terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sobre o estatuto político-administrativo de Macau (Lei Básica)

A Comunicação Social referia ontem que as autoridades chinesas ainda não decidiram se dois dirigentes de topo e três outros membros da Open Macau Society, agora na cadeia, serão formalmente acusados. Sofre assim mais uma contrariedade a campanha para ser escolhido em eleições o chefe do Governo da cidade.
Segundo o South China Morning Post, diário de Hong Kong, o presidente da predita organização, Jason Chao, um outro dirigente e três ativistas foram detidos por terem ignorado a proibição do Governo local de recolherem dados pessoais de residentes na cidade, em nome do empenho governamental em zelar pela “privacidade” dos cidadãos.
Chao entende as referidas detenções como “uma séria violação de direitos humanos” e considerou que o nervosismo revelado na detenção permite “avaliar como o Governo receia o resultado do referendo” informal, que foi lançado a 25 de agosto, programado para durar uma semana (de 25 a 30).
O procedimento referendário será feito por voto eletrónico (por computador ou telemóvel) e, em dois dos dias da consulta, em cinco locais de voto a instalar na região. A duas questões respeita o referendo: a interrogação aos residentes do território – permanentes e não permanentes – se concordam que o chefe do Executivo da Região de Macau deve ser eleito por sufrágio universal em 2019; e a interrogação sobre o nível de confiança da população no candidato ou eventuais candidatos a chefe do Executivo. Os boletins de voto estão disponíveis em três línguas: português, chinês e inglês.
Os chineses receiam que o processo obtenha junto da população eco tão favorável como o similar, lançado anteriormente em Hong Kong, que lhe serviu de inspiração. O de Hong Kong, apesar de ser apodado de “farsa” pelas autoridades, obteve a adesão de 800.000 pessoas.
Em Macau, a insatisfação com o presente quadro social tem vindo a agravar-se. O antigo território sob administração portuguesa passara para a tutela chinesa e pleno exercício da soberania chinesa com a herança original de ser o único território chinês em que os casinos têm existência legal. Mas tal existência, que atrai à cidade todos os jogadores do país, tem feito disparar os preços do aluguer e tem agravado as desigualdades sociais, criando o caldo de cultivo para uma ampla aceitação da campanha pela democracia.
Já em dezembro de 2013, por iniciativa do Movimento Novo Macau Democrático (NMD), cerca de mil pessoas se manifestaram nas ruas para exigir mais democracia e menos corrupção.
Na marcha, sem incidentes, sob o lema Lutar contra a corrupção, combater pela democracia e manter o nível de vida dos residentes, os manifestantes entoaram diversos slogans alusivos à situação de Macau que designam de “brilho para o exterior, podridão para o interior”. Também alguns cartazes exibiam a célebre frase sentenciosa, o poder absoluto corrompe absolutamente, acompanhada de caricatura com os membros do governo usando um passa-montanhas.
No final, junto ao Palácio da Praia Grande, os manifestantes entregaram quatro petições com a exigência de maior democratização, eficaz combate à corrupção e manutenção dos empregos pelos trabalhadores de Macau, outra das grandes bandeiras do NMD, que quer estimular a denúncia recompensada dos imigrantes ilegais. “Macau teve muito sucesso nos últimos anos, mas há muitos problemas de falta de transparência, de corrupção e injustiças”, denunciou o deputado Ng Kuok Cheong, que insistiu na informação de que o anterior chefe do Executivo de Macau, Edmund Ho, quebrou a promessa de acelerar o processo de democratização em Macau.
Dos 29 deputados à Assembleia Legislativa somente 12 provêm do sufrágio direto e universal, sendo 10 eleitos indiretamente por associações “representativas” e 7 nomeados pelo chefe do Executivo que, por sua vez, é escolhido por um colégio eleitoral de 300 pessoas.
O presidente da China, Hu Jintao, garante que o governo central “vai dar todos os apoios ao desenvolvimento económico, à melhoria da vida popular, ao avanço democrático e à promoção da harmonia social de Macau”.
Entretanto, o referendo segue a sua marcha dentro da normalidade.
