sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Bulhão Pato, o pintor de uma época por letras, por sinais

Quem fez uma leitura atenta e sistemática do Romance de Eça de Queirós, Os Maias (1888), com o subtítulo Episódios da Vida Romântica, deve recordar-se de uma das suas personagens ultrarromânticas “Tomás de Alencar”, o poeta a quem e com quem se brindava, que dava conselhos de vida e tinha apurado gosto pela culinária. Embora o autor o tenha negado rotundamente, há um escritor e poeta que se reconhece como figura inspiradora da construção dessa personagem e, como é normal, não terá gostado do papel a que terá oferecido azo na obra queirosiana, dados os contornos caricaturais que a emolduram. Estamos a referir-nos a Raimundo António Bulhão Pato, conhecido pelo nome abreviado de Bulhão Pato, um poeta e prosador de significativa produção literária e jornalística, infelizmente votado ao esquecimento, aliás como muitos dos nossos cultores das letras.
Foi um poeta, ensaísta e memorialista português, sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa. As suas Memórias, escritas em tom íntimo e nostálgico, são interessantes pelas informações biográficas e históricas que fornecem, retratando o ambiente intelectual português da última metade do século XIX. Conhece-se o retrato de Bulhão Pato – um óleo sobre madeira, da autoria do pintor português Columbano Bordalo Pinheiro, pintado em 1883 medindo 30,5 cm de altura e 23 cm de largura, e exposto no Museu do Chiado de Lisboa.
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Este filho de pai português, o fidalgo Francisco de Bulhão Pato, também poeta, e de mãe espanhola, María de la Piedad Brandy, nasceu, no ano de 1829 em Bilbau, no País Basco, tendo passado seus primeiros oito anos no distrito de Deusto.
Foi um período que o marcou fortemente, tanto pela mítica imagem de uma infância feliz que vivera como pela descoberta das terríveis realidades de uma das guerras civis espanholas. Era a primeira guerra carlistaque se desenvolveu, de 1833 a 1840, entre os partidários do infante Carlos María Isidro de Borbón – conhecidos como carlistas e lutadores por um regime absolutista – e os de Isabel II – partidários de um regime liberal e denominados cristinos por apoiarem a regente María Cristina. Após os dois primeiros cercos de Bilbau (em 1835 e 1836), a família, depois de sofrer grandes transtornos, decide retirar-se para Portugal, em 1837.
Em 1845, o jovem Raimundo António matriculou-se na Escola Politécnica, mas não viria a completar o curso, apesar do que ganhou a vida como 2.º oficial da 1.ª repartição da Direcção-Geral do Comércio e Indústria. Porém, cedo começou a conviver com os oráculos coevos da vida política, lúdica e literária. Como bon vivant, que era, apreciava as caçadas, as viagens, a gastronomia e os saraus literários (tão satirizados por Eça no romance mencionado), na companhia de intelectuais, como Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Andrade Corvo, José Estêvão, Latino Coelho, Mendes Leal, Gomes de Amorim e Rebelo da Silva. Com outras personalidades importantes da sociedade portuguesa da época, forneceu receitas para a obra o cozinheiro dos cozinheiros, editada em 1870 por Paul Plantier. São conhecidas as amêijoas à Bulhão Pato, que não terão sido, pelos vistos, invenção sua, mas de um cozinheiro que pretendera homenagear o poeta e insigne gastrólatra.
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Ente parêntesis, diga-se que as preditas Amêijoas à Bulhão Pato constituem um petisco típico da culinária portuguesa estremenha. Alega-se que a sua designação é o tributo ao nosso poeta após este ter mencionado nos seus escritos um dos seus cozinheiros preferidos. É um prato muito comum em marisqueiras e cervejarias, a par da salada de polvo, salada de ovas e camarão. É confecionado com amêijoas, azeite, alho, coentros, sal, pimenta e limão (para temperar antes de servir). Algumas receitas sugerem a adição de uma pequena porção de vinho branco.
As Amêijoas à Bulhão Pato foram, não há muito tempo, um dos candidatos finalistas às Sete Maravilhas da Gastronomia Portuguesa.
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Bulhão Pato estreou-se nas letras, aos 18 anos de idade, com uma poesia que atraiu sobre si as atenções dos poetas “romanciscos” ou “romaniscos”, no dizer de Herculano, tendo-se tornado uma das figuras típicas do romantismo lânguido, presente em Os Maias como o Alencar “de olhar encovado e lento”, de grande ideal democráticos a raiar a utopia.
Aderiu, pois, à voga ultrarromântica, acrescentando elementos folclóricos e descrições de cenas e tipos populares, em linguagem viva, ora exaltada, ora coloquial. Entretanto, o poema narrativo com enredo novelesco Paquita (1856), sucessivamente reeditado de 1866 a 1894 e que o tornou célebre, parece ser um prenúncio do realismo. Em geral, a sua poesia, pelo lado satírico, reflete uma notória e funda preocupação social.
Pertencendo a um período de transição, para uns, e de decadência, para outros, da escola romântica, a sua poesia ganha ora um certo academismo e efusão lírica, ora uma certa sensualidade descritiva, prestes a configurar enredo romanesco. O realismo da sua escrita mostra-se, segundo António J. Barreiros, pelo modo como observa e trata as pessoas e as coisas.
Em 1850, publica o seu primeiro livro, Poesias, de Raimundo António de Bulhão Pato; em 1856, é editado pela primeira vez o poema narrativo Paquita; em 1862, aparece outro livro Versos, de Bulhão Pato; e, em 1866, começa a onda de reedições do referido poema Paquita. Publicaram-se depois, em 1867, as Canções da Tarde; em 1870, as Flôres Agrestes e O Cozinheiro dos Cozinheiros; em 1871, as Paizagens; em 1873, os Canticos e satyras; em 1881, o Mercador de Veneza; em 1879, Hamlet, traduções das tragédias de William Shakespeare e do Ruy Blas, de Victor Hugo. Seguiram-se, em 1881, algumas outras publicações: Satyras, Canções e Idyllios; em 1886, A José Estevão; e, finalmente, vem o Livro do Monte, em 1896.
Para o teatro, escreveu apenas uma comédia em um ato, amor virgem n'uma peccadora, encenada no Teatro D. Maria II em 1858 e publicada nesse mesmo ano.
Foi colaborador em diferentes jornais, por exemplo: Pamphletos (1858), a Semana, Revista Peninsular, Revista Contemporanea, Revista Universal e Brasil-Portugal, entre outros.
Terá sido o seu ultrarromantismo, influenciado por Lamartine e Byron, e seus dotes culinários que levaram Bulhão Pato a acreditar que servira de inspiração a Eça de Queirós na composição da personagem – algo caricatural – do poeta Tomás de Alencar. Trata-se de uma personagem que simboliza o tipo romântico piegas, o paladino da moral – que não tem defeitos e possui um coração grande e generoso. Era o companheiro e amigo de Pedro da Maia. Eça de Queirós serve-se desta personagem para construir discussões de escola, entre naturalistas e românticos, numa versão satírica ligada à polémica que ficou conhecida como a Questão Coimbrã.
Ao se crer retratado no romance  – o que Eça de Queirós negou, em uma deliciosa carta ao jornalista  Carlos Lobo d’ Ávila – Bulhão Pato terá ficado furioso e, em resposta, escreveu as sátiras O Grande Maia (1888) e Lázaro Cônsul (1889), em que atacou energicamente o autor de Os Maias.
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Sobre a sua obra, poderá dizer-se que se inspirou na tradição dos poemas narrativos clássicos tal como nos poemas byronianos. Mistura temas de fundo sentimentalismo com temas de incidência social, na busca de enredo a que fica associado o inconseguimento do côngruo dramatismo. Nitidamente colocado na transição da estética romântica para a realista, Bulhão Pato vai exprimindo progressivamente um pendor descritivo aliado a uma forte veia satírica. Todavia, na ótica do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, a parte mais interessante da sua produção literária são os livros de memórias. “Tem o dom de evocar homens e paisagens com grande exatidão e riqueza de pormenores”. Leva-nos a penetrar na intimidade de Almeida Garrett, a assistir aos últimos momentos de Alexandre Herculano, a conviver com os principais atores do período oitocentista, quer nos salões mundanos, quer nas lutas de rua, quer ainda nas diatribes de tribuna. Tudo vem expresso num tom coloquial, em que faz falar sempre o coração: “Estas memórias não são escritas, são conversadas” – adverte o autor.
Integram o acervo das memórias obras como as seguintes: Portugueses na Índia: Cenas Históricas (1883); Memórias I – Cenas de Infância e Homens de Letras; II – Homens Políticos; III – Quadrinhos de Outros Tempos, (1894-1907); Memórias – Homens Políticos: El-Rei D. Fernando II (1895).
Retirado, desde 1890, para o seu refúgio no Monte da Caparica, sente ainda nostalgicamente os ecos de um mundo em desaparecimento irreversível. Desde as lutas intestinas e fratricidas do liberalismo vs absolutismo à eclosão da República, dos exacerbados arroubos ultrarromânticos ao furor demoliente do futurismo – Bulhão Pato define claramente o seu estatuto, ao declarar em Sob os Ciprestes, “Eu pinto uma época”, tal como o realista Cesário Verde, no poema Nós, “Pinto quadros por letras, por sinais”. É o real exterior registado pelo mundo vivencial interior e, depois, recriado com a nitidez e precisão d que só o artista é capaz: é a visão íntima da realidade tal como o “eu” poiético é capaz de assumir e transformar criativamente.
E neste suave torpor melancólico e criativo se fina no Monte da Caparica, em 1912, o poeta da Ibéria, o poeta da alma lusitana em transformação efervescente, que seria interessante restabelecer na memória coletiva.
Aqui se deixa um apequena amostra poética do ultrarromântico pintor de época:

