O sacerdote que hoje presidiu à
celebração da Eucaristia na igreja que habitualmente frequento, na sua homilia
em torno da Assunção de Nossa Senhora, centrou a economia do Cristianismo no
Mistério de Cristo. E fê-lo com mérito, não para secundarizar o papel de Maria
na História da Salvação, mas para ilustrar o lugar e a importância da figura da
Mãe de Deus.
Conforme pregam os apóstolos,
nomeadamente S. Paulo, o único Mediador entre Deus e os homens é Jesus Cristo.
Só Ele veio ao mundo para, através do sacrifício de Paixão e Morte, salvar os
homens – sacrifício esse que vem validado pela Ressurreição de Cristo, penhor
da nossa própria ressurreição no último dia e presentificado diariamente na
celebração eucarística, sacrifício e banquete dos irmãos. E a ascensão de
Cristo aos Céus, com a garantia da sua presença em força junto dos pregoeiros
do Evangelho e com o poder do Espírito Santo, marca a vertente missionária da
Igreja, inerente à sua própria essência de espaço de comunhão dos homens com
Deus, constituídos como seu povo.
Porém, Jesus Cristo, no quadro da
Santíssima Trindade, qual Santo dos
Santos não tolerou que a eleita desde toda a eternidade para Sua e nossa
Mãe fosse em momento algum tocada por qualquer tipo de pecado, original ou
pessoal. Por isso, segundo a fundamentação bíblica repassada para a doutrina
dos Padres e Doutores da Igreja, para os escaninhos da Teologia e para a
vivência do povo cristão, é ela a Imaculada Conceição, a Cheia de Graça (Salve, ó Cheia de Graça
– Lc 1,28). Esta
prerrogativa de Maria é confirmada pela definição dogmática de Pio IX, em 8 de
dezembro de 1854, pela Bula Ineffabilis
Deus.
E, como Cristo não se demorou
mais do que três dias no túmulo, de modo que não passou pela normal corrupção
inerente à morte, também quis preservar Sua Mãe da degradação mortal,
promovendo-lhe a assunção aos Céus, semelhante à sua ascensão. É a definição
dogmática por Pio XII, em 1 de novembro de 1950, pela constituição apostólica Munificentissimus Deus.
Como ensinam os Padres da Igreja
e o Magistério Eclesial reitera assiduamente, a Virgem goza daquelas
prerrogativas, não por si, mas graças aos méritos e poder de Cristo. Assim,
Cristo não tem só o estatuto de isenção de pecado, mas Ele, na sua condição divina,
não pode pecar; Ele ressuscitou-se a si mesmo por seu poder e subiu aos Céus
pelos próprios meios. Já Sua Mãe foi imune de pecado e cheia de graça, mercê da
força e graça de Deus (Achaste graça
diante de Deus – Lc 1,30); não ressuscitou por si, mas foi ressuscitada;
não subiu aos Céus, mas foi assunta aos Céus, poeticamente (à maneira do midrash hebraico) pelos coros dos anjos.
O conteúdo da constituição apostólica
sobre a Assunção de Maria
Depois de falar dos “imperscrutáveis
desígnios” de Deus e do testemunho pontifical sobre os “inúmeros cuidados,
preocupações e angústias”, mercê das “grandes calamidades” e de muitos andarem “afastados
da verdade e da virtude”, sublinha o papel materno de Maria para com “os que
foram remidos pelo sangue de Cristo”, bem como o estímulo à contemplação mais
profunda e diligente de seus privilégios da parte da inteligência e do coração
de seus filhos. Desde toda a eternidade Deus olhou a Virgem Maria com
particular e plena complacência, e, chegada a plenitude dos tempos (cf
Gl 4,4), atuou o
plano da sua providência de forma que refulgissem com perfeita harmonia as prerrogativas
que lhe concedera por sua liberalidade – o que a Igreja sempre reconheceu.
