– O livro que o beirão não pode
ignorar –
Sobre o romance histórico
O ultrarromântico Pinheiro Chagas
revolta-se, na introdução à sua A joia do Vice-Rei (1888), contra a associação entre romance
histórico e romance de aventuras à Dumas ou à Verne: “Mas quem os manda estudar ciência nos romances de Júlio Verne e quem os
manda estudar história nos romances de Alexandre Dumas?” Ao fazer eco das
preocupações literárias, cultoras do rigor positivista e cientista, defende que
“a ideia de tomar a história como fundo de uma narrativa e de entregar, depois,
à imaginação o cuidado de desenhar as cenas tinha inconvenientes tão graves,
enlaçava de tal forma a mentira com a verdade que a nossa época ansiosa de exatidão
começou a censurar esse adultério [...]”. Embora rendesse tributo ao génio do
encantador Dumas, logo, advertia que a sua obra,
romantizada e não dramatizada, não se coadunava com a genuinidade das fontes. Essa
tensão epidérmica contrasta tanto com o momento literário romântico do Portugal
das lutas liberais (culto do amor em tempo de guerra) como com o do Portugal finissecular,
não preparado para o simbolismo, antipositivista e antinaturalista, mas que vai
aplaudindo esses afrescos de história narrativa, dramática e de expressão artística
com que Oliveira Martins vergasta o Portugal Contemporâneo (1881). Algo de contraditório perpassa na
advertência de Chagas. O labor historiográfico, como o entendera o austero Alexandre
Herculano, não transigia com as concessões à efabulação, mas a história, espelho
da vida, permitira-lhe recriar, nas páginas de O Panorama,
novelas históricas que viriam a marcar o imaginário coletivo sobre o Portugal do
pretérito e a dar à estampa narrativas históricas ou crónicas-poema: Eurico, o Presbítero; O Monge de Cister; O Bobo; e Lendas e Narrativas…
O filão, recebido de Walter Scott,
leva a que, nas décadas seguintes, uma série de historiadores de género domine a cena editorial portuguesa. De
Rebelo da Silva, com Ódio velho não
cansa (1848), a Andrade Corvo, com Um ano na corte (1850-51) – romance de intriga no ano da
deposição de D. Afonso VI e do afastamento do valido Castelo Melhor –, do aclamadíssimo e sempre reeditado Mário (1868), de Silva Gaio – novela que pretende
debuxar os ódios insanáveis que dilaceraram Portugal durante a guerra civil –, Teixeira de
Vasconcelos, com O Conde de
Castelo Melhor (1878)
e O Prato de Arroz Doce (1862) – o quotidiano de uma
família portuense durante a Patuleia – e com Arnaldo Gama, o próprio Pinheiro
Chagas, Alberto Pimentel, Bernardino Pinheiro, António Francisco Barata,
Alberto de Castro... um infindável rol de textos plenos de curiosidade pelo
passado domina o gosto do vasto público.
O interesse pelo “tempo morto” –
traço definidor caraterizado por Unamuno, ao definir o país como “hermosamente triste y tristemente hermoso”
– será justificado pela conturbada vida coletiva da nação hesitante ante a
soleira da contemporaneidade. O passado ausente-presente – evocado nas contendas
políticas, literárias, religiosas, tão patente aos olhos desencantados da nossa
intelligentsia, a memória efémera e fugaz que povoava os devaneios de uma
epopeia frustracionalmente acabada, de um império residual e testemunhal, de
desastres e tragédias marítimas e de uma regeneração inconclusa e infrutífera –
emprestou ao nacionalismo lusitano um travo agridoce que nem as propaladas façanhas
de Mouzinho, de Alves Roçadas e da prometida República conseguiriam mascarar.
É do conhecimento geral que o romantismo – literatura nova de caráter
nacional e popular – vem associado às lutas civis entre miguelistas e liberais.
Até 1837, da nova corrente, inspirada em Scoth e Byron, quase só se
manifestaram tentativas isoladas, tendo aumentado o número dos adeptos somente
no período mais agudo das lutas liberais. Entre as revistas e jornais que todos
liam com entusiasmo, figura, embora tardiamente, o Comércio de Coimbra, fundado por Silva Gaio. Entre os anos de 1865 e
1879, o romantismo de Garrett, Herculano e Castilho mudou as caraterísticas
preambulares e iniciáticas. A Questão Coimbrã e as Conferências do Casino
puseram términus ao primeiro momento romântico com a introdução da estética
realista.
