A Comunicação Social referia ontem
que as autoridades
chinesas ainda não decidiram se dois dirigentes de topo e três outros membros
da Open Macau Society, agora na
cadeia, serão formalmente acusados. Sofre assim mais uma contrariedade a
campanha para ser escolhido em eleições o chefe do Governo da cidade.
Segundo o South
China Morning Post, diário de Hong Kong, o presidente da predita
organização, Jason Chao, um outro dirigente e três ativistas foram detidos por terem
ignorado a proibição do Governo local de recolherem dados pessoais de
residentes na cidade, em nome do empenho governamental em zelar pela
“privacidade” dos cidadãos.
Chao entende as referidas detenções como “uma séria
violação de direitos humanos” e considerou que o nervosismo revelado na
detenção permite “avaliar como o Governo receia o resultado do referendo”
informal, que foi lançado a 25 de agosto, programado para durar uma semana (de
25 a 30).
O procedimento referendário será feito por voto
eletrónico (por computador ou telemóvel) e, em dois dos dias da consulta, em
cinco locais de voto a instalar na região. A duas questões respeita o
referendo: a interrogação aos residentes do território – permanentes e não
permanentes – se concordam que o chefe do Executivo da Região de Macau deve ser
eleito por sufrágio universal em 2019; e a interrogação sobre o nível de
confiança da população no candidato ou eventuais candidatos a chefe do Executivo.
Os boletins de voto estão disponíveis em três línguas: português, chinês e
inglês.
Os chineses receiam que o processo obtenha junto da
população eco tão favorável como o similar, lançado anteriormente em Hong Kong,
que lhe serviu de inspiração. O de Hong Kong, apesar de ser apodado de “farsa”
pelas autoridades, obteve a adesão de 800.000 pessoas.
Em Macau, a insatisfação com o presente quadro social tem
vindo a agravar-se. O antigo território sob administração portuguesa passara
para a tutela chinesa e pleno exercício da soberania chinesa com a herança
original de ser o único território chinês em que os casinos têm existência
legal. Mas tal existência, que atrai à cidade todos os jogadores do país, tem
feito disparar os preços do aluguer e tem agravado as desigualdades sociais,
criando o caldo de cultivo para uma ampla aceitação da campanha pela
democracia.
Já em dezembro de 2013, por
iniciativa do Movimento Novo Macau Democrático (NMD), cerca de mil pessoas se
manifestaram nas ruas para exigir mais democracia e menos corrupção.
Na marcha, sem incidentes, sob o
lema Lutar contra a corrupção, combater
pela democracia e manter o nível de vida dos residentes, os manifestantes
entoaram diversos slogans alusivos à
situação de Macau que designam de “brilho para o exterior, podridão para o
interior”. Também alguns cartazes exibiam a célebre frase sentenciosa, o poder absoluto corrompe absolutamente,
acompanhada de caricatura com os membros do governo usando um passa-montanhas.
No final, junto ao Palácio da
Praia Grande, os manifestantes entregaram quatro petições com a exigência de
maior democratização, eficaz combate à corrupção e manutenção dos empregos
pelos trabalhadores de Macau, outra das grandes bandeiras do NMD, que quer
estimular a denúncia recompensada dos imigrantes ilegais. “Macau teve muito
sucesso nos últimos anos, mas há muitos problemas de falta de transparência, de
corrupção e injustiças”, denunciou o deputado Ng Kuok Cheong, que insistiu
na informação de que o anterior chefe do Executivo de Macau, Edmund Ho, quebrou
a promessa de acelerar o processo de democratização em Macau.
Dos 29 deputados à Assembleia
Legislativa somente 12 provêm do sufrágio direto e universal, sendo 10 eleitos
indiretamente por associações “representativas” e 7 nomeados pelo chefe do
Executivo que, por sua vez, é escolhido por um colégio eleitoral de 300
pessoas.
O presidente da China, Hu Jintao,
garante que o governo central “vai dar todos os apoios ao desenvolvimento
económico, à melhoria da vida popular, ao avanço democrático e à promoção da
harmonia social de Macau”.
Entretanto, o referendo segue a
sua marcha dentro da normalidade.