***
Ora, a razão de ser de toda esta movimentação reside na redação, na interpretação que a respetiva comissão dá ao artigo 23.º da lei básica (LB) e na sua posterior regulamentação. É que, a 22 de outubro de 2008, o Chefe do Executivo publicou a proposta de regulamentação das matérias referidas no artigo 23.º da LB: crimes de traição à pátria, secessão, subversão, sedição, desvio de segredos de Estado e proibição de contactos internacionais de associações políticas. Mais tarde, discutida a proposta, foi o predito artigo regulamentado por lei, logo originando inquietação e preocupação entre os democratas, que receiam que a lei possa limitar a liberdade de expressão e protesto dos cidadãos. Não pode deixar de se ter em conta que Macau é Região Administrativa Especial que mantém o gozo de direitos, liberdades e garantias, como a liberdade de expressão e religiosa, herdados da administração portuguesa e consagrados na LB.
***
Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) da República Popular da China (RPC) é um normativo com força constitucional na ordem jurídica da RAEM. Define os princípios fundamentais que a RAEM deve seguir e respeitar, bem como o seu estatuto e o seu relacionamento com as Autoridades Centrais da RPC. Todas as políticas e sistemas aplicados na RAEM – incluindo o social e económico, o de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos residentes, o executivo, o legislativo e o judicial, bem como as políticas a eles atinentes – se baseiam nas disposições da LB. Ademais, as leis, decretos-lei, regulamentos administrativos ou atos normativos da RAEM não podem contrariar a LB.
A LB, que entrou em vigor a 20 de dezembro d 1999, quando a RPC assumiu o exercício da soberania sobre Macau, foi elaborada conforme a política chinesa de “um país, dois sistemas” (em que todos parecem tere acreditado), apresentada e definida por Deng Xiaoping – vindo substituir o Estatuto Orgânico de Macau, em vigor desde 1976.
No quadro das garantias, a LB, além de garantir aos residentes da RAEM os direitos, garantias e liberdades, estabelece que Macau possuirá um elevado grau de autonomia em todos os aspetos e assuntos a ela associados, à exceção dos assuntos de defesa e negócios estrangeiros (política externa) sendo que, nesta última esfera, Macau goza ainda de alguma autonomia. Determina também que todos os oficiais e administradores de Macau são habitantes de Macau, e não pessoas e oficiais da RPC. Especifica outrossim que o sistema social e económico-financeiro da RAEM, bem como os direitos, deveres e liberdades dos seus cidadãos se manterão inalteráveis durante, pelo menos, 50 anos, ou seja, até ao ano 2049. Por isso, a cidade mantém a moeda própria (a pataca) e sistema fiscal e económico-financeiro próprio (de caráter capitalista, diferente do sistema socialista da RPC), o seu próprio sistema de controlo de imigração e de fronteiras e a sua própria polícia.
Por outro lado, a LB estabelece a tripartição dos poderes, tal como na maioria dos sistemas políticos: executivo (Chefe do executivo de Macau e seu Governo), legislativo (Assembleia Legislativa de Macau) e judicial (Tribunais).
A sua génese revela-se um tanto complexa, embora escrupulosamente cuidada.
Um ano após a assinatura da Declaração Conjunta  Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau (em Pequim, a 13 de abril de 1987) pelos Chefes do Governo da RPC e do Governo da República Portuguesa, foi deliberada em 13 de abril de 1988, pela I Sessão da VII Legislatura da Assembleia Popular Nacional (APN) da RPC, a criação da Comissão de Redação da Lei Básica da RAEM da República Popular da China.
Em setembro de 1988, a lista dos membros desta comissão, destinada a redigir e elaborar o documento constitucional da RAEM, foi aprovada pela Comissão Permanente da APN da RPC. Esta lista era constituída por 48 personalidades, sendo 19 delas de Macau e 29 provindas da China Continental, incluindo Ji Pengfei, que era diretor do Gabinete para os Assuntos de Hong Kong e Macau junto do Conselho de Estado e que se tornou presidente desta Comissão.
A LB da RAEM foi aprovada e promulgada no dia 31 de março de 1993 pela I Sessão da VIII Legislatura da APN.
A interpretação da LB da RAEM cabe à APN, através do seu Comité Permanente, que autoriza os tribunais da RAEM a interpretar, casuisticamente, as disposições que estejam dentro dos limites da autonomia. No entanto, se os tribunais da RAEM, no julgamento de casos, precisarem da interpretação de disposições da LB respeitantes a matérias que sejam da responsabilidade do Governo Popular Central da RPC ou do relacionamento entre as Autoridades Centrais e a Região e, se tal interpretação puder afetar o julgamento dos casos, antes de proferir sentença final, os tribunais da Região devem obter, através do Tribunal de Última Instância da Região, a interpretação das disposições por parte do Comité Permanente da APN.
