Paris (e a França em geral) deu
ao mundo, no passado domingo, o espetáculo de uma grande manifestação pela
liberdade. Embora o tema de fundo fosse a liberdade de imprensa, é óbvio que o
que está em causa é a liberdade de existir e ser diferente, de estar, circular
e trabalhar.
A grandiosidade da manifestação resulta
da enorme multidão que se deixou mobilizar de forma proativa, mas também
do número considerável de líderes políticos com responsabilidades ao mais alto
nível na gestão dos Estados, incluindo hierarcas de Estado judaico e de Estado
muçulmano a emparceirar com os líderes do mundo dito ocidental. Mas, porventura,
nos seus países, despedem jornalistas, condenam cartoonistas, praticam a
censura prévia ou fazem pressão sobre os jornais e revistas!
Tudo isto revela a preocupação de
estar com o povo em solidariedade com os seus temores, a exaltação das
liberdades, a condenação do terrorismo em absoluto. Todavia, o epifenómeno esconde
uma boa dose de hipocrisia distribuída em duas vertentes: o silêncio e apatia
perante atos terroristas congéneres ocorrido sem vários recantos do mundo,
alguns no mesmo horizonte temporal e com maior número de vítimas (aqui, é de
enaltecer a exceção: o Papa não perde uma oportunidade de denunciar e condenar
todos os atos de violência e terrorismo, seja qual for o lugar, o tempo, o
número e o tipo de vítimas); e a omissão de atitude e expressão críticas a
algumas modalidades de exercício de liberdade de expressão.
Não alinho mecanicamente na onda
do “Je suis Charlie” nem na contrária,
que ora parece estar a surgir como contraponto. Assaltar, matar e provocar momentâneos
efeitos de pânico generalizado e insegurança coletiva com foros de permanência
são factos totalmente condenáveis, por violentos, desproporcionados e de efeitos
nefastos. E, seja como for, por mais e maiores pretextos que se dê para a
prática de atos terroristas (desrespeito religioso, falta de emprego, escravização
social e laboral, excessos educacionais, individualismo, desestruturação familiar…),
a culpa do terrorismo é mesmo e inteiramente dos terroristas. Nada é suficiente
para os desculpar, nada os justifica.
Porém, há que pensar que, entre nós,
sociedade permissiva e tolerante, não se tolera a agressão ideológica ilimitada,
mas, com todo o descaramento se aceita a agressão religiosa, que muitas vezes
reveste uma forma caricatural, mas asquerosa, ofensiva, insultuosa, sacrílega e
blasfema. Basta reparar em alguns
cartoons cujo objeto é o islão ou os seus sequazes ou a religião católica,
para aferir da sua inadmissibilidade. Bem sabemos que as democracias preveem
formas saudáveis de punir os abusos da liberdade. Todavia, também é verdade que
habitualmente a Justiça, sobretudo nestes casos, se revela cara, lenta e
ineficaz (o resultado costuma ser a multa e/ou a indemnização simbólica; a apreensão
dos produtos, o encerramento de instalações e a supressão de publicações –
medidas excessivas e condenáveis – costumam ocorrer quando estão em causa razões
políticas).
Concordo que a liberdade de expressão
é identitária do mundo ocidental, mas também o é o respeito, direito/dever que
nunca pode ser olvidado. E, se a liberdade de expressão faz parte do ADN da
Europa, também isto se aplica às outras liberdades. E nestas inscreve-se a
liberdade religiosa, que implica a liberdade de crença, de culto (privado e
público) e de ensino, bem como a de crítica e de réplica.
Não será, pois, demasiado pedir a
todos os que se manifestam pela liberdade um pouco mais de coerência e de visão
holística das coisas. Ou seja, o combate pela liberdade deve estar presente em
todos os lugares e sempre. A condenação das ditaduras deve acontecer independentemente
do país que imponha e pratique a ditadura (não pode, por exemplo, considerar-se
má a do Irão e boa ou aceitável a da Arábia Saudita). E o combate ao
terrorismo, para lá da condenação dos atos em si, impõe a condenação dos Estados
e das outras instâncias que o financiam, fomentam e aplaudem, bem como aqueles
que dão formação e apoio logístico (ou mesmo indicações de atuação) aos
terroristas.
***
Entretanto, os
últimos desenvolvimentos noticiosos indicam que Ministros do Interior europeus
e americanos defendem maior controlo da Internet e das fronteiras. Não vão tão longe como Marie Le Pen, que pretende repor a pena de morte e
anular o acordo de Schengen. No entanto, levantam a velha e atual questão da
relação liberdade / segurança.