Verifica atualmente que tem
refulgido com luz mais clara o privilégio da assunção corpórea da Mãe de Deus
como relacionado com o da Imaculada conceição.
Depois, o Papa argumenta que, se Cristo
com a própria morte venceu a morte e o pecado, também aquele que é regenerado pelo
batismo vence pela graça o pecado e a morte. Porém, enquanto para os justos
essa vitória se consuma apenas no fim dos tempos, a virgem Maria, que venceu o
pecado com a sua conceção imaculada, por singular privilégio, ficou logo liberta
da corrupção do sepulcro, não tendo assim de esperar a redenção do corpo até ao
fim dos tempos.
Em conformidade com tal doutrina
e após a definição da Imaculada Conceição, começaram a chegar à Santa Sé
inúmeras petições para a definição do dogma da Assunção, cujo número,
diversidade e insistência aumentaram significativamente de dia para dia.
Paralelamente multiplicaram-se: as cruzadas de orações; os estudos teológicos, quer
em privado, quer nas universidades eclesiásticas ou nas outras escolas de
disciplinas sagradas; e os congressos marianos nacionais e internacionais.
Todas estas manifestações mostram, com o maior realce, que no depósito da fé
cristã, confiado à Igreja, se encontra a assunção de Maria ao céu.
Por isso, se determinou o estudo
cuidadoso das petições, solicitações das várias instâncias da comunidade cristã
e conclusões das investigações e discussões, culminando com uma consulta formal
ao episcopado (cujas respostas deveriam traduzir o sentir de clero e fiéis),
através da encíclica “Deiparae Virginis Mariae”, de 1 de maio de 1946.
Da consulta resulta que se trata de doutrina concorde do
Magistério da Igreja em consonância com a assistência dispensada pelo Espírito,
pois, aqueles
que “o Espírito Santo colocou como bispos para reger a Igreja de Deus” (At
20,28) quase
unanimemente deram resposta afirmativa.
Por outro lado, têm-se em conta
os testemunhos históricos da crença na assunção, que revelam a fé comum da Igreja.
É certo que a Virgem, durante a sua peregrinação terrestre, levou vida de cuidados,
angústias e sofrimentos, e que, segundo a profecia do velho Simeão, uma espada
de dor lhe traspassou o coração, junto da cruz do seu divino Filho e nosso Redentor,
e, à semelhança de seu unigénito Filho, sofreu as agruras da morte. Todavia,
esta persuasão não impediu o povo cristão de crer expressa e firmemente que o
seu corpo não sofreu a corrupção do sepulcro, nem aquele tabernáculo do Verbo
divino foi reduzido à podridão e cinzas.
Patenteiam inequivocamente esta
fé os inumeráveis templos consagrados a Deus em honra da Assunção e as imagens
expostas à veneração dos fiéis, bem como as muitas cidades, dioceses, regiões e
institutos religiosos dedicados a seu especial patrocínio e proteção. Também a
liturgia e a oração do rosário e as ladainhas, que manifestam a fé, fornecem
elementos abundantes que testemunham este privilégio singular da Assunção.
Assim, a sua festa litúrgica é celebrada desde tempos antiquíssimos no Oriente
e no Ocidente, ganhando cada vez maior relevo. Nos livros litúrgicos em que
aparece o ordenamento da festa da Dormição ou da Assunção de Santa
Maria, encontram-se expressões que de um modo ou de outro concordam em
referir que, quando a Mãe de Deus passou deste exílio terrestre para o céu, por
especial providência divina, sucedeu ao seu corpo algo de consentâneo com a
dignidade de Mãe do Verbo Incarnado e com os outros privilégios que lhe foram
concedidos.