***
Ora, a razão de ser de toda esta movimentação
reside na redação, na interpretação que a respetiva comissão dá ao artigo 23.º
da lei básica (LB) e na sua posterior regulamentação. É que, a 22 de outubro de 2008, o Chefe do Executivo publicou
a proposta de regulamentação das matérias referidas no artigo 23.º da LB:
crimes de traição à pátria, secessão, subversão, sedição, desvio de segredos de
Estado e proibição de contactos internacionais de associações políticas. Mais
tarde, discutida a proposta, foi o predito artigo regulamentado por lei, logo originando
inquietação e preocupação entre os democratas, que receiam
que a lei possa limitar a liberdade de expressão e protesto dos cidadãos. Não
pode deixar de se ter em conta que
Macau é Região Administrativa Especial que mantém o gozo de direitos,
liberdades e garantias, como a liberdade de expressão e religiosa, herdados da
administração portuguesa e consagrados na LB.
***
A Lei Básica da Região Administrativa
Especial de Macau (RAEM) da República Popular da China (RPC)
é um normativo com força constitucional na ordem jurídica da RAEM. Define os
princípios fundamentais que a RAEM deve seguir e respeitar, bem como o seu
estatuto e o seu relacionamento com as Autoridades Centrais da RPC. Todas as políticas
e sistemas aplicados na RAEM – incluindo o social e económico, o de garantia
dos direitos e liberdades fundamentais dos residentes, o executivo, o legislativo
e o judicial, bem como as políticas a eles atinentes – se baseiam nas
disposições da LB. Ademais, as leis, decretos-lei, regulamentos administrativos
ou atos normativos da RAEM não podem contrariar a LB.
A LB, que entrou em vigor a 20 de dezembro d 1999,
quando a RPC assumiu o exercício da soberania sobre Macau, foi elaborada
conforme a política chinesa de “um país, dois sistemas” (em que todos parecem
tere acreditado), apresentada e definida por Deng Xiaoping – vindo substituir
o Estatuto Orgânico de Macau, em vigor desde 1976.
No quadro
das garantias, a LB, além
de garantir aos residentes da RAEM os direitos, garantias e liberdades,
estabelece que Macau possuirá um elevado grau de autonomia em todos os
aspetos e assuntos a ela associados, à exceção dos assuntos de defesa e
negócios estrangeiros (política externa) sendo que, nesta última esfera, Macau
goza ainda de alguma autonomia. Determina também que todos os oficiais e
administradores de Macau são habitantes de Macau, e não pessoas e oficiais da
RPC. Especifica outrossim que o sistema social e económico-financeiro da RAEM,
bem como os direitos, deveres e liberdades dos seus cidadãos se manterão
inalteráveis durante, pelo menos, 50 anos, ou seja, até ao ano 2049. Por isso,
a cidade mantém a moeda própria (a pataca) e sistema fiscal e
económico-financeiro próprio (de caráter capitalista, diferente do
sistema socialista da RPC), o seu próprio sistema de controlo de
imigração e de fronteiras e a sua própria polícia.
Por outro lado, a LB estabelece a tripartição dos
poderes, tal como na maioria dos sistemas políticos: executivo (Chefe do
executivo de Macau e seu Governo), legislativo (Assembleia Legislativa de
Macau) e judicial (Tribunais).
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_B%C3%A1sica_da_Regi%C3%A3o_Administrativa_Especial_de_Macau_da_Rep%C3%BAblica_Popular_da_China,
ac agosto de 2014).
A sua génese
revela-se um tanto complexa, embora escrupulosamente cuidada.
Um ano após a assinatura da Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau (em Pequim, a 13 de abril de 1987) pelos Chefes do Governo da
RPC e do Governo da República Portuguesa, foi deliberada em 13 de abril de
1988, pela I Sessão da VII Legislatura da Assembleia Popular Nacional (APN) da RPC, a criação da Comissão de
Redação da Lei Básica da RAEM da República Popular da China.
Em setembro de 1988, a lista dos
membros desta comissão, destinada a redigir e elaborar o documento
constitucional da RAEM, foi aprovada pela Comissão Permanente da APN da RPC. Esta lista era
constituída por 48 personalidades, sendo 19 delas de Macau e 29 provindas da China Continental, incluindo Ji Pengfei, que
era diretor do Gabinete para os Assuntos de Hong Kong e Macau junto do Conselho
de Estado e que se tornou presidente desta Comissão.
A LB da RAEM foi aprovada e
promulgada no dia 31 de março de 1993 pela
I Sessão da VIII Legislatura da APN.
