sábado, 16 de agosto de 2014

Atirou ao tolha ao chão, não?!

A 15 de agosto, à noite na Festa do Pontal, o Primeiro-Ministro, com a cota de malha de Presidente do PSD, fez uma promessa solene do que não iria fazer até às eleições legislativas de 2015. É interessante atentar na promessa de um dirigente político (portanto, um especialista em política – se não em ciência, ao menos na ação, boa ou medíocre) cujo objeto é algo que não vai fazer.
Alguns comentadores apressaram-se a esclarecer que ele falou como dirigente partidário e não como governante. Todos bem sabemos distinguir as funções e as realidades. O preciosismo das distinções das coisas já está a saturar uma considerável franja da população, que se sente ou prejudicada ou perplexa. Não sei se alguém se reconhece mesmo feliz com os últimos três lustros de governança, mesmo os que se aproveitaram ou abusaram da situação ou da oposição.
Quanto a governantes, eles provêm do bloco partidário ganhador de eleições ou de quem aceite alinhar, pelo menos, numa fatia considerável do bolo programático de governação, não sendo raro o independente vir a solicitar a dispensa de funções, obviamente “por motivos pessoais”, familiares ou profissionais. Também todos sabíamos que BES e GES eram coisas diferentes, mas já nos “ensinaram” que a derrocada BES se deveu à exposição que o BES tinha ao GES, o que até já induziu auditorias forenses a outras instituições bancárias em razão da possível exposição ao BES/GES. E é todo um sistema largamente interventor na economia que está a ruir, sob o olhar despiciente de quem nos governa, dizendo ou que o governo não interfere em matérias do âmbito da gestão privada (O Banco de Portugal, que é chamado a intrometer-se, também será do domínio privado?) ou que os gestores pagam pelos seus erros ou que os contribuintes podem estar sossegados. Porém, os resultados em contrário vão surgindo.
Por isso, tanto me dá que Passos Coelho, quando fala, seja governante como seja dirigente partidário. Aliás, quem forneceu magistralmente essa distinção de funções em homens públicos, foi o general Ramalho Eanes mesmo na reta final do seu segundo mandato presidencial, depois de empossar Cavaco Silva como Primeiro-Ministro numa entrevista à RTP: apreciava o senhor Primeiro-Ministro, porque, como ele, Presidente, era um homem de ação e era muito claro. Sabia distinguir claramente, no que dizia, aquilo que era opinião pessoal, aquilo que era matéria partidária e aquilo que era do âmbito da governação.
Recordo-me de que, na década de 80, um governador civil visitou um determinado concelho do interior, ou seja, do país profundo. No fim da visita oficial, houve um beberete com as mesmas pessoas que o acompanharam na jornada. No discurso final, o líder civil do distrito clamou que ia deixar as vestes de governador e assumir as do PSD, porque se não fosse daquele partido não seria governador civil.
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Sendo assim, talvez seja melhor fixarmo-nos nas palavras independentemente da qualidade em que o político as proferiu. O que chocou alguns – e foi o que motivou a conclusão comentarista de que atirara a toalha ao chão – foi ter enunciado expressamente que não faria mais nenhuma proposta de reforma da Segurança Social até às eleições legislativas de 2015, porque os reformados não merecem que andemos sempre a tentar fazer o que os outros impedem que façamos.
Ora bem. Não acredito que Passos Coelho mantenha a imprecação que em tempos fez sobre as eleições nem que tenha a convicção absoluta de que as vai perder (antes pelo contrário, dada a diatribe cada vez mais oca entre os dois galos do PS). Além disso, desafiou o maior partido da oposição ao concerto de um acordo interpartidário para uma reforma sustentável da Segurança Social, o que veio a ser posto de parte por António José Seguro, que afirmou uma verdade tautológica ao afirmar que o partido socialista tem líder. E de António Costa veio uma resposta vaga de intenção: aprofundar a reforma do sistema, nomeadamente pelo lado da convergência entre os setores público e privado.
Por isso, penso que Passos não atirou a toalha nem pintou a manta. Fez, sim e simplesmente, o discurso importuno de artilharia da parte de quem regressa de banhos de água e sol, que para mais nada serviu do que olear a máquina da pré-campanha eleitoral e coriscar os adversários.
Tanto assim que acusou os adversários de prática da escandalosa promiscuidade entre política e negócios (o que Tó Zé Seguro fez sobre os seus atuais adversários de candidatura), como se os membros de outros partidos não se tenham encharcado também nas pantanosas águas da promiscuidade. E porfiou que tal regime tinha acabado. Já se esqueceu dos casos de imprensa dos últimos três anos. Bem clamava Jorge Coelho que em Portugal não há memória!
Em relação à declaração de que os pensionistas não merecem que se esteja a tentar fazer-lhes o que outros não deixam que se lhes faça (justificação tão patusca!), pergunto-me se merecem mesmo os cortes nas pensões depois de uma longa carreira contributiva e de longos anos de idade, só porque agora se morre mais tarde e os governos não governam porque não sabem ou não querem.