No âmbito do testemunho dos santos Padres, a
constituição apostólica cita
S. João Damasceno, que entre todos se distingue como pregoeiro dessa doutrina, sobretudo
ao comparar com veemente eloquência a assunção gloriosa da Mãe de Deus com as
suas outras prerrogativas:
“Convinha
que aquela que no parto manteve ilibada virgindade conservasse o corpo
incorrupto mesmo depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no seio o
Criador encarnado habitasse entre os divinos tabernáculos. Convinha que morasse
no tálamo celestial aquela que o Eterno Pai desposara. Convinha que aquela que
viu o seu Filho na cruz, com o coração traspassado por uma espada de dor de que
tinha sido imune no parto, contemplasse sentada à direita do Pai. Convinha que
a Mãe de Deus possuísse o que era do Filho, e que fosse venerada por todas as
criaturas como Mãe e Serva do mesmo Deus”.
Menciona ainda S. Germano de
Constantinopla e S. Modesto de Jerusalém, tal como outros, concordes com o
Damasceno.
Vêm, a seguir, os testemunhos dos teólogos, desde
os da escolástica (vg, Amadeu de Lausanne, António de Pádua ou de Lisboa,
Alberto Magno, Tomás de Aquino, Boaventura, Bernardino de Sena) aos dos tempos
modernos (vg, Francisco de Sales, Roberto Belarmino, Afonso Maria de Ligório e Pedro
Canísio).
Todos eles tentaram o aprofundamento da doutrina com base na Bíblia e no
sentido da fé dos crentes.
Mas Pio XII não deixa de invocar o fundamento
escriturístico, afirmando que todos
os argumentos e razões dos santos Padres e teólogos se apoiam, em última
análise, na Sagrada Escritura (sobretudo no Evangelho de Lucas e,
acomodaticiamente, no protoevangelho, no cantar dos cantares e no Apocalipse),
que nos apresenta a Mãe de Deus intimamente unida ao Filho e sempre participante
da sua sorte. Assim, “parece quase impossível pensar que Aquela que concebeu,
deu à luz, alimentou com o seu leite a Cristo, o teve nos braços e apertou
contra o peito, estivesse agora, após a vida terrestre, separada dele, se não
quanto à alma, ao menos quanto ao corpo”. O filho de Maria, como observador da
lei divina não podia deixar de honrar a Mãe amantíssima logo a seguir ao Eterno
Pai. E, podendo adorná-la com tamanha honra, preservando-a da corrupção do
sepulcro, “deve crer-se que realmente o fez”. Convém, por outro lado, ter em conta
que, já a partir do século II, os santos Padres apresentam a Virgem Maria como
nova Eva, intimamente unida a Cristo, o novo Adão, na luta contra o inimigo. E
essa luta, que já se indica no protoevangelho, acabaria com a vitória completa
sobre o pecado e com a vitória sobre a morte, que sempre se encontram unidas
nos escritos de Paulo (cf. Rm 5; 6; lCor 15,21-26; 54-57). Tal como a ressurreição de
Cristo é parte essencial e último troféu desta vitória, também a vitória de
Maria, comum à do Filho, devia terminar pela glorificação do seu corpo
virginal. Pois, como diz o Apóstolo, “quando... este corpo mortal se revestir
da imortalidade, então se cumprirá o que está escrito: a morte foi absorvida na
vitória” (1Co 15,14).
Oportunidade da definição
dogmática
Considerando que a Igreja –
assistida pelo Espírito de Verdade, que a dirige no conhecimento das verdades
reveladas – manifestou inabalavelmente e de tantas formas a sua fé no decurso
dos séculos; considerando que os bispos de todo o mundo quase unanimemente
pedem seja definida como dogma de fé a verdade da assunção corpórea da Virgem
ao céu; considerando que esta verdade se funda na Escritura, está profundamente
gravada na alma dos fiéis, e é comprovada pelo culto litúrgico desde tempos
antiquíssimos, e concorda, inteiramente, com as outras verdades reveladas, e
tem sido esplendidamente explicada e declarada pelos estudos, sabedoria e prudência
dos teólogos – o Papa julga chegado o momento providencial para a proclamação
solene deste privilégio insigne da virgem Maria.