A interpretação da LB da RAEM cabe à APN,
através do seu Comité Permanente, que autoriza os tribunais da RAEM a
interpretar, casuisticamente, as disposições que estejam dentro dos limites da
autonomia. No entanto, se os tribunais da RAEM, no julgamento de casos, precisarem
da interpretação de disposições da LB respeitantes a matérias que sejam da
responsabilidade do Governo Popular Central da RPC ou do relacionamento entre
as Autoridades Centrais e a Região e, se tal interpretação puder afetar o
julgamento dos casos, antes de proferir sentença final, os tribunais da Região
devem obter, através do Tribunal de Última
Instância da Região, a
interpretação das disposições por parte do Comité Permanente da APN.
Em matéria de revisão,
ficou estabelecido que, dado que, em conformidade com a Constituição da RPC, a
LB da RAEM é decretada pela APN, o poder de revisão pertence exclusivamente à
APN, cabendo o poder de apresentar propostas de revisão ao Comité Permanente da
Assembleia Popular Nacional, ao Conselho de Estado e à RAEM, parecendo excessivo
o poder de iniciativa confiado a dois órgãos do poder central chinês.
***
Já na década de 80, estranhei que
a entrega de Macau à China fosse negociada sem qualquer contestação, quando a
descolonização dos demais territórios sob administração portuguesa foi tão
contestada, em 1975, como venda do país ou entrega de mão beijada à tutela
soviética (comunista) e sem quaisquer contrapartidas para os portugueses e para
os autóctones. Agora, não se reparava que a China estava sob regime comunista,
não abria mão para cedência democrática, não ofereceu quaisquer contrapartidas,
a não ser a da imensidão. Pelo contrário, Portugal fez avultados investimentos
em Macau antes de 1999, ano agendado para a transição.
Quem esteve atento à composição
da comissão de redação da LB (maioritariamente chinesa e presidida por um alto
dignitário chinês), à cláusula de revisão ou à disposição que estabelece um
prazo para a vigência da democracia (ou seja, enquanto der jeito à RPC), como é
que poderia acreditar que situações reivindicativas como a atual havia de
passar impune? Não se crê que a LB, promulgada antes do ano da transferência,
não fosse conhecida pelo nosso Governo.
Há que refletir na posição de António Katchi, jurista português radicado no território,
que entende que Macau,
como Hong Kong, dificilmente terá um sistema político comparável ao dos países
considerados democráticos por estar sujeito a um “regime totalitário”
centralizador.
O jurista explicitou à agência Lusa a sua posição ao sublinhar que um
Estado ou uma região que tem um regime formalmente democrático, mas que está
subordinado(a) a uma superestrutura antidemocrática, não consegue funcionar de
modo plenamente democrático”.
Katchi apontou o exemplo europeu,
salientando o facto de que os “países membros da União Europeia”, de regimes formalmente
democráticos, “como estão sujeitos a uma superestrutura antidemocrática, também
têm visto diminuir e até ser posta em causa a própria democracia no seu
funcionamento. São formalmente democráticos, mas funcionam de modo cada vez
mais antidemocrático, com a promoção de governos de tecnocratas, muitos deles
independentes.
Aquele jurista observou que, “apesar
de formalmente não ter poder legislativo, [o líder do Governo de Macau]
concentra grande parte do poder de iniciativa legislativa”, estando os
deputados em posição subalterna, em que “basicamente votam a favor ou contra as
propostas de lei do Governo”, realçando que nunca uma proposta foi chumbada no
hemiciclo de Macau.
O sistema político-administrativo
de Macau não é típico nem do sistema presidencialista nem do semipresidencialista
ou parlamentarista; “é uma estrutura política que, de certo modo, lembra os
regimes fascistas ou o soviético, em que o Chefe domina o sistema político”.
Contra os que alegam a falta de
preparação da população para legitimar a ausência de sufrágio direto e universal,
Katchi assegura que é melhor ser a população, cuja maioria vive honestamente do
trabalho, a escolher os governantes do que uns poucos, que são parasitas,
especuladores, exploradores – que só escolhem para o poder as pessoas que
defendem os seus negócios. E aduz o argumento de que “há muitas sociedades em
que são menores do que em Macau o acesso à informação, o nível de
alfabetização, escolaridade e em que os órgãos de soberania são eleitos pelo
povo”. Assim, conclui que, em Macau, “os órgãos do poder político autonómico
também deviam ser eleitos democraticamente pela população e, havendo
democracia, a própria formação política das pessoas poderia também
desenvolver-se”.
É assim que manda a lucidez e a
solidariedade. Mas talvez seja melhor começar por lembrar à APN da RPC e
sequazes os seus compromissos internacionais e a Declaração Universal dos
Direitos do Homem; e a todos, que os negócios não são tudo: “valores mais altos
se alevantam”!
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