Acerca do Mário – episódios das lutas civis portuguesas de 1820 a
1834: o contexto
Informa Silva Gaio: “De feito, o Reino jazia sob o arbítrio de um governo
intolerante, que tinha achado um chefe ostensivo no infante D. Miguel e um,
real, na coorte que cercava a Senhora D. Carlota Joaquina” (cap. III). A rainha
representava o cinzentismo conservador que há muito havia sido democratizado nas
monarquias do Norte da Europa, onde fome, desemprego, trabalho infantil,
subordinação das mulheres e iliteracia se haviam esfumado para dar lugar a sociedades
assentes em pilares humanizados, em que os reis tinham pouco mais que o papel
de representação do Estado: o rei, a bandeira e o hino. Ao povo, entretanto,
era dada a palavra.
Por cá, teimosamente de costas voltadas para o futuro, “mantinham-se as
vexações antigas e mandavam-se para a forca, para o exílio ou para a cadeia
todos os que acatavam o juramento à Carta Constitucional, que o infante também
jurara. Reinavam os capitães-mores, os dízimos e toda a espécie de alcavalas,
os frades tribunos, o populacho com a sua espantosa ignorância, os fidalgos com
a sua bazófia, o conde de Basto com a sua crueza, a corte com as touradas, os
delatores com a sua infâmia e as milícias com a sua memoranda oficialidade”.
É este o contexto do livro em dois volumes com extensão de romance, mas com
o intrincado de novela romântica,
que pretende debuxar os ódios insanáveis que dilaceraram Portugal durante a
guerra civil que contrapôs liberais e absolutistas. Advém ela na sequência do Romantismo,
inaugurado com Garrett e Herculano, elegendo o seu autor, como seus exemplos
máximos na escrita histórica e no romance, Herculano, o historiador e romancista,
e Camilo, romancista passional e de costumes , os quais, na soma das suas
vidas, assistiram àquele ambiente de ebulição revolucionária (1810-1890).
Acerca do Mário – episódios das lutas civis
portuguesas de 1820 a 1834: as personagens
Em Mário – Episódios das Lutas Civis
Portuguesas (1868), o novelista apresenta-nos bem definidas as personagens que
importa do miguelismo: Jorge Pinto,
freire da Ordem de Malta, de 45 anos – estatura alta e vigorosa, rosto severo e
frio, fronte inteligente e arrogante – é figura asquerosa e sem consciência,
embora esperta e ladina – o que nos remete para o lado crítico-satírico. Rumo
aos mais torpes objetivos, deita mão a tudo o que pode: roubo, incêndio,
calúnia e chantagem. Seus métodos tirânicos são comparáveis aos de personagens
de Máximo Gorki [1868-1936] ou de polícias nazis de Virghil Gheorghiu [1916-1992]. Encarna o poder absoluto e discricionário, o arbítrio despótico e sem
razão, típico dos miguelistas, para quem o povo era “uma classe de servos”.
Assim, o “gentil cavaleiro de Malta”, de alma “fria e desdenhosa, quase
indiferente ao perigo, a crueza implacável, que nem dobram lágrimas, nem receios”,
apaixona-se pela sobrinha do vigário de S. Romão. Surgem também ministros e políticos sem caráter, como:
o 1.º Conde de Basto, José António de Oliveira Leite de Barros [1749-1833], de 68 anos de idade, “um velho decrépito, ignorante e cruel”, com o cargo
de ministro da Marinha, outorgado, por D. Miguel a 12-01-1829; e o brigadeiro
Joaquim Teles Jordão [Guarda, 1777 – Cacilhas, 1833], precocemente velho e encolhido, que,
tendo sido um dos militares responsáveis pelo movimento liberal de 24 de agosto
de 1829, se revela partidário do miguelismo exacerbado e notável pela crueza
com que exerce o cargo de governador do Forte de S. Julião da Barra, onde foram
encarcerados muitos liberais.
Do lado liberal, temos logo o capitão mor João de Melo, parente de Jorge
Pinto, mas seu rival e familiar de Mário que vem de Espanha, com o pai, Fernão
Guedes – e primo do primeiro –, visitá-lo à socapa. Fernão, pai de Mário, é jogador
compulsivo arruinado. Mário, bom
rapaz, valente, brioso, cheio de orgulho e vaidade, cai como morto na perseguição
por Jorge Pinto e, transportado pelo pai, é socorrido pelo padre e por Teresa.
