Quem fez uma
leitura atenta e sistemática do Romance de Eça de Queirós, Os Maias (1888), com o subtítulo Episódios da Vida Romântica, deve recordar-se de uma das suas
personagens ultrarromânticas “Tomás de Alencar”, o poeta a quem e com quem se
brindava, que dava conselhos de vida e tinha apurado gosto pela culinária. Embora
o autor o tenha negado rotundamente, há um escritor e poeta que se reconhece
como figura inspiradora da construção dessa personagem e, como é normal, não
terá gostado do papel a que terá oferecido azo na obra queirosiana, dados os
contornos caricaturais que a emolduram. Estamos a referir-nos a Raimundo
António Bulhão Pato,
conhecido pelo nome abreviado de Bulhão
Pato, um poeta e prosador de significativa produção literária e
jornalística, infelizmente votado ao esquecimento, aliás como muitos dos nossos
cultores das letras.
Foi um poeta, ensaísta e memorialista português,
sócio da Academia Real das
Ciências de Lisboa. As suas Memórias,
escritas em tom íntimo e nostálgico, são interessantes pelas informações
biográficas e históricas que fornecem, retratando o ambiente intelectual
português da última metade do século
XIX. Conhece-se o
retrato de Bulhão Pato –
um óleo sobre madeira, da autoria do pintor português Columbano Bordalo
Pinheiro, pintado em 1883 medindo 30,5 cm de altura e 23 cm de
largura, e exposto no Museu do Chiado de Lisboa.
***
Este filho
de pai português, o fidalgo Francisco de Bulhão Pato, também poeta, e de mãe
espanhola, María de la Piedad Brandy, nasceu, no ano de 1829 em Bilbau, no País Basco, tendo passado seus
primeiros oito anos no distrito de Deusto.
Foi um período que
o marcou fortemente, tanto pela mítica imagem de uma infância feliz que vivera
como pela descoberta das terríveis realidades de uma das guerras civis
espanholas. Era a primeira guerra carlista, que
se desenvolveu, de 1833 a 1840, entre
os partidários do infante Carlos María
Isidro de Borbón – conhecidos como carlistas e lutadores por um regime absolutista – e os de Isabel II –
partidários de um regime liberal e
denominados cristinos por apoiarem a regente María Cristina. Após os
dois primeiros cercos de Bilbau (em 1835 e 1836), a família, depois de sofrer grandes
transtornos, decide retirar-se para Portugal, em 1837.
Em 1845, o jovem Raimundo
António matriculou-se na Escola Politécnica, mas não viria a completar o curso,
apesar do que ganhou a vida como
2.º oficial da 1.ª repartição da Direcção-Geral do Comércio e Indústria. Porém, cedo começou a conviver com os
oráculos coevos da vida política, lúdica e literária. Como bon vivant, que era, apreciava as caçadas, as viagens, a gastronomia e os saraus
literários (tão satirizados por Eça no romance mencionado), na companhia de
intelectuais, como Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Andrade Corvo, José
Estêvão, Latino Coelho, Mendes Leal, Gomes de Amorim e Rebelo da Silva. Com
outras personalidades importantes da sociedade portuguesa da época, forneceu
receitas para a obra o
cozinheiro dos cozinheiros, editada em 1870 por Paul Plantier. São
conhecidas as amêijoas à Bulhão Pato, que não terão sido, pelos vistos,
invenção sua, mas de um cozinheiro que pretendera homenagear o poeta e insigne
gastrólatra.
***
Ente
parêntesis, diga-se que as preditas Amêijoas
à Bulhão Pato constituem um petisco típico da
culinária portuguesa
estremenha.
Alega-se que a sua designação é o tributo ao nosso poeta após este ter
mencionado nos seus escritos um dos seus cozinheiros preferidos. É um prato
muito comum em marisqueiras e cervejarias, a par da salada de polvo, salada de
ovas e
camarão. É confecionado com amêijoas, azeite, alho, coentros, sal, pimenta e
limão (para temperar antes de servir). Algumas receitas sugerem a adição de uma
pequena porção de vinho
branco.
