sábado, 16 de agosto de 2014

A Assunção de Nossa Senhora

O sacerdote que hoje presidiu à celebração da Eucaristia na igreja que habitualmente frequento, na sua homilia em torno da Assunção de Nossa Senhora, centrou a economia do Cristianismo no Mistério de Cristo. E fê-lo com mérito, não para secundarizar o papel de Maria na História da Salvação, mas para ilustrar o lugar e a importância da figura da Mãe de Deus.
Conforme pregam os apóstolos, nomeadamente S. Paulo, o único Mediador entre Deus e os homens é Jesus Cristo. Só Ele veio ao mundo para, através do sacrifício de Paixão e Morte, salvar os homens – sacrifício esse que vem validado pela Ressurreição de Cristo, penhor da nossa própria ressurreição no último dia e presentificado diariamente na celebração eucarística, sacrifício e banquete dos irmãos. E a ascensão de Cristo aos Céus, com a garantia da sua presença em força junto dos pregoeiros do Evangelho e com o poder do Espírito Santo, marca a vertente missionária da Igreja, inerente à sua própria essência de espaço de comunhão dos homens com Deus, constituídos como seu povo.
Porém, Jesus Cristo, no quadro da Santíssima Trindade, qual Santo dos Santos não tolerou que a eleita desde toda a eternidade para Sua e nossa Mãe fosse em momento algum tocada por qualquer tipo de pecado, original ou pessoal. Por isso, segundo a fundamentação bíblica repassada para a doutrina dos Padres e Doutores da Igreja, para os escaninhos da Teologia e para a vivência do povo cristão, é ela a Imaculada Conceição, a Cheia de Graça (Salve, ó Cheia de Graça – Lc 1,28). Esta prerrogativa de Maria é confirmada pela definição dogmática de Pio IX, em 8 de dezembro de 1854, pela Bula Ineffabilis Deus.
E, como Cristo não se demorou mais do que três dias no túmulo, de modo que não passou pela normal corrupção inerente à morte, também quis preservar Sua Mãe da degradação mortal, promovendo-lhe a assunção aos Céus, semelhante à sua ascensão. É a definição dogmática por Pio XII, em 1 de novembro de 1950, pela constituição apostólica Munificentissimus Deus.
Como ensinam os Padres da Igreja e o Magistério Eclesial reitera assiduamente, a Virgem goza daquelas prerrogativas, não por si, mas graças aos méritos e poder de Cristo. Assim, Cristo não tem só o estatuto de isenção de pecado, mas Ele, na sua condição divina, não pode pecar; Ele ressuscitou-se a si mesmo por seu poder e subiu aos Céus pelos próprios meios. Já Sua Mãe foi imune de pecado e cheia de graça, mercê da força e graça de Deus (Achaste graça diante de Deus – Lc 1,30); não ressuscitou por si, mas foi ressuscitada; não subiu aos Céus, mas foi assunta aos Céus, poeticamente (à maneira do midrash hebraico) pelos coros dos anjos.

