sábado, 30 de agosto de 2014

O direito e o dever de educar – I

A leitura do texto de Tiago Saleiro subordinado ao título O direito e o dever de educar, no site do educare.pt 1, recordou-me uma reflexão, a que procedi em devido tempo, sobre a liberdade de aprender e ensinar consagrada na Constituição da República Portuguesa (CRP). Tal reflexão não me dispensa de acompanhar o mencionado articulista e proceder a texto de teor similar.
Entretanto, pretendo estribar o meu arrazoado num conjunto documental que, embora análogo ao da nossa CRP, se afigure um pouco mais alargado e quiçá mais consensual, até porque, se esse contexto for considerado como deve ser, melhor se perceberá que não é a CRP que deve ser alterada e possivelmente a legislação que vem sendo promulgada na sua esteira, mas equacionadas alternativas a muito do que defendem ideias, interesses e práticas vigentes.
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Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (adotada pela Organização das Nações Unidas a 10 de dezembro de 1948) 2, no seu art.º 26.º, garante o direito de todos à educação, determinando-lhe gratuitidade e obrigatoriedade, ao menos ao nível elementar, bem como a generalização do ensino técnico e profissional e a abertura do ensino superior a todos, em plena igualdade, em função do mérito. Do seu lado, a educação visa a expansão da personalidade humana e reforço dos direitos e liberdades fundamentais e favorece a compreensão, tolerância e amizade entre as nações e os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.
O mesmo artigo, no seu n.º 3, reconhece que aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos. Tal não quer dizer que, na ausência ou insuficiência dos pais, outras entidades, nomeadamente parentes, organizações da sociedade civil vocacionadas para o efeito e o Estado, não devam assumir esse direito e encargo.
Por seu turno, a Convenção sobre os Direitos da Criança 3 (adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a 20 de novembro de 1989, e ratificada por Portugal, a 21 de setembro de 1990) dedica à educação os artigos 18.º (responsabilidade dos pais), 28.º (direito da criança à educação) e 29.º (objetivos da educação).
De acordo com o art.º 18.º, cabe aos pais e aos seus representantes legais a principal responsabilidade comum de educar a criança, devendo o Estado ajudá-los, de forma apropriada, a exercer a sua responsabilidade na educação dos filhos.
Nos termos da art.º 28.º, a criança tem direito à educação; o Estado deve tornar o ensino primário (ou com outra designação) obrigatório e gratuito, encorajar a organização de diferentes sistemas de ensino secundário acessíveis a todas as crianças e tornar o ensino superior acessível a todos, em função das capacidades de cada um; a disciplina escolar respeitará os direitos e a dignidade da criança; e, para garantir o respeito por este direito, os Estados promovem e encorajam a cooperação internacional.
E o art.º 29.º estabelece que a educação visa a promoção do desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas, na medida das suas potencialidades; a sua preparação para uma vida adulta ativa numa sociedade livre; e a exigência geral a todos do respeito pelos pais, pela sua identidade, pela sua língua e valores culturais, bem como pelas culturas e valores diferentes dos seus.
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Também a Igreja Católica se tem pronunciado abundantemente sobre esta matéria. Assim, podemos ver alguns dos conteúdos das encíclicas Divini Illius Magistri (DIM), de Pio XI (1929), Pacem in Terris (PT), de João XXIII (1963); da Declaração Gravissimum Educationis (GE), do Concílio Vaticano II; do Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI), do Pontifício Conselho Justiça e Paz; do Código de Direito Canónico (CDC), promulgado em 1983; e do Catecismo da Igreja Católica (CIC), de 1992.
Logo a DIM, na perícopa “a quem pertence a educação” afirma a índole social e não singular da educação e, em conformidade com tal índole, consagra as três “sociedades necessárias, distintas e também unidas harmonicamente por Deus, no meio das quais nasce o homem” – duas de ordem natural, a família e a sociedade civil; e uma de ordem sobrenatural, a Igreja.
Considerando que a família é instituída por Deus e cujo fim próprio é a procriação e a educação da prole, ela detém a prioridade de natureza e, portanto, a prioridade de direitos relativamente à sociedade civil. Porém, dado que a família é sociedade imperfeita (por não possuir todos os meios para o próprio aperfeiçoamento), cabe à sociedade civil, que é sociedade perfeita (tendo em si todos os meios para conseguir o bem comum temporal, como seu próprio fim), a preeminência sobre a família, que atinge a sua conveniente perfeição temporal precisamente na sociedade civil. Por seu turno, a Igreja, enquanto sociedade em que nasce o homem, mediante o Batismo, para a vida da graça – sociedade de ordem sobrenatural e universal, sociedade perfeita, porque reúne em si todos os meios para o seu fim que é a salvação dos homens – tem uma função suprema na sua ordem. Por isso, a educação, considerando o homem individual e socialmente, na ordem da natureza e da graça, pertence às três sociedades, em proporção diversa e correspondente à coordenação dos respetivos fins, segundo a ordem de providência que Deus estabeleceu (cf DIM, A QUEM PERTENCE A EDUCAÇÃO).
Depois, a PT declara que aos pais compete a prioridade na questão do sustento e educação dos filhos (vd PT,17); e, no quadro da realização do bem comum, razão de ser dos poderes públicos, compete-lhes a sua promoção de modo a respeitar os seus elementos essenciais e a adaptar as suas exigências às atuais condições históricas (cf PT,54).
Por sua vez, a GE reconhece que “todos os homens, de qualquer estirpe, condição e idade, visto gozarem da dignidade de pessoa, têm direito inalienável a uma educação” correspondente ao próprio fim, acomodada à índole, sexo, cultura e tradições pátrias, e aberta ao consórcio fraterno com os outros povos em ordem à verdadeira unidade e paz. E adverte que a verdadeira educação visa a formação da pessoa humana, com vista ao seu fim último e ao bem das sociedades de que o homem é membro e em cujas responsabilidades participará (cf GE,1). Por outro lado, declara que os pais têm a gravíssima obrigação de educar a prole e, por isso, “devem ser reconhecidos como seus primeiros e principais educadores”. E ensina que a família é “a primeira escola das virtudes sociais de que as sociedades têm necessidade”.
Mas, como o dever de educar, que pertence primariamente à família, precisa da ajuda da sociedade, além dos direitos dos pais e de outros a quem os pais confiam parte do trabalho de educação, há deveres e direitos que competem à sociedade civil, à qual pertence ordenar o que se requer para o bem comum temporal. Faz, assim, parte dos seus deveres promover, de vários modos, a educação da juventude – defendendo os deveres e direitos dos pais e de outros que colaboram na educação e auxiliá-los; ultimando, segundo o princípio da subsidiariedade, a obra da educação, se falharem os esforços dos pais e das outras sociedades, muito embora com a observância dos desejos dos pais; e, além disso, fundando escolas e instituições próprias, na medida em que o bem comum o exija.