As Amêijoas à Bulhão Pato foram, não há muito tempo, um dos candidatos
finalistas às Sete Maravilhas da Gastronomia Portuguesa.
***
Bulhão Pato estreou-se
nas letras, aos 18 anos de idade, com uma poesia que atraiu sobre si as
atenções dos poetas “romanciscos” ou “romaniscos”, no dizer de Herculano,
tendo-se tornado uma das figuras típicas do romantismo lânguido, presente em Os Maias como o Alencar “de olhar encovado e lento”, de grande
ideal democráticos a raiar a utopia.
Aderiu, pois, à
voga ultrarromântica,
acrescentando elementos folclóricos e descrições de cenas e tipos populares, em
linguagem viva, ora exaltada, ora coloquial. Entretanto, o poema narrativo com enredo novelesco Paquita
(1856), sucessivamente reeditado
de 1866 a 1894 e que o tornou célebre, parece ser um prenúncio do realismo. Em
geral, a sua poesia, pelo lado satírico, reflete uma notória e funda preocupação
social.
Pertencendo a um
período de transição, para uns, e de decadência, para outros, da escola
romântica, a sua poesia ganha ora um certo academismo e efusão lírica, ora uma
certa sensualidade descritiva, prestes a configurar enredo romanesco. O realismo
da sua escrita mostra-se, segundo António J. Barreiros, pelo modo como observa
e trata as pessoas e as coisas.
Em 1850, publica o
seu primeiro livro, Poesias, de Raimundo António de Bulhão Pato;
em 1856, é editado pela primeira vez o poema narrativo Paquita; em 1862, aparece outro livro Versos, de Bulhão Pato; e, em 1866, começa a onda de reedições do referido poema Paquita.
Publicaram-se depois, em 1867, as Canções
da Tarde; em 1870, as Flôres
Agrestes e O Cozinheiro dos
Cozinheiros; em 1871, as Paizagens;
em 1873, os Canticos e satyras;
em 1881, o Mercador de Veneza; em 1879, Hamlet, traduções das
tragédias de William Shakespeare e do Ruy Blas, de Victor Hugo.
Seguiram-se, em 1881, algumas outras publicações: Satyras, Canções e Idyllios; em 1886, A José Estevão; e,
finalmente, vem o Livro do
Monte, em 1896.
Para o teatro, escreveu
apenas uma comédia em um ato, amor
virgem n'uma peccadora, encenada no Teatro
D. Maria II em 1858 e publicada nesse mesmo ano.
Foi colaborador em
diferentes jornais, por exemplo: Pamphletos (1858), a Semana, Revista Peninsular, Revista Contemporanea, Revista Universal e Brasil-Portugal, entre outros.
Terá sido o seu ultrarromantismo, influenciado por
Lamartine e Byron, e seus dotes culinários que levaram Bulhão Pato a acreditar
que servira de inspiração a Eça de
Queirós na composição da personagem – algo caricatural – do poeta Tomás de Alencar. Trata-se
de uma personagem que simboliza o tipo romântico piegas, o paladino da moral – que
não tem defeitos e possui um coração grande e generoso. Era o companheiro e
amigo de Pedro da Maia. Eça de Queirós serve-se desta personagem para construir
discussões de escola, entre naturalistas e românticos, numa versão satírica
ligada à polémica que ficou conhecida como a Questão Coimbrã.
Ao se crer
retratado no romance – o
que Eça de Queirós negou, em uma deliciosa carta ao jornalista Carlos Lobo d’ Ávila – Bulhão Pato
terá ficado furioso e, em resposta, escreveu as sátiras O
Grande Maia (1888) e Lázaro Cônsul
(1889), em que atacou energicamente o autor de Os Maias.
***
Sobre a sua obra,
poderá dizer-se que se inspirou na tradição dos poemas narrativos clássicos tal
como nos poemas byronianos. Mistura temas de fundo sentimentalismo com temas de
incidência social, na busca de enredo a que fica associado o inconseguimento do
côngruo dramatismo. Nitidamente colocado na transição da estética romântica para
a realista, Bulhão Pato vai exprimindo progressivamente um pendor descritivo
aliado a uma forte veia satírica. Todavia, na ótica do Dicionário
Cronológico de Autores Portugueses,
a parte mais interessante da sua produção literária são os livros de memórias. “Tem
o dom de evocar homens e paisagens com grande exatidão e riqueza de pormenores”.