O conteúdo da constituição apostólica sobre a Assunção de Maria
Depois de falar dos “imperscrutáveis desígnios” de Deus e do testemunho pontifical sobre os “inúmeros cuidados, preocupações e angústias”, mercê das “grandes calamidades” e de muitos andarem “afastados da verdade e da virtude”, sublinha o papel materno de Maria para com “os que foram remidos pelo sangue de Cristo”, bem como o estímulo à contemplação mais profunda e diligente de seus privilégios da parte da inteligência e do coração de seus filhos. Desde toda a eternidade Deus olhou a Virgem Maria com particular e plena complacência, e, chegada a plenitude dos tempos (cf Gl 4,4), atuou o plano da sua providência de forma que refulgissem com perfeita harmonia as prerrogativas que lhe concedera por sua liberalidade – o que a Igreja sempre reconheceu.
Verifica atualmente que tem refulgido com luz mais clara o privilégio da assunção corpórea da Mãe de Deus como relacionado com o da Imaculada conceição.
Depois, o Papa argumenta que, se Cristo com a própria morte venceu a morte e o pecado, também aquele que é regenerado pelo batismo vence pela graça o pecado e a morte. Porém, enquanto para os justos essa vitória se consuma apenas no fim dos tempos, a virgem Maria, que venceu o pecado com a sua conceção imaculada, por singular privilégio, ficou logo liberta da corrupção do sepulcro, não tendo assim de esperar a redenção do corpo até ao fim dos tempos.
Em conformidade com tal doutrina e após a definição da Imaculada Conceição, começaram a chegar à Santa Sé inúmeras petições para a definição do dogma da Assunção, cujo número, diversidade e insistência aumentaram significativamente de dia para dia. Paralelamente multiplicaram-se: as cruzadas de orações; os estudos teológicos, quer em privado, quer nas universidades eclesiásticas ou nas outras escolas de disciplinas sagradas; e os congressos marianos nacionais e internacionais. Todas estas manifestações mostram, com o maior realce, que no depósito da fé cristã, confiado à Igreja, se encontra a assunção de Maria ao céu.
Por isso, se determinou o estudo cuidadoso das petições, solicitações das várias instâncias da comunidade cristã e conclusões das investigações e discussões, culminando com uma consulta formal ao episcopado (cujas respostas deveriam traduzir o sentir de clero e fiéis), através da encíclica “Deiparae Virginis Mariae”, de 1 de maio de 1946. 
Da consulta resulta que se trata de doutrina concorde do Magistério da Igreja em consonância com a assistência dispensada pelo Espírito, pois, aqueles que “o Espírito Santo colocou como bispos para reger a Igreja de Deus” (At 20,28) quase unanimemente deram resposta afirmativa.
Por outro lado, têm-se em conta os testemunhos históricos da crença na assunção, que revelam a fé comum da Igreja. É certo que a Virgem, durante a sua peregrinação terrestre, levou vida de cuidados, angústias e sofrimentos, e que, segundo a profecia do velho Simeão, uma espada de dor lhe traspassou o coração, junto da cruz do seu divino Filho e nosso Redentor, e, à semelhança de seu unigénito Filho, sofreu as agruras da morte. Todavia, esta persuasão não impediu o povo cristão de crer expressa e firmemente que o seu corpo não sofreu a corrupção do sepulcro, nem aquele tabernáculo do Verbo divino foi reduzido à podridão e cinzas.  
Patenteiam inequivocamente esta fé os inumeráveis templos consagrados a Deus em honra da Assunção e as imagens expostas à veneração dos fiéis, bem como as muitas cidades, dioceses, regiões e institutos religiosos dedicados a seu especial patrocínio e proteção. Também a liturgia e a oração do rosário e as ladainhas, que manifestam a fé, fornecem elementos abundantes que testemunham este privilégio singular da Assunção. Assim, a sua festa litúrgica é celebrada desde tempos antiquíssimos no Oriente e no Ocidente, ganhando cada vez maior relevo. Nos livros litúrgicos em que aparece o ordenamento da festa da Dormição ou da Assunção de Santa Maria, encontram-se expressões que de um modo ou de outro concordam em referir que, quando a Mãe de Deus passou deste exílio terrestre para o céu, por especial providência divina, sucedeu ao seu corpo algo de consentâneo com a dignidade de Mãe do Verbo Incarnado e com os outros privilégios que lhe foram concedidos.
No âmbito do testemunho dos santos Padres, a constituição apostólica cita S. João Damasceno, que entre todos se distingue como pregoeiro dessa doutrina, sobretudo ao comparar com veemente eloquência a assunção gloriosa da Mãe de Deus com as suas outras prerrogativas:
“Convinha que aquela que no parto manteve ilibada virgindade conservasse o corpo incorrupto mesmo depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no seio o Criador encarnado habitasse entre os divinos tabernáculos. Convinha que morasse no tálamo celestial aquela que o Eterno Pai desposara. Convinha que aquela que viu o seu Filho na cruz, com o coração traspassado por uma espada de dor de que tinha sido imune no parto, contemplasse sentada à direita do Pai. Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que era do Filho, e que fosse venerada por todas as criaturas como Mãe e Serva do mesmo Deus”.
Menciona ainda S. Germano de Constantinopla e S. Modesto de Jerusalém, tal como outros, concordes com o Damasceno.
Vêm, a seguir, os testemunhos dos teólogos, desde os da escolástica (vg, Amadeu de Lausanne, António de Pádua ou de Lisboa, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Boaventura, Bernardino de Sena) aos dos tempos modernos (vg, Francisco de Sales, Roberto Belarmino, Afonso Maria de Ligório e Pedro Canísio). Todos eles tentaram o aprofundamento da doutrina com base na Bíblia e no sentido da fé dos crentes.
Mas Pio XII não deixa de invocar o fundamento escriturístico, afirmando que todos os argumentos e razões dos santos Padres e teólogos se apoiam, em última análise, na Sagrada Escritura (sobretudo no Evangelho de Lucas e, acomodaticiamente, no protoevangelho, no cantar dos cantares e no Apocalipse), que nos apresenta a Mãe de Deus intimamente unida ao Filho e sempre participante da sua sorte. Assim, “parece quase impossível pensar que Aquela que concebeu, deu à luz, alimentou com o seu leite a Cristo, o teve nos braços e apertou contra o peito, estivesse agora, após a vida terrestre, separada dele, se não quanto à alma, ao menos quanto ao corpo”. O filho de Maria, como observador da lei divina não podia deixar de honrar a Mãe amantíssima logo a seguir ao Eterno Pai. E, podendo adorná-la com tamanha honra, preservando-a da corrupção do sepulcro, “deve crer-se que realmente o fez”. Convém, por outro lado, ter em conta que, já a partir do século II, os santos Padres apresentam a Virgem Maria como nova Eva, intimamente unida a Cristo, o novo Adão, na luta contra o inimigo. E essa luta, que já se indica no protoevangelho, acabaria com a vitória completa sobre o pecado e com a vitória sobre a morte, que sempre se encontram unidas nos escritos de Paulo (cf. Rm 5; 6; lCor 15,21-26; 54-57). Tal como a ressurreição de Cristo é parte essencial e último troféu desta vitória, também a vitória de Maria, comum à do Filho, devia terminar pela glorificação do seu corpo virginal. Pois, como diz o Apóstolo, “quando... este corpo mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirá o que está escrito: a morte foi absorvida na vitória” (1Co 15,14).