Ora em consonância com o seu primeiro e inalienável dever e direito de educar os filhos, os pais devem gozar de verdadeira liberdade na escolha da escola; e o poder público, a quem pertence proteger e defender as liberdades dos cidadãos, deve cuidar, segundo a justiça distributiva, que sejam concedidos subsídios públicos de modo que os pais possam escolher, em consciência e com toda a liberdade, as escolas para os seus filhos (cf GE,6).
Todavia, cabe também, por uma razão particular, à Igreja o dever de educar, não só porque deve ser reconhecida como sociedade capaz de ministrar a educação, mas sobretudo porque tem os deveres de: anunciar a todos os homens o caminho da salvação; comunicar aos crentes a vida de Cristo e ajudá-los, com contínua solicitude, a conseguir a plenitude desta vida; e colaborar com todos os povos na promoção da perfeição integral da pessoa humana, no bem da sociedade terrestre e na edificação dum mundo configurado mais humanamente (cf GE,3).
Considerando a escola como espaço privilegiado para a ministração da educação intelectual, técnica e humana, é realçada a beleza e a magnitude da responsabilidade da vocação dos que, ajudando os pais no cumprimento do seu dever e fazendo as vezes da comunidade humana, têm o dever de educar em escolas – vocação que exige especiais qualidades de inteligência e coração, preparação esmeradíssima e vontade sempre pronta à renovação e adaptação (cf GE,5).
Na esteira da GE, o CDSI confere à família papel original e insubstituível na educação dos filhos, mercê do amor que se torna alma e norma educativa; e qualifica como essencial, original e primário, insubstituível e inalienável (não delegável nem usurpável) o direito-dever dos pais na educação da prole (n.º 239). Todavia, como são os primeiros, mas não os únicos educadores dos filhos (têm o direito de escolher os instrumentos formativos correspondentes às próprias convicções e de buscar os meios que melhor os possam ajudar na tarefa de educadores, mesmo no âmbito espiritual e religioso), compete-lhes exercer com sentido de responsabilidade a sua obra educativa em colaboração estreita e vigilante com os organismos civis e eclesiais. A dimensão comunitária do homem exige e origina uma obra mais ampla e articulada, que seja o fruto da colaboração ordenada das diversas forças educativas (n.º 240). Inerente ao direito de educar, é reconhecido aos pais o direito de fundar e manter instituições educativas, devendo os poderes assegurar a distribuição das subvenções públicas de modo que os pais sejam livres no exercício do seu direito, sem ónus injustos. Os pais não devem ser constrangidos a fazer, direta ou indiretamente, despesas suplementares que impeçam ou limitem injustamente o exercício desta liberdade (n.º 241).
A família tem a responsabilidade de oferecer uma educação integral, que vise o aprimoramento da pessoa humana em relação ao seu fim último e ao bem das sociedades de que o homem é membro e em cujas tarefas terá de participar em adulto. Para tanto, os filhos devem – pelo testemunho de vida e pela palavra – ser motivados para o diálogo, encontro, sociabilidade, legalidade, solidariedade e paz, pelo cultivo das virtudes fundamentais da justiça e da caridade.
Na educação, o papel paterno e o materno são igualmente necessários, devendo os pais agir conjuntamente, de modo que a autoridade – por eles exercida com respeito e delicadeza, com firmeza e vigor – seja credível, coerente, sábia e orientada ao bem integral dos filhos (n.º 242).
Os pais têm ainda uma particular responsabilidade na esfera da educação sexual, levando-os a aprender, de modo ordenado e progressivo, o significado da sexualidade e a apreciar os valores humanos e morais relativos a ela, bem como a obrigação de verificar como se realiza a educação sexual nas instituições educativas, para garantir que tema tão importante e delicado seja abordado de modo apropriado (n.º 243).
O CIC, por sua vez, ensina que os pais são os primeiros responsáveis pela educação dos filhos, com a grave responsabilidade de lhes darem bom exemplo e de saberem reconhecer diante deles os próprios defeitos, para melhor os guiarem e corrigirem. Testemunham tal responsabilidade pela criação dum lar onde são regra a ternura, o perdão, o respeito, a fidelidade e o serviço desinteressado, e que seja lugar apropriado à educação das virtudes, que requer a aprendizagem da abnegação, de sãos critérios, do autodomínio – condições da verdadeira liberdade. Por outro lado, os pais ensinarão os filhos a subordinar as dimensões físicas e instintivas às dimensões interiores e espirituais (n.º 2223) e a acautelar-se dos perigos e degradações que ameaçam as sociedades humanas (n.º 2224).
Para se desenvolver conforme à sua natureza (e também no aspeto educativo), a pessoa humana necessita de vida social. A família e a comunidade civil correspondem, de modo mais imediato, à natureza do homem (n.º 1891).  Ora, segundo o princípio da subsidiariedade, nem o Estado nem qualquer sociedade mais abrangente devem substituir-se à iniciativa e responsabilidade das pessoas e dos corpos intermédios (n.º 1894). Mas incumbe aos que exercem cargos de autoridade garantir os valores que atraem a confiança dos membros do grupo e os incitam a colocar-se ao serviço dos semelhantes. E a participação começa pela educação e pela cultura (n.º 1917). Compete, pois, ao Estado defender e promover o bem comum da sociedade civil, o qual exige uma organização da sociedade internacional (n.º 1927).
Por fim, o CDC estatui que os pais, que deram a vida aos filhos, têm, por si ou por quem faz, as suas vezes a obrigação grave e o direito de os educar (cân. 226, 2), bem como o de escolher livremente os meios e as instituições com que possam providenciar melhor à educação católica dos filhos, com o direito de desfrutar dos auxílios da sociedade civil, que são necessários à educação católica dos filhos (cân. 793, 797, 798). Por outro lado, valoriza a escola como o meio principal de ajuda dos pais e exige a colaboração mútua entre pais e professores e reafirma a necessidade e as caraterísticas da educação integral (cân 795, 796).
Estes documentos, que explicitam os itens atinentes ao direito à educação, aos seus objetivos e à responsabilidade dos pais (ou de quem as suas vezes fizer) e do Estado em matéria educativa, não aponta nem para a excessiva liberalização da educação nem para a oposta estatização. Parece, antes, definir a primeira responsabilidade dos pais nos preliminares educativos e na escolha de perfil de educação e escola, bem como a responsabilidade do Estado em assegurar a educação básica e a facilitar a generalização e o acesso aos níveis intermédios e superiores de educação e de ensino. Além disso, divisa-se uma opção pela observância dos princípios da cooperação, subsidiariedade e solidariedade, segundo os quais pais (e professores) e sociedade civil deverão fazer tudo o que esteja ao seu alcance, cabendo ao Estado o papel de garante, facilitador da missão educativa e de prestador dos serviços de que outrem não disponha.
1http://www.educare.pt/opiniao/artigo/ver/?id=29242&langid=1; 2https://dre.pt/comum/html/legis/dudh.html;