Feliz de Amor
Não sabes que ao ver-te triste,
E pensativa a meu lado,
O rosto na mão firmado.
E os olhos postos no chão,
Calado, ansioso, anelante,
Quero ler no teu semblante
A causa da dor constante
Que te oprime o coração?

Pois não basta o meu amor
Para te dar a ventura?
Responde: quando a luz pura
Do sol vem beijar a flor,
Não lhe acende mais a cor?
Não lhe dá mais formosura?

Agora, quando se inflama
Em teu peito aquela chama,
À qual tudo se ilumina
De viva, encantada luz,
Diz: é quando, minha vida,
Pálida, triste, abatida,
A tua fronte se inclina,
E melancólica sombra,
De mal contida amargura
Nos teus olhos se traduz?!

Certeza de que és amada
Com quanto poder na terra
Em peito de homem se encerra,
Tem-la em tua alma gravada!
Então de fundo desgosto
Porque vem nuvem pesada
Carregar teu belo rosto?

Pois se ao vívido calor
Do sol a rosa fulgura
E redobra aroma e cor,
Não te há de dar a ventura
A chama do meu amor?!
Referências
Barreiros, J. (1982).História da Literatura Portuguesa. Vol. II. Séc. XIX-XX. Braga: Livraria Editora Pax L.da
Braga, T. (1986). História da Literatura Portuguesa. Vol. VI. Mem Martins: Publicações Europa-América

Lisboa, E. (coord.) – Instituto Português do Livro e da Leitura (1990). Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. Vol. II. Mem Martins: Publicações Europa-América

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