É o ano santo jubilar da primeira
metade do século XX.
Definição solene do dogma
O essencial da definição é extremamente curto. Não
se intromete em questões em aberto, como se Maria morreu efetivamente ou passou
por uma simples dormição; se se finou em Jerusalém antes da diáspora apostólica
ou se foi com João para Éfeso; se o sepulcro de Josafat é autêntico ou
não.
Tendo em conta tudo o que foi exposto, revelando as
súplicas repetidamente dirigidas a Deus e a invocação da paz do espírito de
verdade, explicitando o objetivo do ato e escudado na autoridade de Jesus dos
apóstolos Pedro e Paulo e a sua, o Papa declara ser dogma divinamente revelado:
“A imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da
vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”.
***
A liturgia da Assunção refere em
especial o Livro do Apocalipse (Ap 12, 1-6):
Apareceu
no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol, com a lua sob os pés e uma
coroa de doze estrelas na cabeça. Estava grávida e gritava de dor, pois estava
para dar à luz. E apareceu no céu outro sinal: um enorme dragão vermelho com
sete cabeças e dez chifres, tendo sobre as cabeças sete diademas. A sua cauda
arrastou consigo um terço das estrelas do céu, lançando-as na terra. O dragão
pôs-se diante da mulher, que estava para dar à luz, para lhe devorar o filho
logo à nascença. A mulher deu efetivamente à luz o seu filho varão, que
governará todas as nações com cetro de ferro.
O texto aplica-se a Maria, a
mulher assim caraterizada e a Cristo, o filho que ela deu à luz, com o demónio
prestes a devorá-lo logo à nascença. Mas o diabo não consegue levar a melhor.
Mas não se pode olvidar que, por um lado, Maria, a mãe deste filho, é, por
vontade dele, mãe dos filhos no Filho, ou seja, da Igreja. Com Ele e como ele,
a Igreja há de levar a melhor sobre todos os espíritos do mal (o dragão com
sete cabeças, a resistência à morte; e sete chifres e diademas, o poder
satânico).
E, Maria é protótipo, modelo e
exemplo da Igreja. Por isso, como a mulher apocalíptica, a Igreja grita as
dores de parto, porque, na sua função maternal, tem de dar Jesus ao mundo,
educando o mundo, sendo sua mãe e mestra, com quem tem de reaprender a ensinar
e a fazer discípulos. E, enquanto o tal filho varão foi arrebatado par o trono
de Deus, a Igreja tem de, como a mulher, ir até ao deserto, onde Deus lhe
preparou um lugar e onde se alimentará (cf Ap 5-6).
O sol mostra o rosto esplendoroso
de Deus e do seu Cristo; a lua sob os pés significa o domínio sobre a
dependência do espírito do mal; a coroa de doze estrelas remete para o paraíso
em que todos os membros no novo Israel têm lugar. Por seu turno, o dragão (com
sete cabeças, a resistência à morte; e com sete chifres e diademas, o poder
satânico) representa todas as forças que se armaram e armarão contra o projeto
de Deus de que a Igreja deve ser portadora e que deve estar pronta para a luta
sem tréguas, mas de que sairá vencedora com o Cristo da Vitória e o arcanjo
Miguel, o chefe da milícia celeste e protetor da Igreja (dos vv seguintes, não
citados).
E, assim como Maria, a Igreja
pode e deve cantar o cântico da misericórdia, sempre original, mas sempre na
linha das promessas messiânicas: Exulta o
meu espírito em Deus meu salvador, porque fez em mim grandes coisas e, conforme
prometeu, tomou o partido dos que são ou se tornam misericordiosos, pobres e
humildes (cf Lc 1,46-56).
E clamar com Cristo a vitória final: eu
venci o mundo (Jo 16,33).
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