se
tornar para todos “um ícone vivo do amor misericordioso e reconciliador de Deus”.
Por outro lado, o amor indiviso a
Deus abriu-o ao amor do próximo, gastando o seu ministério em prol dos
necessitados, sem olhar quem fosse e onde estivesse, mostrando-nos a
importância de a Igreja transcender as divisões religiosas no serviço da paz, sem
distinção de raça, credo, tribo, condição social ou religião – serviço que
proporciona através das suas escolas, hospitais, clínicas e muitas outras obras
de caridade.
E Francisco aproveita o ensejo
para reivindicar para a Igreja em minoria nada mais que “a liberdade para
exercer a sua missão”, no pressuposto de que “a liberdade religiosa é um
direito humano fundamental”. Por isso, explicita que “cada indivíduo deve ser
livre de procurar, sozinho ou associado com outros, a verdade, livre de
expressar abertamente as suas convicções religiosas, livre de intimidações e
constrições externas”. E, retomando o arquétipo vital de José Vaz, assegura que
a “autêntica adoração de Deus leva, não à discriminação, ao ódio e à violência,
mas ao respeito pela sacralidade da vida, ao respeito pela dignidade e liberdade
dos outros e a um solícito compromisso em prol do bem-estar de todos”.
Depois, São
José Vaz oferece um eminente exemplo de zelo missionário. Ora ele, que partiu a
fim de assistir e apoiar a comunidade católica, afinal, na sua caridade
evangélica, veio para todos. Deixando a casa, a família e o conforto dos seus lugares,
respondeu à chamada para, mais longe, onde quer que se encontrasse, falar de
Cristo. E soube oferecer a verdade e a beleza evangélicas em contexto
plurirreligioso, no respeito, dedicação, perseverança e humildade.
À semelhança
do santo, este é hoje, segundo Bergoglio, o caminho dos seguidores de Jesus: ir
mais longe com zelo e coragem, mas também com a sensibilidade de Vaz, o respeito
pelos outros e a ânsia de partilhar com eles a palavra da graça (cf. Act 20,32) que tem o poder de os edificar. É a
tarefa dos discípulos missionários – contribuir, com a fé, para a paz, a
justiça e a reconciliação na sociedade – num país que, atingido por uma furiosa
guerra interna que, entre 1983 e 2009, custou a vida a mais de 70 mil pessoas
nas lutas entre as autoridades e os guerrilheiros tâmil, se encontra hoje à
procura da reconciliação.
***
Finalmente,
importa referir o testemunho do Papa na audiência geral de 21 de janeiro na
Praça de São Pedro:
“O momento culminante da minha jornada no Sri Lanka foi a canonização do
grande missionário José Vaz. Este santo sacerdote administrava os Sacramentos,
muitas vezes em segredo, aos fiéis, mas ajudava indistintamente todos os
necessitados, de qualquer religião e condição social. O seu exemplo de
santidade e amor ao próximo continua a inspirar a Igreja no Sri Lanka no seu apostolado
de caridade e educação. Apresentei são José Vaz como modelo para todos os cristãos,
chamados hoje a expor a verdade salvífica do Evangelho num contexto multirreligioso,
com respeito para com os outros, com perseverança e com humildade.”
***
Penso que e o
encómio papal de 21 de janeiro constitui a melhor síntese de encómio pragmático
do apóstolo do Sri Lanka ou santo da Goa cristã.
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