A leitura do texto de Tiago
Saleiro subordinado ao título O direito e o dever de educar, no site do educare.pt 1,
recordou-me uma reflexão, a que procedi em devido tempo, sobre a liberdade de
aprender e ensinar consagrada na Constituição da República Portuguesa (CRP).
Tal reflexão não me dispensa de acompanhar o mencionado articulista e proceder
a texto de teor similar.
Entretanto,
pretendo estribar o meu arrazoado num conjunto documental que, embora análogo
ao da nossa CRP, se afigure um pouco mais alargado e quiçá mais consensual, até
porque, se esse contexto for considerado como deve ser, melhor se perceberá que
não é a CRP que deve ser alterada e possivelmente a legislação que vem sendo
promulgada na sua esteira, mas equacionadas alternativas a muito do que
defendem ideias, interesses e práticas vigentes.
***
Assim,
a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (adotada pela Organização das Nações Unidas a 10 de dezembro de 1948) 2,
no seu art.º 26.º, garante o direito de todos à educação, determinando-lhe
gratuitidade e obrigatoriedade, ao menos ao nível elementar, bem
como a generalização do ensino técnico e profissional e a abertura do ensino
superior a todos, em plena igualdade, em função do mérito. Do seu lado, a educação
visa a expansão da personalidade humana e reforço dos direitos e liberdades
fundamentais e favorece a compreensão, tolerância e amizade entre as nações e
os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das
Nações Unidas para a manutenção da paz.
O
mesmo artigo, no seu n.º 3, reconhece que aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o
género de educação a dar aos filhos. Tal não quer dizer que, na ausência ou insuficiência
dos pais, outras entidades, nomeadamente parentes, organizações da sociedade
civil vocacionadas para o efeito e o Estado, não devam assumir esse direito e
encargo.
Por
seu turno, a Convenção sobre os Direitos da
Criança 3 (adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas,
a 20 de novembro de 1989, e ratificada por Portugal, a 21 de setembro de 1990)
dedica à educação os artigos 18.º (responsabilidade dos pais), 28.º (direito da
criança à educação) e 29.º (objetivos da educação).
De acordo com o art.º 18.º, cabe aos pais e aos seus
representantes legais a principal responsabilidade comum de educar a criança,
devendo o Estado ajudá-los, de forma apropriada, a exercer a sua
responsabilidade na educação dos filhos.
Nos termos da art.º 28.º, a
criança tem direito à educação; o Estado deve tornar o ensino primário (ou com
outra designação) obrigatório e gratuito, encorajar a organização de diferentes
sistemas de ensino secundário acessíveis a todas as crianças e tornar o ensino
superior acessível a todos, em função das capacidades de cada um; a disciplina
escolar respeitará os direitos e a dignidade da criança; e, para garantir o
respeito por este direito, os Estados promovem e encorajam a cooperação
internacional.
E o art.º 29.º estabelece que a
educação visa a promoção do desenvolvimento da personalidade da criança, dos
seus dons e aptidões mentais e físicas, na medida das suas potencialidades; a
sua preparação para uma vida adulta ativa numa sociedade livre; e a exigência
geral a todos do respeito pelos pais, pela sua identidade, pela sua língua e
valores culturais, bem como pelas culturas e valores diferentes dos seus.
***
Também a Igreja Católica se tem
pronunciado abundantemente sobre esta matéria. Assim, podemos ver alguns dos
conteúdos das encíclicas Divini
Illius Magistri (DIM), de Pio XI (1929), Pacem in Terris (PT), de João XXIII (1963); da Declaração Gravissimum Educationis (GE), do
Concílio Vaticano II; do Compêndio da
Doutrina Social da Igreja (CDSI), do Pontifício Conselho Justiça e Paz; do Código de Direito Canónico (CDC),
promulgado em 1983; e do Catecismo da
Igreja Católica (CIC), de 1992.
Logo a DIM, na perícopa “a quem
pertence a educação” afirma a índole social e não singular da educação e, em
conformidade com tal índole, consagra as três “sociedades necessárias,
distintas e também unidas harmonicamente por Deus, no meio das quais nasce o
homem” – duas de ordem natural, a família e a sociedade civil; e uma de ordem
sobrenatural, a Igreja.
Considerando que a família é
instituída por Deus e cujo fim próprio é a procriação e a educação da prole,
ela detém a prioridade de natureza e, portanto, a prioridade de direitos
relativamente à sociedade civil. Porém, dado que a família é sociedade
imperfeita (por não possuir todos os meios para o próprio aperfeiçoamento),
cabe à sociedade civil, que é sociedade perfeita (tendo em si todos os meios para
conseguir o bem comum temporal, como seu próprio fim), a preeminência sobre a
família, que atinge a sua conveniente perfeição temporal precisamente na
sociedade civil. Por seu turno, a Igreja, enquanto sociedade em que nasce o
homem, mediante o Batismo, para a vida da graça – sociedade de ordem
sobrenatural e universal, sociedade perfeita, porque reúne em si todos os meios
para o seu fim que é a salvação dos homens – tem uma função suprema na sua
ordem. Por isso, a educação, considerando o homem individual e socialmente, na
ordem da natureza e da graça, pertence às três sociedades, em proporção diversa
e correspondente à coordenação dos respetivos fins, segundo a ordem de
providência que Deus estabeleceu (cf DIM, A QUEM PERTENCE A EDUCAÇÃO).