3https://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf, ac agosto de 2014.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A importância das “Semanas Bíblicas”

Segundo notícia divulgada pela agência Ecclesia, terminou a 28 de agosto, em Fátima, com a celebração da Eucaristia, a 37.ª Semana Bíblica Nacional, que tivera início no dia 24, em torno do tema geral “A Bíblia, Evangelho da Família – Ser Família Cristã, hoje na Igreja e no Mundo” ou, abreviadamente, “A Bíblia, Evangelho da Família”.
Trata-se de uma iniciativa da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, que segue a vontade da Igreja de iluminação dos problemas atuais da sociedade.
Esta 37.ª Semana Bíblica Nacional, na ótica de frei Herculano Alves, “desenvolveu-se com toda a profundidade” e “teve bom acolhimento por parte do público”, que, apesar de não ter sido muito numeroso, integrou um conjunto de 300 pessoas, que se mantiveram assíduas e pontuais no decurso da abordagem de todos os temas.
E, apesar de já ter sido realizada uma semana bíblica sobre “A Família na Bíblia” (a 15.ª, em 1992), os organizadores entenderam dever voltar à temática da família, em razão da importância do tema e da oportunidade decorrente da proximidade da III Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos, que se realizará no próximo mês de outubro.
O referido biblista destaca que, em Portugal, a ordem religiosa, a que o sacerdote pertence, se tem dedicado “bastante à formação e informação bíblica” do povo de Deus, escolhendo, por isso, para as semanas bíblicas, sempre um tema que esteja no contexto das preocupações da Igreja Universal.
Nesta ordem de ideias e iniciativas, surge a das semanas bíblicas. Porém, outras não menos importantes e de caráter permanente são, por exemplo, as várias edições e formatos da Bíblia Sagrada, em versão a partir dos textos originais, de que se destaca a Nova Bíblia dos Capuchinhos, para o terceiro milénio da Encarnação, bem como a editora “Difusora Bíblica”, de Lisboa e Fátima, que tem dado à estampa um sem número de volumes, muitos dos quais desenvolvem temáticas bíblicas e metodologias atinentes ao estudo da Bíblia. Isto sem esquecer os muitos grupos bíblicos disseminados por todo o país e a quem os frades capuchinhos prestam apoio e acompanhamento.
Para esta Semana Bíblica Nacional foram convidados “vários conferencistas que são peritos tanto no aspeto bíblico e eclesial como no da pastoral bíblica da família.
Do programa constavam temas a cargo de conferencistas, como: o provincial dos capuchinhos portugueses, frei Fernando Cabecinhas, que desenvolveu o tema “Família Hoje, Luzes e sombras”; D. António José da Rocha Couto, bispo de Lamego, que apresentou o tema “Deus e Israel, As metáforas da família nos profetas”; João Duque, professor da Universidade Católica Portuguesa, que abordou a problemática “Família cristã: que futuro?”; e D. Manuel da Rocha Felício, bispo da Guarda, que glosou o tema de encerramento “Os desafios da pastoral familiar”.
O tema da 37.ª Semana Bíblica Nacional, “A Bíblia, Evangelho da família – Ser Família Cristã, hoje na Igreja e no Mundo”, vai ter continuidade nas semanas bíblicas regionais, que começam já em setembro, na Ilha da Madeira, e, depois, se realizam nos Açores, em Gondomar, no Porto, em Viseu e em Barcelos.
Outra informação de relevante iniciativa é o facto de serem publicados os resumos das conferências na próxima revista ‘Bíblica’ e, depois, virem a ser também publicados na íntegra os textos das mesmas na revista científica, em outubro. Deste modo, os participantes e quem não teve possibilidade de estar em Fátima terão à sua disposição dois instrumentos de preciosa ajuda noutras tarefas, noutras ações paroquiais e em diversos organismos da Igreja.
Para frei Herculano Alves, a afluência de participantes, não muitos, encontra resposta em “problemas que são conhecidos, sobretudo a condição económica” para além de “uma menor adesão a iniciativas da fé” porque “há uma certa crise também na vivência da fé, que será a questão fundamental, sem esquecer a económica”.
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Como vem exposto, a semana bíblica de 2014 é uma das tantas que o Movimento Bíblico organiza anualmente, uma de âmbito nacional e várias de âmbito regional.
Uma das suas caraterísticas é a abertura a todo o povo de Deus, não se exigindo aos participantes especiais habilitações académicas. A Semana Nacional consta de conferências por professores de Sagrada Escritura, de Teologia ou das outras áreas em estudo; oração de Laudes; um tempo mais breve de oração, no fim da manhã; e Eucaristia, no fim da tarde, exceto a de encerramento, que tem lugar no fim da manhã. É, pois, um momento propício ao estudo e à reza da palavra de Deus – lex orandi, lex credendi!
Inspiradas nesta e para descentralizar o Movimento e proporcionar a um maior número de pessoas o estudo aprofundado da Bíblia, surgiram também as semanas regionais. Tomando o tema e os principais estudos da semana nacional, estas constam apenas de duas horas por dia, com um só tema, incluindo um pequeno tempo de oração no início e no fim, e terminando com a Eucaristia no sábado. É de realçar que, desde a sua fundação, em 1955, o Movimento Bíblico em Portugal organizou 37 Semanas Bíblicas Nacionais, todas em Fátima. A primeira foi em 1956 (com o tema “Estudos Bíblicos”); a segunda, apenas em 1979 (com o tema “S. Lucas, o Evangelista para o nosso Tempo”); e, depois, continuaram ininterruptamente a partir desse ano, com temas muito diversificados, mas com referência explícita à Bíblia.
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Para lá do que vem referido acima, os capuchinhos colocam à disposição das pessoas que buscam um cultivo mais intenso da espiritualidade e da ciência bíblica a “Casa dos Capuchinhos”, o “Centro Bíblico” e o Jardim Bíblico” – em ambiente familiar, acolhedor e sossegado.
Também Frei Herculano Alves mantém um site na internet sob o título “Para entender a Palavra” ou “Ao encontro da Palavra é um espaço com vários resumos de estudos bíblicos… Para melhor entender a Bíblia”.
São iniciativas que tendem a aproximar da Palavra de Deus o Homem e o Povo e do Homem e do Povo a Palavra de Deus, em sintonia com o Concílio Vaticano II e demais atos do Magistério da Igreja e na sequência dos movimentos bíblico, litúrgico e ecuménico, que geraram ambiente propício à convocação e avanço do Concílio.

E, porque há que fazer oração e festa com e a partir da Palavra de Deus, os capuchinhos apresentam proveitosos livros (e edições digitais) de oração, de reflexão/ação e de repertório musical.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Governo de acrobatas impreparados