Leva-nos a penetrar na intimidade de Almeida Garrett, a assistir aos últimos
momentos de Alexandre Herculano, a conviver com os principais atores do período
oitocentista, quer nos salões mundanos, quer nas lutas de rua, quer ainda nas diatribes
de tribuna. Tudo vem expresso num tom coloquial, em que faz falar sempre o
coração: “Estas memórias não são escritas, são conversadas” – adverte o autor.
Integram o acervo das memórias
obras como as seguintes: Portugueses na
Índia: Cenas Históricas (1883); Memórias
I – Cenas de Infância e Homens de Letras; II – Homens Políticos; III –
Quadrinhos de Outros Tempos, (1894-1907); Memórias – Homens Políticos: El-Rei D. Fernando II (1895).
Retirado, desde 1890, para o seu
refúgio no Monte da Caparica, sente ainda nostalgicamente os ecos de um mundo
em desaparecimento irreversível. Desde as lutas intestinas e fratricidas do
liberalismo vs absolutismo à eclosão da República, dos exacerbados arroubos ultrarromânticos
ao furor demoliente do futurismo – Bulhão Pato define claramente o seu estatuto,
ao declarar em Sob os Ciprestes, “Eu pinto uma época”, tal como o realista
Cesário Verde, no poema Nós, “Pinto quadros por letras, por sinais”. É
o real exterior registado pelo mundo vivencial interior e, depois, recriado com
a nitidez e precisão d que só o artista é capaz: é a visão íntima da realidade
tal como o “eu” poiético é capaz de
assumir e transformar criativamente.
E neste suave torpor melancólico
e criativo se fina no Monte da Caparica, em 1912, o poeta da Ibéria, o poeta da
alma lusitana em transformação efervescente, que seria interessante restabelecer
na memória coletiva.
Aqui se deixa um apequena amostra
poética do ultrarromântico pintor de época:
Feliz
de Amor
Não sabes que ao ver-te triste,
E pensativa a meu lado,
O rosto na mão firmado.
E os olhos postos no chão,
Calado, ansioso, anelante,
Quero ler no teu semblante
A causa da dor constante
Que te oprime o coração?
Pois não basta o meu amor
Para te dar a ventura?
Responde: quando a luz pura
Do sol vem beijar a flor,
Não lhe acende mais a cor?
Não lhe dá mais formosura?
Agora, quando se inflama
Em teu peito aquela chama,
À qual tudo se ilumina
De viva, encantada luz,
Diz: é quando, minha vida,
Pálida, triste, abatida,
A tua fronte se inclina,
E melancólica sombra,
De mal contida amargura
Nos teus olhos se traduz?!
Certeza de que és amada
Com quanto poder na terra
Em peito de homem se encerra,
Tem-la em tua alma gravada!
Então de fundo desgosto
Porque vem nuvem pesada
Carregar teu belo rosto?
Pois se ao vívido calor
Do sol a rosa fulgura
E redobra aroma e cor,
Não te há de dar a ventura
A chama do meu amor?!
Referências
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerras_Carlistas,
ac julho 2014
http://www.poesiafaclube.com/poemas/feliz-de-amor#ixzz399SSLPJ0,
ac. julho de 2014
http://pt.wikipedia.org/wiki/Retrato_de_Bulh%C3%A3o_Pato,
ac julho 2014
Barreiros, J. (1982).História da
Literatura Portuguesa. Vol. II. Séc. XIX-XX. Braga: Livraria Editora Pax L.da
Braga, T. (1986). História da Literatura
Portuguesa. Vol. VI. Mem Martins: Publicações Europa-América
Lisboa, E. (coord.) – Instituto
Português do Livro e da Leitura (1990). Dicionário Cronológico de Autores
Portugueses. Vol. II. Mem Martins: Publicações Europa-América
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