Depois, a PT declara que aos pais compete a prioridade na questão do
sustento e educação dos filhos (vd PT,17); e, no quadro da realização do
bem comum, razão de ser dos poderes públicos, compete-lhes a sua promoção de
modo a respeitar os seus elementos essenciais e a adaptar as suas exigências às
atuais condições históricas (cf PT,54).
Por sua vez, a GE reconhece que
“todos os homens, de qualquer estirpe, condição e idade, visto gozarem da
dignidade de pessoa, têm direito inalienável a uma educação” correspondente ao
próprio fim, acomodada à índole, sexo, cultura e tradições pátrias, e aberta ao
consórcio fraterno com os outros povos em ordem à verdadeira unidade e paz. E
adverte que a verdadeira educação visa a formação da pessoa humana, com vista
ao seu fim último e ao bem das sociedades de que o homem é membro e em cujas responsabilidades
participará (cf GE,1).
Por outro lado, declara que os pais têm a gravíssima obrigação de educar a prole e, por
isso, “devem ser reconhecidos como seus primeiros e principais educadores”. E
ensina que a família é “a primeira escola das virtudes sociais de que as
sociedades têm necessidade”.
Mas, como
o dever de educar, que pertence primariamente à família, precisa da ajuda da
sociedade, além dos direitos dos pais e de outros a quem os pais confiam parte
do trabalho de educação, há deveres e direitos que competem à sociedade civil,
à qual pertence ordenar o que se requer para o bem comum temporal. Faz, assim,
parte dos seus deveres promover, de vários modos, a educação da juventude –
defendendo os deveres e direitos dos pais e de outros que colaboram na educação
e auxiliá-los; ultimando, segundo o princípio da subsidiariedade, a obra da
educação, se falharem os esforços dos pais e das outras sociedades, muito
embora com a observância dos desejos dos pais; e, além disso, fundando escolas
e instituições próprias, na medida em que o bem comum o exija.
Ora em consonância
com o seu primeiro e inalienável dever e direito de educar os filhos, os pais devem
gozar de verdadeira liberdade na escolha da escola; e o poder público, a quem
pertence proteger e defender as liberdades dos cidadãos, deve cuidar, segundo a
justiça distributiva, que sejam concedidos subsídios públicos de modo que os
pais possam escolher, em consciência e com toda a liberdade, as escolas para os
seus filhos (cf GE,6).
Todavia, cabe
também, por uma razão particular, à Igreja o dever de educar, não só porque
deve ser reconhecida como sociedade capaz de ministrar a educação, mas
sobretudo porque tem os deveres de: anunciar a todos os homens o caminho da
salvação; comunicar aos crentes a vida de Cristo e ajudá-los, com contínua
solicitude, a conseguir a plenitude desta vida; e colaborar com todos os povos
na promoção da perfeição integral da pessoa humana, no bem da sociedade
terrestre e na edificação dum mundo configurado mais humanamente (cf GE,3).
Considerando a escola como espaço
privilegiado para a ministração da educação intelectual, técnica e humana, é
realçada a beleza e a magnitude da responsabilidade da vocação dos que, ajudando os pais no cumprimento do seu dever e
fazendo as vezes da comunidade humana, têm o dever de educar em escolas – vocação
que exige especiais qualidades de inteligência e coração, preparação
esmeradíssima e vontade sempre pronta à renovação e adaptação (cf GE,5).
Na esteira da GE, o CDSI confere
à família papel original e
insubstituível na educação dos filhos, mercê do amor que se torna alma e norma
educativa; e qualifica como essencial, original e primário, insubstituível e
inalienável (não delegável nem usurpável) o direito-dever dos pais na educação
da prole (n.º 239).
Todavia, como são os primeiros, mas não os únicos
educadores dos filhos (têm o direito de escolher os
instrumentos formativos correspondentes às próprias convicções e de buscar os
meios que melhor os possam ajudar na tarefa de educadores, mesmo no âmbito
espiritual e religioso), compete-lhes
exercer com sentido de responsabilidade a sua obra educativa em colaboração
estreita e vigilante com os organismos civis e eclesiais. A dimensão comunitária do homem
exige e origina uma obra mais ampla e articulada, que seja o fruto da colaboração
ordenada das diversas forças educativas (n.º 240). Inerente ao direito de educar,
é reconhecido aos pais o direito de
fundar e manter instituições educativas, devendo os poderes assegurar a
distribuição das subvenções públicas de modo que os pais sejam livres no
exercício do seu direito, sem ónus injustos. Os pais não devem ser
constrangidos a fazer, direta ou indiretamente, despesas suplementares que
impeçam ou limitem injustamente o exercício desta liberdade (n.º
241).