As acrobacias, tanto as desenvolvidas em cenário circense como as praticadas com aeronaves, podem redundar em desastre, se ocorrer qualquer facto imprevisto ou se efetivamente os operadores correrem riscos demasiados em relação ao cálculo previamente efetuado. Porém, ninguém ousa sequer colocar a hipótese de gente impreparada se aventurar a ações desta ordem, cujo inêxito coloca em perigo a vida própria, eventualmente perturba à séria a vida de outrem e desacredita este tipo de espetáculos.
Já no atinente à governança, parece que qualquer cidadão pode servir, desde que disponha de algum currículo académico, elementar experiência profissional ou suficiente aderência ao partido ganhador. E seria menos mal se, na verdade, o cidadão alcandorado a um lugar de governante possuísse, acima de tudo, sensibilidade política para fazer as opções mais adequadas e tomar as decisões mais consentâneas com as necessidades detetadas, devendo rodear-se de personalidades tecnicamente competentes, que não o induzissem em erro em nome de pretensa ciência, tecnologia ou tecnicidade. Mal e de efeito nefasto sucede quando o político se apresenta munido de competência técnica, que efetivamente não tem, currículo académico de duvidosa sustentabilidade e diminuta experiência profissional ou social. E do alto do seu nefelibatismo manda fazer estudos a que apõe previamente conclusões ou em cujo processo introduz as informações que inevitavelmente geram as conclusões pretendidas; depois, decide tudo a coberto dos estudos de propalado rigor científico e técnico; e tenta, num ambiente de exploração e mobilização de sacrifício estoicamente suportado (os protestos, por mais gritantes que sejam, são ou entendidos no quadro da normalidade democrática ou subestimados), convencer o público a colocar-se nas estrelas, para o que arregimenta todo um chorrilho de discurso propagandístico e medidas paliativas. E a coisa incandesce quando a arena governativa se estende em contradições ora desmentidas ora objeto de recuo ora de avanço sem atender a nada nem a ninguém.
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Se os governos dos últimos quinze anos nos habituaram a este estilo de fazer política, o atual tem usado e abusado da acrobacia nefelibata. Vejamos:
O défice público, que a troika (que foi embora em maio e que parece estar de volta) acertou com o Governo para 2014 como sendo de 4% do PIB (produto interno bruto), poderá chegar, à luz das estatísticas oficiais, a 7,6% do PIB. A dívida aumenta e a economia não consegue crescer significativamente. Seria milagre um crescimento económico assinalável em Portugal com a estagnação da economia europeia! Nisto, como em muitos outros capítulos, os nossos governantes passam a vida a negar o óbvio para, dias depois, aceitarem as evidências que os factos oferecem e oferecerem as mais incongruentes justificações.
No entanto, o Governo reitera a pregação de que a meta do défice se manterá em 4%. Só a ajuda do Estado ao BES, antigo ou novo, poderá agravar o desequilíbrio das contas públicas em 2,9%.
Mas o BdP (Banco de Portugal), que neste aspeto segue o Governo, e o próprio Governo (que não se mete na área do privado – disse ) garantiram a boa saúde do BES, distinguiram o BES (perfeitamente sustentável) do GES (com problemas); dividiram o BES em Banco Mau e Banco Bom; garantiram que o contribuinte nada iria desembolsar para o Banco Bom, o Novo Banco (o da borboleta), embora a Ministra do Estado e das Finanças tenha, talvez por lapsus linguae, especificado que, quando o Novo Banco for vendido, o contribuinte terá o retorno financeiro; e hoje sabe-se que o Estado adiantou, em nome dos bancos, os 635 milhões de euros que estes se tinham comprometido emprestar ao Fundo de Resolução (acionista único) para que se procedesse à capitalização do Novo Banco.
A referida governante, na conferência de imprensa de apresentação do segundo orçamento retificativo deste ano, sistematizou as quatro novas fontes de derrapagem da despesa (normais!): a decisão do Tribunal Constitucional (TC), que obrigou a repor salários e impediu a tributação dos subsídios de doença, de desemprego e os cortes das pensões de viuvez; a maior despesa com hospitais; os gastos inesperados das autarquias; e as poupanças abaixo do previsto com os instrumentos de requalificação e de rescisões “amigáveis” de funcionários públicos.
E quantifica: a despesa adicional decorrente da decisão do TC rondará 860 milhões de euros; a despesa nova com hospitais, os 300 milhões; e a derrapagem autárquica, outros 300 milhões (porque não acabaram com municípios quando agregaram freguesias?). Faltou-lhe quantificar os números relativos às expectativas goradas com os esquemas de rescisões “amigáveis” e de requalificação (despedimento a médio prazo).
Efetivamente, os grandes responsáveis pelo défice e pela dimensão colossal da dívida pública são o TC e os funcionários públicos. Já o sabíamos. O descalabro do BES/GES, do BPN, do BPP, do BCP, do BANIF, os salários, indemnizações e reformas obscenas de alguns, bem como algumas superdespesas de gabinetes ministeriais – tudo isto é matéria irrelevante, não é?!
Mas o Governo entende que as despesas acima referenciadas configuram gastos novos, que já estão acomodados no défice de 4%, graças à maior coleta de receita fiscal e contributiva. A melhoria da atividade e do emprego (dizem alguns que a registada baixa do desemprego é artificial!) permitirá um encaixe adicional de 0,7% do PIB em impostos e de 0,3% em descontos para a Segurança Social – cerca de mil e 500 milhões de euros, respetivamente.
Ora, sendo assim, por que motivo se anuncia o congelamento de verbas para funcionamento em grande parte dos Ministérios?
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Se atentarmos na problemática do segundo orçamento retificativo, veremos afirmações bem esquisitas. Uns dizem que o orçamento retificativo se reduz a estas cinco palavras, “Não há aumento de impostos” (CDS); outros vêm a dizer que se trata de um retificativo “sem medidas específicas adicionais” (Governo). A oposição é quase unânime na indicação da continuação e agravamento da austeridade.
A grande caraterística deste segundo orçamento retificativo, disse Maria Luís Albuquerque, é que o desvio na despesa será tapado com mais receita e maior controlo da despesa. No entanto, não especificou em que áreas. Sublinhou apenas que, ao mesmo tempo que subirá o teto da receita, também elevará o teto da despesa, mas assegurou que este orçamento não traz “medidas específicas adicionais”, simplesmente “um esforço de contenção da despesa adicional”.
A despesa extraordinária de 2014 somará seis mil milhões. Trata-se, no entanto, do resultado de uma série de operações extraordinárias ou irrepetíveis (sendo a fatia de leão a decorrente da ajuda do Estado ao Novo Banco, originado a partir do antigo BES, através do fundo de resolução) que o Eurostat poderá obrigar a incluir como défice deste ano, embora a Ministra das nossas carteiras garanta que não implicará despesa adicional, segundo os critérios ajustados com a troika, segundo os quais, por serem irrepetíveis, não contarão para a meta dos 4%.
Isto quer dizer que, com troika ou sem troika, com Eurostat ou sem Eurostat, o défice lá estará bem à vista! Será que uma despesa extraordinária ou irrepetível não será uma despesa?
Também se afigura surreal a gestão discursiva do orçamento retificativo. Não tem notícias, não implica despesas adicionais, não aumenta impostos, não origina cortes de salários… Ora, se é tão inócuo, como se se tratasse de mero formalismo a reconhecer pelo parlamento em formato de lei, como um jornalista comentador alvitrou, o Governo deverá declará-lo à opinião pública. Mas na verdade não é assim. A ver vamos, quando o documento obtiver a redação final em sede parlamentar.
Parece, antes, que o Governo e seus defensores estão apostados em que os portugueses se concentrem na propalada inocuidade do retificativo, para esquecerem o próximo dia 4 de setembro, em que a Assembleia da República vai iniciar a discussão do diploma a que o TC apontou a inconstitucionalidade de algumas normas, para côngrua expurgação das mesmas, mas também para firmar aquelas que o Tribunal considerou legítimas, dada a sua transitoriedade, ou seja, a reposição, para o resto do ano de 2014 e todo o ano de 2 2015, dos cortes salariais na função pública decretados no tempo de Sócrates para vigorarem no ano de 2011. Quer dizer que, em setembro ou em outubro, vai ter lugar quebra de salários de funcionários públicos, o que implicará redução de despesa, a não ser que haja aumento por outra via.
Também os apaniguados do Governo acentuam que o retificativo não prevê aumento de impostos nem aumento de despesas; mas o Governo admite a hipótese de um outro orçamento retificativo para este ano. Aí, não se inscreverá uma antecipação do aumento de impostos e/ou contribuições e de redução de despesa em relação a 2015? E para esse ano teremos o agravamento da austeridade nos termos até agora delineados ou noutros a definir?
A ginástica governamental da não necessidade de cortes de salários ou do aumento de impostos e contribuições, da reformulação de taxas e tarifas e do não despedimento de funcionários – desmentida pelos factos e por sucessivas edições legislativas – revela um governo que não sabe, não pode ou não quer governar de outro modo. É uma acrobacia pública de riscos catastróficos a que o povo se vai habituando anestesiado por uma propaganda assente no tópico da inevitabilidade e da afirmação caluniosa, por generalizada, de que os portugueses viveram acima das suas possibilidades. E agora pretende artificialmente compartimentar os diplomas legais, de modo que, ao arrepio da epistemologia jurídica e política, sejam apreciados independentemente uns dos outros, para que não se notem os efeitos e não, como deveria ser, favorecer a sua análise enquanto integrados no corpus jurídico integral.

Há que repor a verdade, a justiça e a honra do povo português e assegurar-lhe o patamar de um mínimo de conforto. A esperança é aquela que não pode estiolar!

Primárias do PS para escolha de líder do PSD?