Jovem alto, de 23 anos, barba inteira castanho-escura, tez pálida, rosto
expressivo, alumiado de brilhantes olhos, fronte larga e alta, feições bem caraterizadas
e vivas, trocara cedo a ‘perfumada atmosfera da riqueza’ pela carreira militar,
levada a sério por quem quer cumprir todos os deveres, como tenente da arma da
cavalaria, cedo tendo-se indignado com o absolutismo da rainha-mãe e do filho
D. Miguel. Teresa e Mário apaixonaram-se e no enlevo de ambos, Silva Gaio
questiona-se: ‘que pena poderia descrevê-los’? A alma de Mário virá, enérgica e
forte, a ergueu-se, resistente e tenaz, contra o peso que queria esmagá-la –
qual liberal com um labarum de
esperança contra absolutistas, quanto mais poderosos mais caducos.
Depois, vêm ainda outras personagens liberais. O padre Maurício (que fora deputado na Constituinte pela prática de
uma Igreja mais apostólica e solidária), reitor de S. Romão, homem de excelente
simpatia, um velho alto de sessenta e quatro anos, de “rosto magro, e pálido,
faria lembrar as figuras ascéticas dos painéis religiosos”. Parece irmão gémeo
de tantos outros sacerdotes que nos surgem de bom caráter e excelente
integridade que os romancistas do século XIX descobriram, como o Pároco da
Aldeia (em Herculano), o Senhor Reitor (de Júlio Dinis), o Padre João (de
Camilo) e o Padre Vigário (de Rebelo da Silva). Maurício encarnava a caridade
evangélica, a religião e todos os atos de compaixão pregados por Jesus Cristo. Leonor, irmã do padre e dois anos mais
velha, queria ver nos homens o seu irmão, com todas as suas qualidades piedosas
e de boa vontade – os homens e os padres, pois distinguia sempre uns dos
outros. Paulo – médico, pai de Teresa
–, sobrinho do vigário, alto, com aspeto militar, bigode farto, feições magras
e pálidas, olhos grandes e negros e de uma vivacidade desmentida “pelo andar
tardo e mal seguro”. E Teresa – filha
de Paulo, sobrinha-neta do padre Maurício e sobrinha do abade Fernando Garcia,
um dos assassinos dos lentes em Condeixa, com Mário, perseguido, caluniado,
condenado ao exílio em África e combatente no cerco do Porto… – areja o texto
romântico com a sua mocidade, amor e heroísmo, rapariga de quinze anos, de
graciosa figura, alta e elegante – uma verdadeira figura ticiana. Será o
símbolo da abnegação e da grandeza, na humildade. Ama incondicionalmente Mário
e repele em absoluto Jorge Pinto.
Fernando Garcia, bom e mau consoante as circunstâncias, considera-se o
enjeitado a quem deixaram alguma riqueza, para poder perdoar a tristeza a que o
votaram. Vivera com o padrinho, “cujos folares eram só puxões de orelhas
quotidianos”. Recolhera-se num moinho, em convivência com o moleiro, pois era um
dos estudantes que foram a Condeixa esperar os lentes, condenado à forca, pois,
ao voltar do estrangeiro, para onde havia ido como prófugo, integrava a
expedição liberal desembarcada no Mindelo, chegando a ser condecorado por
comportamento em combate. Nesta figura reportada a Francisco Sedano,
inspirou-se Silva Gaio na construção desta personagem, responsável pelas cenas
mais cómicas do livro.
Finalmente, temos a figura de Tadeu, “o símbolo do povo embrutecido pela
escravidão e pela ignorância” – retrato recorrente na época – mas que pode ser
grande, “se o alumiam a instrução e a moralidade, a crença e a caridade”.
Grato, fica sempre ao lado de Mário, lá para as margens do Cuanza, em Angola,
admirado com a invulgar bondade de um branco para com um negro, como ele, para
mais vendido a negros como um escravo, como lhe havia sucedido, longe de casa.
É Tadeu quem prepara a fuga de Mário daquela prisão desumana.
A estética romântica
À boa maneira romântica, frente à problemática social, militar e política,
sobressai o culto do “ego”, que decorre da oposição óbvia ao objetivismo
absorvente e da sujeição às regras escravizantes dos neoclássicos: o espírito
individualista e a acérrima exaltação da própria personalidade. Ante as lutas político
militares e as tremendas e demoradas consequências, de quanto já advinha das Invasões
Francesas e da partida da Família Real para o Brasil, da Independências daquela
colónia e do regresso ao Reino de D. João VI e de Carlota Joaquina, do
confronto entre partidários de D. Pedro e os de D. Miguel e da Ditadura que se
lhe seguiu – o “eu” torna-se o grande, o máximo ente a ter em conta. O exterior
terá a existência de contexto, ou seja, a realidade que nele projetar a
inteligência e a imaginação da pessoa que o analisa, lê e vê. A ânsia de
liberdade, almejada já pelos pré-românticos, constitui o brado consistente contra
as políticas despóticas e a insuficiência de forças do braço popular. Do nítido
individualismo do romântico brota o desejo desmedido de quebrar os elos que
acorrentavam à coletividade Silva Gaio e tantos outros letrados. Daí, a
liberdade de manifestação dos sentimentos e instintos: a liberdade política,
moral e de sentimentos. A juntar a tudo isto, o espírito idealista, na crença
de um palco de vida superior que a razão não consegue definir e que o deixa no
mundo do sonho. E ainda o choque com a realidade: os castelos que os românticos
levantam são de areia, e quando baixam à terra, não veem mais esse mundo
acastelado.