A
família tem a responsabilidade de oferecer uma educação integral, que vise o aprimoramento da
pessoa humana em relação ao seu fim último e ao bem das sociedades de que o
homem é membro e em cujas tarefas terá de participar em adulto. Para tanto, os
filhos devem – pelo testemunho de vida e pela palavra – ser motivados para o
diálogo, encontro, sociabilidade, legalidade, solidariedade e paz, pelo cultivo
das virtudes fundamentais da justiça e da caridade.
Na
educação, o papel paterno e o materno são igualmente necessários, devendo os pais agir
conjuntamente, de modo que a autoridade – por eles exercida com respeito e
delicadeza, com firmeza e vigor – seja credível, coerente, sábia e orientada ao
bem integral dos filhos (n.º 242).
Os
pais têm ainda uma particular responsabilidade na esfera da educação sexual,
levando-os a
aprender, de modo ordenado e progressivo, o significado da sexualidade e a
apreciar os valores humanos e morais relativos a ela, bem como a obrigação de
verificar como se realiza a educação sexual nas instituições educativas, para
garantir que tema tão importante e delicado seja abordado de modo apropriado (n.º
243).
O CIC, por sua vez, ensina que os pais são os primeiros responsáveis pela educação dos
filhos, com a grave responsabilidade de lhes darem bom exemplo e de saberem
reconhecer diante deles os próprios defeitos, para melhor os guiarem e
corrigirem. Testemunham tal responsabilidade pela criação
dum lar onde são regra a
ternura, o perdão, o respeito, a fidelidade e o serviço desinteressado, e que
seja lugar apropriado à educação das
virtudes, que requer a aprendizagem da abnegação, de sãos critérios, do
autodomínio – condições da verdadeira liberdade. Por outro lado, os pais ensinarão
os filhos a subordinar as dimensões físicas e instintivas às dimensões
interiores e espirituais (n.º 2223) e a acautelar-se dos perigos e
degradações que ameaçam as sociedades humanas (n.º
2224).
Para se desenvolver conforme à
sua natureza (e também no aspeto educativo), a pessoa humana necessita de vida social.
A família e a comunidade civil correspondem, de modo mais imediato, à natureza
do homem (n.º 1891).
Ora, segundo o princípio da subsidiariedade, nem o Estado nem qualquer
sociedade mais abrangente devem substituir-se à iniciativa e responsabilidade
das pessoas e dos corpos intermédios (n.º 1894). Mas incumbe aos que exercem cargos de
autoridade garantir os valores que atraem a confiança dos membros do grupo e os
incitam a colocar-se ao serviço dos semelhantes. E a participação começa pela
educação e pela cultura (n.º 1917). Compete, pois, ao Estado defender e promover o
bem comum da sociedade civil, o qual exige uma organização da sociedade
internacional (n.º 1927).
Por fim, o CDC estatui que os pais, que deram a vida aos filhos, têm, por si ou por
quem faz, as suas vezes a obrigação grave e o direito de os educar (cân. 226, 2), bem como o de escolher livremente os meios e as instituições
com que possam providenciar melhor à educação católica dos filhos, com o direito
de desfrutar dos auxílios da sociedade civil, que são necessários à educação
católica dos filhos (cân. 793, 797, 798). Por outro lado,
valoriza a escola como o meio principal de ajuda dos pais e exige a colaboração
mútua entre pais e professores e reafirma a necessidade e as caraterísticas da
educação integral (cân 795, 796).
Estes documentos, que explicitam
os itens atinentes ao direito à educação, aos seus objetivos e à
responsabilidade dos pais (ou de quem as suas vezes fizer) e do Estado em
matéria educativa, não aponta nem para a excessiva liberalização da educação
nem para a oposta estatização. Parece, antes, definir a primeira
responsabilidade dos pais nos preliminares educativos e na escolha de perfil de
educação e escola, bem como a responsabilidade do Estado em assegurar a
educação básica e a facilitar a generalização e o acesso aos níveis intermédios
e superiores de educação e de ensino. Além disso, divisa-se uma opção pela
observância dos princípios da cooperação, subsidiariedade e solidariedade,
segundo os quais pais (e professores) e sociedade civil deverão fazer tudo o
que esteja ao seu alcance, cabendo ao Estado o papel de garante, facilitador da
missão educativa e de prestador dos serviços de que outrem não disponha.
1http://www.educare.pt/opiniao/artigo/ver/?id=29242&langid=1; 2https://dre.pt/comum/html/legis/dudh.html;
3https://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf,
ac agosto de 2014.
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