A propósito da entrevista de António Costa ao Expresso, de 23 de agosto, ocorre-me a ideia de tecer algumas considerações sobre a estatura e as ambições partidárias.
Um partido político é uma organização de direito privado que, no sentido contemporâneo da palavra, pode ser definido como uma união voluntária de cidadãos com afinidades ideológicas e políticas, disciplinada e organizada, revestindo a forma de associação, e que visa a disputa do poder político ou, pelo menos, o direito-dever de intervenção pública no debate das questões nacionais e das internacionais que estejam conexas com aquelas.
À partida, um partido político almeja ascender ao poder. E normalmente aproveita o mecanismo das eleições a que se candidata com um programa eleitoral, que, em caso de vitória, se transforma em programa de governo, com alterações pontuais, se a vitória possibilitar uma maioria parlamentar de apoio ao governo, ou significativas e objeto de negociação, caso o apoio parlamentar seja minoritário ou resulte de uma coligação pós-eleitoral. Porém, a História regista, além de situações normais de mudança de poder e até de transição pacífica de regime,  não raros exemplos de acesso ao poder com recurso à revolta armada, militar e/ou popular, seguido de governação em democracia (usualmente precedida de governo provisório, que toma medidas legislativas de fundo) ou de governação em ditadura (normalmente em torno de uma figura carismática, cuja deposição se torna muito problemática, se não impossível, a menos que o regime apodreça por si). Neste último caso, a governação é contra os partidos ou apoia-se na existência de partido único, combatendo qualquer manifestação significativa contrária, por diversos meios (polícia política, censura na comunicação social, limitação de acesso à administração pública…) e de modo por vezes feroz (tortura, repressão policial, prisão arbitrária, morticínios…).
Também acontece que muitas democracias, em tempo de crise política ou de crise geral, inventam um líder musculado que exerce o poder com mão de ferro, mas não prescindindo de eleições regulares e submetendo formalmente aos órgãos democráticos as principais opções de política governativa e mobilizando em torno das mesmas a opinião pública e as forças da ordem.
Na antiguidade greco-romana, dava-se o nome de partido a um grupo de seguidores de uma personalidade de prestígio, de uma ideia mobilizadora ou de uma doutrina. Modernamente, só na Inglaterra, no século XVIII, é que se criaram pela primeira vez, instituições de direito, com o objetivo de congregar partidários de uma ideia política – o partido Whig e o partido Tory. A partir daí e da segunda metade daquele século, alastrou pelo mundo a ideia de organizar e dividir os políticos em partidos, ideia que recebeu notável incremento depois da independência dos Estados Unidos e da revolução francesa, momentos em que se formulou a perceção de que a natureza da comunidade política se transforma dramaticamente.
Dos sociólogos e cientistas políticos que teorizaram sobre partidos políticos, destacam-se Ostrogorsky, Robert Michels, Maurice Duverger, Max Weber e Nildo Viana. Para eles, os partidos políticos atuais são organizações onde predomina a burocracia na sua estrutura e que se fundamentam na ideologia da representação política, e não propriamente no acesso direto do povo às decisões políticas. Têm como objetivo conquistar o poder político estatal e constituem formas de expressão política de oligarquia económica ou social. No entanto, alguns, influenciados por Weber, consideram que o predomínio da burocracia nos partidos políticos, especialmente nos partidos fascistas, nazistas, socialistas e comunistas, ocorre por uma necessidade técnica, ao passo que, segundo outros, a burocratização dos partidos é derivada de um complexo processo social e político que dá origem à expansão de uma nova classe social, a “burocracia”. Mas coincidem em afirmar que a burocracia partidária é uma fração daquela nova classe social: a “burocracia”. Essa burocracia partidária, hoje designada por aparelho partidário ou mesmo “aparelhismo”, ultrapassa frequentemente a sua função de assessoria do político e passa a ditar regras nos partidos políticos.
No decurso do tempo, têm-se verificado as mais variadas formas de atuação dos partidos na vida das nações, bem como diversificadas formas de atuação dentro dos próprios partidos. Partidos políticos seculares têm-se mantido, através dos séculos, basicamente iguais só no nome, pois os seus programas, doutrinas e estilos de fazer política têm variado enormemente com o passar dos tempos, tendo alguns esbatido e até perdido a carga ideológica que os identificava. Há partidos que definem, já através da designação, claramente a sua doutrina – como fazem, por exemplo, os partidos: fascista, liberal, democrata-cristão, conservador, nazista, socialista, comunista e trabalhista. Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e ex-presidente do Brasil, cunhou o termo “partido omnibus” (para todos, em latim) para designar qualquer partido que parta do propósito explícito de reunir seguidores de diversas doutrinas e ideologias para atingirem objetivo comum a todos eles. Têm como seu arquétipo, na literatura, os partidos dominantes na política norte-americana – partido democrata e partido republicano – e o PMDB no Brasil, o partido democrata italiano ou o MDP/CDE e o Bloco de Esquerda portugueses, bem como o evolucionista e o unionista da I República de Portugal.
Muitos políticos fazem a sua carreira política dentro de um grande partido, para só depois se candidatarem a altos cargos públicos, como ocorre, por exemplo, na França com uma grande disputa pelo cargo de secretário-geral do Partido Socialista Francês; porém, outros políticos, ao contrário, integram ou formam pequenos partidos para mais rapidamente se candidatarem a altos cargos públicos como fez Fernando Collor de Mello, em 1989.
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Dada a sua índole associativa e o seu aparato público, os partidos, embora se rejam pela lei geral, são independentes de qualquer estrutura do Estado e dispõem de declaração de princípios, estatutos, programas eleitorais e/ou governativos e planos de ação. Sendo assim, seriam unicamente os membros da respetiva associação partidária a decidir que elementos devem integrar os órgãos partidários e em especial a liderança de topo.
Nestes termos, parece descabido que a direção do Partido Socialista tenha convocado para a eleição do seu candidato a Primeiro-Ministro todos os simpatizantes que reúnam determinadas condições, mormente a sintonia com os princípios fundamentais por que se pauta o partido. Mais esquisita se torna tal convocação, quando para a eleição de dirigentes distritais e, segundo referem alguns, nas últimas eleições diretas para secretário-geral se mantiveram nos cadernos eleitorais inscrições de militantes falecidos, ausentes por tempo prolongado e mesmo alguns que se tinham candidatado a cargos políticos, designadamente em autarquias, por outras formações partidárias ou de independentes/dissidentes.
Porém, Costa segue o seu percurso para a eleição “interna” de setembro com a aceitação das iniciativas da direção partidária, tendo chegado a afirmar, quase com displicência, que as questões estatutárias eram tratadas por outras personalidades. E o seu percurso, que não ultrapassa as marcas de um percurso de campanha, como é compreensível, nem sempre prima pela ousadia e pela clareza de propostas, a ponto de, creio que injustamente, ser apontado pela candidatura adversária como o rosto de um PS da promiscuidade entre política e negócios. Como se não bastasse a falta de clareza e ousadia de ideias, na referida entrevista, depois de farpar aqueles que “andam anos na política e ninguém se lembra de nada que tenham feito”, declara que o seu adversário é o socialdemocrata Rui Rio, com a dupla ironia de afugentar do discurso o adversário Seguro, com quem contende, e limitar-se “a constatar o que todos constatam”, no pressuposto de que “o país anseia por novos protagonistas, com provas dadas, que rompam este ciclo de vistas curtas em que temos estado bloqueados nos últimos anos”.
Assim, não se estranha que a pena de quem escreveu uma nótula sobre “primárias” na última página de O Diabo, de 26 de agosto, tenha inferido que “ficámos a saber que as primárias do PS não só servem para escolher o candidato a Primeiro-Ministro do próprio partido como de outros”. Ora, como Costa, voz do PS autorizada pela experiência de governante e pela de edil lisboeta, apenas cita o ex-edil portuense, creio ser legítimo pensar que os resultados das primárias de setembro definam o líder do PS e o do PSD, ambos socialdemocratas ou paladinos do socialismo democrático.
A referida pena de escrever, ao questionar quais os adversários de outros partidos selecionados por Costa, alvitra a hipótese de serem personalidades sem interesse, talvez alguns dos que se sentam há anos na sexta fila da respetiva bancada parlamentar a aguardar pela sua vez e a fazer planos. Penso, todavia, que terão de ser como Costa, daqueles que não “andam a comprar votos nem a ressuscitar mortos” (vd Expresso, de 23 de agosto, pg 8).
A pretensão de substituir o líder do partido adversário não é nova. Quem não se recordará das declarações de Ferreira Leite ou de Passos Coelho, que, por volta das eleições de 2009 (antes e depois) e de 2011 (antes), respetivamente, rejeitavam a hipótese de entendimento com o PS, se liderado por José Sócrates. E este, quando viu Passos Coelho eleito líder do PSD, parecia ter encontrado um par para a dança do tango, conforme declarou a órgãos de comunicação social estrangeiros. Também a opinião pública, através de políticos comentadores, formulou a convicção, nunca desmentida, de que o PSD preferiria disputar as eleições legislativas com Seguro a disputá-las com outra personalidade em líder, nomeadamente António Costa.
Agora, Costa parece ter embarcado em pretensão semelhante. José Serrão, em O Diabo, de 26 de agosto, explica o tríplice objetivo: sensibilizar o PSD, pressionar o Governo e estimular Rui Rio a iniciar o seu assalto ao poder e à cadeira de Coelho na liderança do partido, seguindo o exemplo Costista, mas correndo acrescido risco. Porém, o mesmo colunista aponta a Costa o facto de as suas palavras saberem a ato falhado e poderem ser interpretadas como um desígnio até agora inconfessado, pelo menos nos detalhes: Guterres a Presidente da República, o próprio Costa em Primeiro-Ministro e Rio como líder da oposição – remetendo para a prateleira da memória Cavaco, Seguro e Coelho. E Costa seria atualmente o candidato a pajem do novo Dom Sebastião, o desaparecido no mundo…
Será que Rio, homem minudente e meticuloso, embarcará na aventura de subdiácono de Guterres ou acólito de António Costa? Suponho bem que Seguro não terá motivos sérios para temer Costa, tentar ignorá-lo ou refugiar-se em evasivas quando os jornalistas os questionam sobre a candidatura adversa, a menos que se torne inseguro, hesitante e pateticamente emotivo. Se for esta hipótese, então o medo que tem será de si próprio.
Não estaremos em situação similar à do rotativismo dos fins da monarquia, ao invés do tempo de crise em que emergem líderes políticos que se perfilam como verdadeiros homens de Estado destinados a dar ao país a fina flor da sua lucidez e o melhor da sua vontade do seu esforço pela causa e pela saúde da res publica?
De qualquer modo, deixemos que os líderes partidários sejam escolhidos pelos próprios partidos, cada um pelo seu!
Mas José Serrão acerta na muche – e termino com suas palavras – quando assegura: “A política portuguesa está a incandescer e o aproximar dos próximos escrutínios eleitorais cerceia a qualidade do pensamento e condiciona a ação dos principais agentes políticos”.