Enfim, todos se “evadem no tempo e no espaço, refugiam-se no sonho e no
fantástico, na orgia e na dissipação”. Veja-se o caso da luta interior que se
coloca em Fernão Guedes, – quando, prestes a partir para Viseu e fugir para a
fronteira, já sem o filho –, se há ou não de furtar o cordão e o retrato
emoldurado de diamantes, da casa do Padre Maurício, para jogar as valiosas
pedras na Alemanha, onde julga poder ganhar e devolver tudo, a todos e ao filho
que antes já espoliara de bens. O triste do padre haveria de pensar: “Por bem
fazer, mal haver” – o que reflete a lógica emergente da situação política que
se gerava no País.
Tinha, pois, o partido miguelista, por agentes, no encalço dos liberais,
muitas das suas sombrias autoridades; por comparsa desta política amarga e
extemporânea, desadequada dos tempos que na Europa se iam apagando de cena…
deste drama… a plebe por elas sublevada; por demagogos mentirosos e empalados,
muitos padres que do púlpito repisavam os desaforos; por argumento as prisões e
o exílio; e, por vezes e em conclusão, a forca.
O Partido Liberal fazia representar-se por mulheres de luto, com filhos
órfãos ou separados dos seus pais e casas completamente arruinadas e
empobrecidas. O que nele havia de válido “jazia entre ferros, estava exilado ou
escondido”.
Em Mário, Silva Gaio apresenta o
texto, com um pano de fundo interessante e agitado: 1820-1834. Mas os recuos
que são ainda numerosos e representativos de movimentos-chave são feitos, de
forma exaltada, com recurso a alusões aos factos históricos já enunciados e preocupação
com a sua verosimilhança.
O apego telúrico e a mudança
À margem das perturbações políticas, o narrador prossegue na
descrição paradisíaca dos lugares da Beira e do aproveitamento da força da
natureza para movimentar a economia da região. É assim que abre a seu livro em
ambos os volumes:
Conheceis a Beira Alta?
É uma fértil província, portuguesa de lei, que vê, a
leste, a serra da Estrela com as suas neves; a oeste, o Caramulo com a sua
tristeza; ao sul, o Buçaco de gloriosa memória e de mística tradição.
É acidentado o solo, sucedendo-se às pequenas ondulações do terreno as colinas, os cerros e os montes, separados uns dos outros por quebradas e valeiros, onde sussurram as águas, caídas das alturas. As cumeadas ou são vestidas de urzes e de ásperos tojos, ou são toucadas com a rama verde-negra dos pinheiros. Mas tão rica de seiva é toda a terra que, nos lugares em que o machado desbastou o pinhal, vedes logo aparecer a leira verdejante, que irá escorregando pela encosta, até se casar com a farta cultura dos vales.
É acidentado o solo, sucedendo-se às pequenas ondulações do terreno as colinas, os cerros e os montes, separados uns dos outros por quebradas e valeiros, onde sussurram as águas, caídas das alturas. As cumeadas ou são vestidas de urzes e de ásperos tojos, ou são toucadas com a rama verde-negra dos pinheiros. Mas tão rica de seiva é toda a terra que, nos lugares em que o machado desbastou o pinhal, vedes logo aparecer a leira verdejante, que irá escorregando pela encosta, até se casar com a farta cultura dos vales.
Aos soutos de castanheiros de carcomido tronco, e aos
pinhais e carvalhedos, segue-se, aqui, o rico plaino animado pelo ribeiro e
pelo moinho ruidoso; ali, a vinha a espreguiçar-se na encosta; mais acima, e
longe e perto, a oliveira.
São tristes as aldeias, porque o granito beirão, mal
desbastando e enegrecido, lhes dá a cor do luto; e como elas, e como a
oliveira, é triste o aspecto do país. Não há as amplas planuras, em que a vista
se deleita e se namora; nem os meandros da lisa corrente a luzir, em longa
fita, por entre as folhas dos salgueirais; nem o alvejar de muita casa branca,
no pendor das colinas; nem a laranjeira odorosa, enfileirada em pomares
extensos, que, fora do Vale de Besteiros, somente a encontrareis como benéfico
atavio da casa do lavrador!