Em relação à justificação da sua promessa de não fazer, não sei se quis atacar o Tribunal Constitucional (TC), a oposição (nomeadamente o PS, partido do arco da governação, passe a expressão), ou a própria recém-criada APRE, que bem tem orquestrado a opinião pública nacional e internacional contra a política de pensões do atual governo.
Quanto ao TC, há que dizer que, no atinente a pensões, se revelou mais benigno do que na questão dos cortes salariais dos trabalhadores da administração pública. Mesmo assim, inviabilizou a convergência retroativa entre a CGD e o regime geral, as restrições às pensões de sobrevivência e agora a contribuição de sustentabilidade. Mas deixou seguir o aumento da idade de reforma / aposentação para os 66 anos de idade, a convergência entre a CGD e o regime geral, da Lei n.º 11/2014, de 6 de março, bem como a contribuição extraordinária de solidariedade (CES), dado o seu caráter transitório. E deixou agora passar o aumento da taxa máxima do IVA em 0,25%; e, em 0,2%, a TSU dos trabalhadores. Quanto ao óbice à contribuição de sustentabilidade, o TC, que não a invalidou de todo, rejeitou-a em virtude da sua índole permanente, mas não rejeitou a hipótese de ela figurar numa lei de reforma global e estrutural do regime de segurança social.
Também o Presidente da República, em vez de expor as suas dúvidas sobre o diploma que lhe chegou às mãos, limitou-se em remeter ao TC o teor do pedido que o Governo lhe fizera, embora, numa segunda via, tenha alertado para o facto de Portugal estar vinculado a compromissos internacionais, como se o TC não o soubesse. Pouca gente ficou bem na foto!
Quanto ao maior partido da oposição, é justo reconhecer que o grande prejuízo, para os pensionistas provenientes da administração pública, vem de 2005, de 2007 e de 2010 (Campos Cunha e Teixeira dos Santos), depois de uma pequena machada dada por Ferreira Leite, no consulado de Durão Barroso. E o que aí virá, caso de saia ganhador das eleições, é quase nada.
Porém, o PS viabilizou, embora com a abstenção, o orçamento para 2012; e votou favoravelmente a consignação da obrigação do controlo do défice estrutural em lei de valor reforçado e o tratado de equilíbrio orçamental, como acompanhou o governo nas principais questões europeias.
Quanto à sustentabilidade dos regimes de segurança social, nunca é demais distinguir entre pensões do regime contributivo e pensões sociais. Só estas é que deviam provir do orçamento. Bem sabemos que não é assim. O Estado é refratário no cumprimento dos deveres para a Segurança Social, como empregador; depois, vai à última com valores do orçamento e vem carpir-se de buraco orçamental. Também se esquece do regime da mutualidade das contribuições para a Segurança Social e das vantagens de capitalização. Mas, através do Instituto de Segurança Social e afins, investe em fundos mobiliários e compra dívida pública. Depois, se a banca ou as financeiras entram em derrocada, os contribuintes nunca são prejudicados… Porque é que lançam para o ar atoardas destas?
E, como é que o governo estranha uma eventual deficiência na sustentabilidade de qualquer sistema nacional, quando, ao invés de olhar os problemas de frente, sugere a solução emigratória; em vez do crescimento económico, implementa medidas de austeridade sobre austeridade; em lugar de políticas de emprego, flexibiliza as leis laborais, aumenta horário de trabalho, desmotiva trabalhadores onerando-lhes as condições de desempenho? E porque não põe cobro a desmandos na administração do setor público e das empresas que têm incidência direta ou indireta no erário público (designadamente as financeiras)? Como se justificam os desastres na banca (mesmo na pública CGD, que devia ser exemplar), alguns dos quais constituem verdadeira delapidação? Como se justificam obscenos salários, mordomias, pensões e jobs?
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O certo é que o discurso de Passo Coelho mostrou tender a olear a máquina partidária, embora os aplausos do auditório aparentassem alguma parcimónia.
No entanto, conseguiu mandar umas valentes troadas de canhão para o maior partido da oposição a quem acusou de falta de ética, falta de memória. Mas não apresentou um laivo sequer de autocrítica governativa nem intrapartidária.
Fez questão de verberar o que se passou, no tempo do anterior governo, com o BPN e outros bancos, que não referiu, como se o atual governo pudesse daí lavar as mãos como Pôncio Pilatos. E afirmou a inocuidade do caso BES, sem referir a designação, para os contribuintes, acusando as oposições de quererem baralhar a informação.
Assim, como é que o repto lançado ao PS para qualquer convénio de reforma da Segurança Social ou do Estado em geral, formulado no mesmo discurso, poderá revestir-se de seriedade e credibilidade?

Mas deitar a toalha ao chão Passos não deitou!

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