Referências
Amaral, Diogo Freitas (1985). O Antigo Regime e a Revolução. Lisboa: Círculo de Leitores.
Lassale, Jean Pierre (1971). Introdução à Política. 2.ª ed. Col. Universidade Moderna. Lisboa: Edições Dom Quixote.

Rosas, Fernando e Rolo, M. Fernanda (coord) et al (2010). História da Primeira República Portuguesa. Lisboa: Tinta-da-China.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sobre o estatuto político-administrativo de Macau (Lei Básica)

A Comunicação Social referia ontem que as autoridades chinesas ainda não decidiram se dois dirigentes de topo e três outros membros da Open Macau Society, agora na cadeia, serão formalmente acusados. Sofre assim mais uma contrariedade a campanha para ser escolhido em eleições o chefe do Governo da cidade.
Segundo o South China Morning Post, diário de Hong Kong, o presidente da predita organização, Jason Chao, um outro dirigente e três ativistas foram detidos por terem ignorado a proibição do Governo local de recolherem dados pessoais de residentes na cidade, em nome do empenho governamental em zelar pela “privacidade” dos cidadãos.
Chao entende as referidas detenções como “uma séria violação de direitos humanos” e considerou que o nervosismo revelado na detenção permite “avaliar como o Governo receia o resultado do referendo” informal, que foi lançado a 25 de agosto, programado para durar uma semana (de 25 a 30).
O procedimento referendário será feito por voto eletrónico (por computador ou telemóvel) e, em dois dos dias da consulta, em cinco locais de voto a instalar na região. A duas questões respeita o referendo: a interrogação aos residentes do território – permanentes e não permanentes – se concordam que o chefe do Executivo da Região de Macau deve ser eleito por sufrágio universal em 2019; e a interrogação sobre o nível de confiança da população no candidato ou eventuais candidatos a chefe do Executivo. Os boletins de voto estão disponíveis em três línguas: português, chinês e inglês.
Os chineses receiam que o processo obtenha junto da população eco tão favorável como o similar, lançado anteriormente em Hong Kong, que lhe serviu de inspiração. O de Hong Kong, apesar de ser apodado de “farsa” pelas autoridades, obteve a adesão de 800.000 pessoas.
Em Macau, a insatisfação com o presente quadro social tem vindo a agravar-se. O antigo território sob administração portuguesa passara para a tutela chinesa e pleno exercício da soberania chinesa com a herança original de ser o único território chinês em que os casinos têm existência legal. Mas tal existência, que atrai à cidade todos os jogadores do país, tem feito disparar os preços do aluguer e tem agravado as desigualdades sociais, criando o caldo de cultivo para uma ampla aceitação da campanha pela democracia.
Já em dezembro de 2013, por iniciativa do Movimento Novo Macau Democrático (NMD), cerca de mil pessoas se manifestaram nas ruas para exigir mais democracia e menos corrupção.
Na marcha, sem incidentes, sob o lema Lutar contra a corrupção, combater pela democracia e manter o nível de vida dos residentes, os manifestantes entoaram diversos slogans alusivos à situação de Macau que designam de “brilho para o exterior, podridão para o interior”. Também alguns cartazes exibiam a célebre frase sentenciosa, o poder absoluto corrompe absolutamente, acompanhada de caricatura com os membros do governo usando um passa-montanhas.
No final, junto ao Palácio da Praia Grande, os manifestantes entregaram quatro petições com a exigência de maior democratização, eficaz combate à corrupção e manutenção dos empregos pelos trabalhadores de Macau, outra das grandes bandeiras do NMD, que quer estimular a denúncia recompensada dos imigrantes ilegais. “Macau teve muito sucesso nos últimos anos, mas há muitos problemas de falta de transparência, de corrupção e injustiças”, denunciou o deputado Ng Kuok Cheong, que insistiu na informação de que o anterior chefe do Executivo de Macau, Edmund Ho, quebrou a promessa de acelerar o processo de democratização em Macau.
Dos 29 deputados à Assembleia Legislativa somente 12 provêm do sufrágio direto e universal, sendo 10 eleitos indiretamente por associações “representativas” e 7 nomeados pelo chefe do Executivo que, por sua vez, é escolhido por um colégio eleitoral de 300 pessoas.
O presidente da China, Hu Jintao, garante que o governo central “vai dar todos os apoios ao desenvolvimento económico, à melhoria da vida popular, ao avanço democrático e à promoção da harmonia social de Macau”.
Entretanto, o referendo segue a sua marcha dentro da normalidade.
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Ora, a razão de ser de toda esta movimentação reside na redação, na interpretação que a respetiva comissão dá ao artigo 23.º da lei básica (LB) e na sua posterior regulamentação. É que, a 22 de outubro de 2008, o Chefe do Executivo publicou a proposta de regulamentação das matérias referidas no artigo 23.º da LB: crimes de traição à pátria, secessão, subversão, sedição, desvio de segredos de Estado e proibição de contactos internacionais de associações políticas. Mais tarde, discutida a proposta, foi o predito artigo regulamentado por lei, logo originando inquietação e preocupação entre os democratas, que receiam que a lei possa limitar a liberdade de expressão e protesto dos cidadãos. Não pode deixar de se ter em conta que Macau é Região Administrativa Especial que mantém o gozo de direitos, liberdades e garantias, como a liberdade de expressão e religiosa, herdados da administração portuguesa e consagrados na LB.
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Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) da República Popular da China (RPC) é um normativo com força constitucional na ordem jurídica da RAEM. Define os princípios fundamentais que a RAEM deve seguir e respeitar, bem como o seu estatuto e o seu relacionamento com as Autoridades Centrais da RPC. Todas as políticas e sistemas aplicados na RAEM – incluindo o social e económico, o de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos residentes, o executivo, o legislativo e o judicial, bem como as políticas a eles atinentes – se baseiam nas disposições da LB. Ademais, as leis, decretos-lei, regulamentos administrativos ou atos normativos da RAEM não podem contrariar a LB.
A LB, que entrou em vigor a 20 de dezembro d 1999, quando a RPC assumiu o exercício da soberania sobre Macau, foi elaborada conforme a política chinesa de “um país, dois sistemas” (em que todos parecem tere acreditado), apresentada e definida por Deng Xiaoping – vindo substituir o Estatuto Orgânico de Macau, em vigor desde 1976.