Mas na altura, no lugar vistoso, aparecer-vos-á bem
caiada a capela ou a igreja, meia escondida detrás das folhas de castanheiros,
de carvalhos e de oliveiras. São a devota alegria das povoações vizinhas; são a
respeitada causa de festas e romagens, onde o povo troca por sincera alegria o
ar sério e grave, que lhe é habitual.
Na Beira vereis a infância dos processos agrícolas; o
homem a suar trabalhos, a mulher a lidar no campo, e até as crianças empregadas
no duro serviço, que só é devido aos braços. Mas ao cair do dia, vê-los-eis
alegres e cantantes, apesar da fadiga de tantas horas. Descobrir-se-ão diante
de vós, e ouvi-los-eis a dizerem «guarde-o Deus» ou «Deus o salve»!
Da torre da próxima igreja descerá o toque da
ave-maria, como bênção da tarde, que vem de cima; e enquanto vão caminhando,
silenciosos e recolhidos na breve oração, só ouvireis as campainhas dos gados,
que se recolhem ao redil.
E em tudo vereis a crença e a força; o trabalho e a
paz, e esta sã virilidade dos povos lavradores, que é o eterno louvor da
natureza!
Caminhai para leste, vinde comigo. Na falda dessa
Estrela, desse velho Hermínio, vereis unidas a agricultura e a indústria: que
dos alcantis da montanha lhes corre a água em torrentes, para em baixo ser
transformada em motor económico.
Dizeis-me que estamos em dezembro de 1828; que tudo
agora ali está velado por farto lençol de neve; que atravessa o corpo o frígido
vento, que de lá sopra; que toda aquela parte da Beira é como um corpo morto e
amortalhado.
Vinde, porém, assim mesmo. A hospitalidade é lá
generosa e franca, e na lareira das asas crepitam os cavacos e ramos secos.
Daquela altura parecer-vos-á planície, este imenso
espaço até ao Caramulo.
Levar-vos-ei ao presbitério de S. Romão: quereis vir?
***
A nova terra, na sua grandeza a perder de vista, mostra-se bela e variada:
“aos plainos arenosos, vivificados em muitas partes por zigofiláceas com
grandes flores cor de ouro, sucediam porções de terreno pantanoso, aqui e além,
para, mais adiante, serem substituídas por longos espaços cobertos de capim ou
de eufórbios arborescentes, em bosques limitados, ou de acácias pouco viçosas.
Como agigantadas sentinelas, num e noutro ponto, adansónias solitárias”.
Mas não podemos esquecer, como nunca o fez Silva Gaio, que Portugal vivia
numa situação de total bloqueio que impunha uma rápida mudança. No Porto, ecoou
o grito de revolta contra o absolutismo. O movimento passou a dispor de apoio
militar, pontificado pelo coronel Bernardo de Sepúlveda, secundado por outros
chefes de guarnição ativos e empenhados.
Se pretendiam, acima de tudo, o regresso do rei, ele aí estava, no Tejo, às
portas da capital, a 3 de julho de 1821, após ter jurado no Brasil a Constituição,
a instâncias de seu filho D. Pedro.
Referências
Barreiros, J. (1982).História da Literatura Portuguesa. Vol.
II. Séc. XIX-XX. Braga: Livraria Editora Pax L.da
Braga, T. (1986). História da Literatura Portuguesa. Vol. V e VI. Mem Martins:
Publicações Europa-América
http://books.google.pt/books?id=aNk-AAAAIAAJ&pg=PA9&hl=pt-PT&source=gbs_toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=false
ac agosto 2014
Lisboa,
E. (coord.) – Instituto Português do Livro e da Leitura (1990). Dicionário Cronológico de Autores
Portugueses. Vol. II. Mem Martins: Publicações Europa-América
Marques,
F. (1990). Introdução a António da Silva
Gaio, Mário, Vol. I, ed. dir. António Reis. Lisboa: Alfa, Testemunhos
Contemporâneos
Pereira, J. (1998). A obra e a ação literária de Manuel da Silva Gaio. Coimbra: Escola
do poeta Manuel da Silva Gaio
Ribeiro,
T. (1917). Esboço Biográfico, in Mário. 4.ª ed.. Porto: Companhia Portuguesa
Editora
Silva
Gaio, A. (1868) Mário – episódios das lutas civis portuguesas de 1820 a 1834. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
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