Em matéria de revisão, ficou estabelecido que, dado que, em conformidade com a Constituição da RPC, a LB da RAEM é decretada pela APN, o poder de revisão pertence exclusivamente à APN, cabendo o poder de apresentar propostas de revisão ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, ao Conselho de Estado e à RAEM, parecendo excessivo o poder de iniciativa confiado a dois órgãos do poder central chinês.
***
Já na década de 80, estranhei que a entrega de Macau à China fosse negociada sem qualquer contestação, quando a descolonização dos demais territórios sob administração portuguesa foi tão contestada, em 1975, como venda do país ou entrega de mão beijada à tutela soviética (comunista) e sem quaisquer contrapartidas para os portugueses e para os autóctones. Agora, não se reparava que a China estava sob regime comunista, não abria mão para cedência democrática, não ofereceu quaisquer contrapartidas, a não ser a da imensidão. Pelo contrário, Portugal fez avultados investimentos em Macau antes de 1999, ano agendado para a transição.
Quem esteve atento à composição da comissão de redação da LB (maioritariamente chinesa e presidida por um alto dignitário chinês), à cláusula de revisão ou à disposição que estabelece um prazo para a vigência da democracia (ou seja, enquanto der jeito à RPC), como é que poderia acreditar que situações reivindicativas como a atual havia de passar impune? Não se crê que a LB, promulgada antes do ano da transferência, não fosse conhecida pelo nosso Governo.
Há que refletir na posição de António Katchi, jurista português radicado no território, que entende que Macau, como Hong Kong, dificilmente terá um sistema político comparável ao dos países considerados democráticos por estar sujeito a um “regime totalitário” centralizador.
O jurista explicitou à agência Lusa a sua posição ao sublinhar que um Estado ou uma região que tem um regime formalmente democrático, mas que está subordinado(a) a uma superestrutura antidemocrática, não consegue funcionar de modo plenamente democrático”.
Katchi apontou o exemplo europeu, salientando o facto de que os “países membros da União Europeia”, de regimes formalmente democráticos, “como estão sujeitos a uma superestrutura antidemocrática, também têm visto diminuir e até ser posta em causa a própria democracia no seu funcionamento. São formalmente democráticos, mas funcionam de modo cada vez mais antidemocrático, com a promoção de governos de tecnocratas, muitos deles independentes.
Aquele jurista observou que, “apesar de formalmente não ter poder legislativo, [o líder do Governo de Macau] concentra grande parte do poder de iniciativa legislativa”, estando os deputados em posição subalterna, em que “basicamente votam a favor ou contra as propostas de lei do Governo”, realçando que nunca uma proposta foi chumbada no hemiciclo de Macau.
O sistema político-administrativo de Macau não é típico nem do sistema presidencialista nem do semipresidencialista ou parlamentarista; “é uma estrutura política que, de certo modo, lembra os regimes fascistas ou o soviético, em que o Chefe domina o sistema político”.
Contra os que alegam a falta de preparação da população para legitimar a ausência de sufrágio direto e universal, Katchi assegura que é melhor ser a população, cuja maioria vive honestamente do trabalho, a escolher os governantes do que uns poucos, que são parasitas, especuladores, exploradores – que só escolhem para o poder as pessoas que defendem os seus negócios. E aduz o argumento de que “há muitas sociedades em que são menores do que em Macau o acesso à informação, o nível de alfabetização, escolaridade e em que os órgãos de soberania são eleitos pelo povo”. Assim, conclui que, em Macau, “os órgãos do poder político autonómico também deviam ser eleitos democraticamente pela população e, havendo democracia, a própria formação política das pessoas poderia também desenvolver-se”.

É assim que manda a lucidez e a solidariedade. Mas talvez seja melhor começar por lembrar à APN da RPC e sequazes os seus compromissos internacionais e a Declaração Universal dos Direitos do Homem; e a todos, que os negócios não são tudo: “valores mais altos se alevantam”!

Sem comentários:

Enviar um comentário