No quadro das garantias, a LB, além de garantir aos residentes da RAEM os direitos, garantias e liberdades, estabelece que Macau possuirá um elevado grau de autonomia em todos os aspetos e assuntos a ela associados, à exceção dos assuntos de defesa e negócios estrangeiros (política externa) sendo que, nesta última esfera, Macau goza ainda de alguma autonomia. Determina também que todos os oficiais e administradores de Macau são habitantes de Macau, e não pessoas e oficiais da RPC. Especifica outrossim que o sistema social e económico-financeiro da RAEM, bem como os direitos, deveres e liberdades dos seus cidadãos se manterão inalteráveis durante, pelo menos, 50 anos, ou seja, até ao ano 2049. Por isso, a cidade mantém a moeda própria (a pataca) e sistema fiscal e económico-financeiro próprio (de caráter capitalista, diferente do sistema socialista da RPC), o seu próprio sistema de controlo de imigração e de fronteiras e a sua própria polícia.
Por outro lado, a LB estabelece a tripartição dos poderes, tal como na maioria dos sistemas políticos: executivo (Chefe do executivo de Macau e seu Governo), legislativo (Assembleia Legislativa de Macau) e judicial (Tribunais).
A sua génese revela-se um tanto complexa, embora escrupulosamente cuidada.
Um ano após a assinatura da Declaração Conjunta  Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau (em Pequim, a 13 de abril de 1987) pelos Chefes do Governo da RPC e do Governo da República Portuguesa, foi deliberada em 13 de abril de 1988, pela I Sessão da VII Legislatura da Assembleia Popular Nacional (APN) da RPC, a criação da Comissão de Redação da Lei Básica da RAEM da República Popular da China.
Em setembro de 1988, a lista dos membros desta comissão, destinada a redigir e elaborar o documento constitucional da RAEM, foi aprovada pela Comissão Permanente da APN da RPC. Esta lista era constituída por 48 personalidades, sendo 19 delas de Macau e 29 provindas da China Continental, incluindo Ji Pengfei, que era diretor do Gabinete para os Assuntos de Hong Kong e Macau junto do Conselho de Estado e que se tornou presidente desta Comissão.
A LB da RAEM foi aprovada e promulgada no dia 31 de março de 1993 pela I Sessão da VIII Legislatura da APN.
A interpretação da LB da RAEM cabe à APN, através do seu Comité Permanente, que autoriza os tribunais da RAEM a interpretar, casuisticamente, as disposições que estejam dentro dos limites da autonomia. No entanto, se os tribunais da RAEM, no julgamento de casos, precisarem da interpretação de disposições da LB respeitantes a matérias que sejam da responsabilidade do Governo Popular Central da RPC ou do relacionamento entre as Autoridades Centrais e a Região e, se tal interpretação puder afetar o julgamento dos casos, antes de proferir sentença final, os tribunais da Região devem obter, através do Tribunal de Última Instância da Região, a interpretação das disposições por parte do Comité Permanente da APN.
Em matéria de revisão, ficou estabelecido que, dado que, em conformidade com a Constituição da RPC, a LB da RAEM é decretada pela APN, o poder de revisão pertence exclusivamente à APN, cabendo o poder de apresentar propostas de revisão ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, ao Conselho de Estado e à RAEM, parecendo excessivo o poder de iniciativa confiado a dois órgãos do poder central chinês.
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Já na década de 80, estranhei que a entrega de Macau à China fosse negociada sem qualquer contestação, quando a descolonização dos demais territórios sob administração portuguesa foi tão contestada, em 1975, como venda do país ou entrega de mão beijada à tutela soviética (comunista) e sem quaisquer contrapartidas para os portugueses e para os autóctones. Agora, não se reparava que a China estava sob regime comunista, não abria mão para cedência democrática, não ofereceu quaisquer contrapartidas, a não ser a da imensidão. Pelo contrário, Portugal fez avultados investimentos em Macau antes de 1999, ano agendado para a transição.
Quem esteve atento à composição da comissão de redação da LB (maioritariamente chinesa e presidida por um alto dignitário chinês), à cláusula de revisão ou à disposição que estabelece um prazo para a vigência da democracia (ou seja, enquanto der jeito à RPC), como é que poderia acreditar que situações reivindicativas como a atual havia de passar impune? Não se crê que a LB, promulgada antes do ano da transferência, não fosse conhecida pelo nosso Governo.
Há que refletir na posição de António Katchi, jurista português radicado no território, que entende que Macau, como Hong Kong, dificilmente terá um sistema político comparável ao dos países considerados democráticos por estar sujeito a um “regime totalitário” centralizador.
O jurista explicitou à agência Lusa a sua posição ao sublinhar que um Estado ou uma região que tem um regime formalmente democrático, mas que está subordinado(a) a uma superestrutura antidemocrática, não consegue funcionar de modo plenamente democrático”.
Katchi apontou o exemplo europeu, salientando o facto de que os “países membros da União Europeia”, de regimes formalmente democráticos, “como estão sujeitos a uma superestrutura antidemocrática, também têm visto diminuir e até ser posta em causa a própria democracia no seu funcionamento. São formalmente democráticos, mas funcionam de modo cada vez mais antidemocrático, com a promoção de governos de tecnocratas, muitos deles independentes.
Aquele jurista observou que, “apesar de formalmente não ter poder legislativo, [o líder do Governo de Macau] concentra grande parte do poder de iniciativa legislativa”, estando os deputados em posição subalterna, em que “basicamente votam a favor ou contra as propostas de lei do Governo”, realçando que nunca uma proposta foi chumbada no hemiciclo de Macau.
O sistema político-administrativo de Macau não é típico nem do sistema presidencialista nem do semipresidencialista ou parlamentarista; “é uma estrutura política que, de certo modo, lembra os regimes fascistas ou o soviético, em que o Chefe domina o sistema político”.
Contra os que alegam a falta de preparação da população para legitimar a ausência de sufrágio direto e universal, Katchi assegura que é melhor ser a população, cuja maioria vive honestamente do trabalho, a escolher os governantes do que uns poucos, que são parasitas, especuladores, exploradores – que só escolhem para o poder as pessoas que defendem os seus negócios. E aduz o argumento de que “há muitas sociedades em que são menores do que em Macau o acesso à informação, o nível de alfabetização, escolaridade e em que os órgãos de soberania são eleitos pelo povo”. Assim, conclui que, em Macau, “os órgãos do poder político autonómico também deviam ser eleitos democraticamente pela população e, havendo democracia, a própria formação política das pessoas poderia também desenvolver-se”.