Agora, parece legítimo e
oportuno colocar a questão seguinte: “Pode o atentado contra o ‘Charlie Hebdo’, que suscitou aparatosas
manifestações pela liberdade, gerar medidas que redundem em menor vivência e expressão
de liberdade”?
A esta
interrogação responde um comunicado de 11 ministros do Interior e da Justiça
europeus reunidos em Paris, antes da marcha que reuniu cerca de milhão e meio
de pessoas contra o terrorismo, no qual se sugere que dever haver maior
controlo do que se exprime na Internet e se aponta para uma revisão da livre
circulação de pessoas e bens na União Europeia.
Com efeito, quando o direito à liberdade
colide com o direito à segurança, há que atender às diversas circunstâncias em
concreto. Em todo o caso, uma vez que a privação da liberdade afeta
necessidades vitais da pessoa, só deverá acontecer quando for absoluta e
estritamente necessária para garantir um nível de segurança que, a não existir,
poria em risco bens jurídicos de valor equipolente. Tem de haver sempre a
ponderação prática dos direitos fundamentais em presença e em colisão, a fim de
que eles sejam salvaguardados tanto quanto possível. Os direitos podem ser
comprimidos em graus diferentes, dependendo do modo como se apresentam e das
possíveis alternativas para resolver o conflito entre eles. A ponderação tem de
ser feita em primeira linha pelo próprio legislador e, em última linha, pelos
tribunais, se o caso lhes for presente. Qualquer solução terá de ser sempre
proporcional aos fins visados e nuca atentar contra a dignidade da pessoa
humana.
Uma situação típica, comummente aceite, é a restrição ou a
proibição de passagem em determinadas vias ou a limitação de acesso nos eventos
com autoridades públicas, ou a detenção e contenção de
pessoas em manifestações que degeneram em tumulto ou ato violento. Outro
exemplo (especialmente problemático, aliás) é o internamento compulsivo de
pessoas suspeitas de doença altamente transmissível ou de perigo para a
convivência. O raciocínio de custo‑benefício ultrapassa a dimensão jurídica e
exige outro tipo de juízos técnico‑científicos rigorosos, até porque, nesta matéria
como noutras, ao longo da História, é frequente a tentação com êxito de juízos
de avaliação pouco rigorosos para sujeitar a liberdade a outros valores.
Assim, a pena de morte (falo da pena aplicada em tribunal premeditada
e judiciosamente ponderada, não o ato resultante de combate a motim ou o
decorrente da legítima defesa) e a prisão perpétua constituem perdas
irreversíveis da liberdade.
Já quanto ao acordo de Schengen, há que dizer que se fez ou
impôs uma leitura pouco inteligente do mesmo. Abolir tecnicamente as fronteiras
para viabilizar a livre circulação de pessoas e bens não implicaria a
destruição física dos postos fronteiriços nem a abolição sistemática da fiscalização
à entrada ou à saída de um país. Quanto aos bens, a livre circulação implica a
não proibição da entrada/saída de determinados produtos e/ou o não pagamento
dos antigos direitos alfandegários. Mas não dispensa do transporte com a fatura
ou a guia de entrega como acontece na circulação dos produtos dentro do próprio
país para efeitos do IVA. E o controlo tanto pode ser feito em qualquer ponto
do país como nos antigos postos fronteiriços.
Quanto às pessoas, o acordo implica a não proibição de
entrada/saída das pessoas, mas não dispensa o porte de documentos de identificação
e a sujeição ao controlo da parte das autoridades, bem como ao pagamento das
taxas por serviços prestados, embora nunca por se tratar de estrangeiros. Não é
isto o que se faz no controlo aeroportuário?
Depois, se é pacífico o cidadão ser controlado até pela captação
de imagem em vários espaços privados de utilização coletiva, porque não aceitar
análogo controlo (que não molestação ou utilização indevida da informação) por
parte dos poderes públicos? É que sem segurança não há efetiva liberdade.
Sabemos muito bem que habitualmente o Estado tenta-se com
facilidade a passar da postura de informação e conhecimento à fase do controlo
e da perseguição, para não falar da utilização da informação obtida por motivos
de segurança para o condicionamento ao exercício de cargos políticos e à ocupação
de cargos públicos.
Porém, se é de pedir contenção aos poderes públicos na utilização
da informação, também é necessário reafirmar a necessidade, importância e valor
da informação pertinente sobre os cidadãos e os grupos para evitar sobressaltos
públicos e sobretudo ações de terrorismo.
Sem comentários:
Enviar um comentário