É assim que manda a lucidez e a solidariedade. Mas talvez seja melhor começar por lembrar à APN da RPC e sequazes os seus compromissos internacionais e a Declaração Universal dos Direitos do Homem; e a todos, que os negócios não são tudo: “valores mais altos se alevantam”!

Pardais de torre…

A agência Ecclesia, citando a Rádio Vaticano, em 25 de agosto fazia eco das palavras do representante diplomático da Santa Sé em Damasco, D. Mario Zenari, que lamentou o “esquecimento” da comunidade internacional perante a tragédia provocada pela guerra na Síria.
“Infelizmente, os holofotes sobre a Síria foram desligados, a Síria desapareceu do radar da comunidade internacional, já não é notícia” – desabafava o núncio apostólico na Síria aos microfones da rádio da Santa Sé.
Em consonância com os dados divulgados pela Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, a sublinhar que os mais de três anos de conflito naquele território provocaram 191 mil mortes, D. Mario Zenari declara que “todos os dias há uma média de 180 mortes, na Síria” – “número que não deveria deixar ninguém tranquilo”. Verifica, no entanto, com amargura, que infelizmente “a Síria caiu no esquecimento”.
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O caso faz-me lembrar este fenómeno observado popularmente: os pardais aninhados em torre de igreja, às primeiras vezes que ouvem o toque dos sinos, ficam cheios de temor e espanto e deitam a fugir; porém, com a habituação, os sinos bem podem soar e ressoar, que os pardais lá continuam no seu posto a gozar do conforto, segurança e índole altaneira da torre. Conseguiram sítio para abrigo, dificilmente o caçador os atinge e dali podem mirar melhor as oportunidades de apresamento de insetos e culturas na imensidão dos ares e na vastidão dos campos. Tanto assim que o povo sabe que o primeiro milho é dos pardais. Na torre, em que o toque de sino passa a funcionar como celestial música, nada os aflige, a não ser algum raio ou terramoto; no campo, a única forma de os afugentar parece que são os espantalhos, talvez por lhes lembrarem figurações humanas.
Alguns padres espirituais assemelham ao comportamento dos pardais de torre a reação dos cristãos à pregação: muito comovidos, a princípio, muito habituados, a seguir. Algo se diz dos “missionários”, os das missões populares em vilas e cidades de cristianismo morno: colhem de imediato os frutos dos primeiros fervores, a que muitas vezes pouco mais se segue de significativo. E os clérigos que, tal como as tropas de quadrícula que aguentam estoica e organizadamente a luta no terreno, por ali mourejam no quotidiano, epidermicamente sem resultados, sentem o seu labor subvalorizado, quando não totalmente ignorado. É assim a vida: uns semeiam, outros colhem.
***
Votando aos esquecimentos da comunidade internacional, há que referir a multitude de casos olvidados. Quem se lembra da Somália, do Zaire, do Burundi, do Uganda, da Etiópia? Não se esqueceram já as tropelias da União Soviética e a crassa violação dos direitos humanos na China, a quem o Governo da República Portuguesa e o Governo de Sua Majestade Britânica, entregaram pacificamente os Estados de Macau e de Hong-Kong, respetivamente, não sem que previamente se tenha procedido a investimentos avultados em cada um desses Estados, aos quais as autoridades chinesas prometeram um estatuto político-administrativo especial, garantia ora olvidada?
Se não fora o Papa Francisco nos últimos dias, quem recordaria o sofrimento por que passam os cidadãos norte-coreanos, obrigados que são a bater palmas e a chorar? Ou quem lembra o Tibete, a vida degradada na Índia, o montão de refugiados e os emigrantes clandestinos (em vários lugares), a dizimação, em tempos, na Chechénia ou na Geórgia e a guerra do Kosovo?
Não está quase no arquivo da memória a primavera árabe com a destituição dos “poderes” na Tunísia, na Líbia e no Egito – sem solução aceitável?
Recordo-me de que a Indonésia submeteu ao seu regime ditatorial o Estado de Timor Lorosae, sem reação internacional significativa, desde 1975 até 1991, ano do massacre no Cemitério de Santa Cruz, em Dili. Foi preciso o Dr. Mário Soares, então Presidente da República, ter visto o espetáculo pela televisão e ouvir os timorenses a rezar em Português para Durão Barroso e Ana Gomes tocarem as campainhas do alerta internacional, o qual, depois de alastrado e consolidado, pouco a pouco levou Ali Alatas a promover e a aceitar iniciativas conducentes à independência (e mediaram mais de 10 anos). Ainda me lembro do compungente discurso de Mário Soares em 13 de maio de 1991, a solicitar a intercessão de João Paulo II por Timor, aquando da sua despedida de Portugal, no âmbito de uma sua vista pastoral ao país. Custou, mas hoje Timor Lorosae é uma grande e florescente nação!
Ainda dobram mediocremente os sinos pelo Afeganistão, fortemente pelo Iraque e pela Terra Santa, pouco pela Guiné Equatorial. Esquece-se a Guiné-Bissau, a continuidade da revolução cubana… Poucos acreditam na instalação e prosseguimento da III Guerra Mundial, por capítulos ou por episódios (aos pedaços), mas a produzir cada vez mais vítimas e vítimas que nada têm a ver com a guerra e com expedientes inéditos até há pouco anos – o avião-bomba, o carro-bomba, o homem-bomba (Alguns destes são portugueses!).
Oxalá não seja necessário que surja uma hecatombe humana ou natural para que estes internacionais pardais ou outros pássaros de torre acordem nos termos dramaticamente cantados no poema de Thiago Petrucelli, de 3 de janeiro de 2014, que se deixa à reflexão espiritual e à fruição literária.
Nós somos como pássaros.
Estamos empoleirados no topo de uma torre
Que é a nossa família, amigos.
Nosso emprego.
Nossa cidade, nossas ideias.
Nossa segurança, conforto
Esperanças
Nosso Deus.
Mas um dia, inadvertidamente,
A vida vem com raios de uma tempestade
Que bloco a bloco
Põem nossa torre abaixo.
Nós, pássaros empoleirados no topo da antiga torre,
Nesse momento de queda livre
Tentamos nos agarrar ao que restou,
Voltar ao que era antes
Mas tudo desaba ao nosso toque,
Não há mais ninho para voltar.
E nesse cair vertiginoso
Analisamos nossas opções
E ao ver o chão se aproximando com velocidade
Percebemos que na verdade não há opção
Senão abrir as asas,
E voar.