Oportunidade da definição dogmática
Considerando que a Igreja – assistida pelo Espírito de Verdade, que a dirige no conhecimento das verdades reveladas – manifestou inabalavelmente e de tantas formas a sua fé no decurso dos séculos; considerando que os bispos de todo o mundo quase unanimemente pedem seja definida como dogma de fé a verdade da assunção corpórea da Virgem ao céu; considerando que esta verdade se funda na Escritura, está profundamente gravada na alma dos fiéis, e é comprovada pelo culto litúrgico desde tempos antiquíssimos, e concorda, inteiramente, com as outras verdades reveladas, e tem sido esplendidamente explicada e declarada pelos estudos, sabedoria e prudência dos teólogos – o Papa julga chegado o momento providencial para a proclamação solene deste privilégio insigne da virgem Maria.
É o ano santo jubilar da primeira metade do século XX.


Definição solene do dogma
O essencial da definição é extremamente curto. Não se intromete em questões em aberto, como se Maria morreu efetivamente ou passou por uma simples dormição; se se finou em Jerusalém antes da diáspora apostólica ou se foi com João para Éfeso; se o sepulcro de Josafat é autêntico ou não.
Tendo em conta tudo o que foi exposto, revelando as súplicas repetidamente dirigidas a Deus e a invocação da paz do espírito de verdade, explicitando o objetivo do ato e escudado na autoridade de Jesus dos apóstolos Pedro e Paulo e a sua, o Papa declara ser dogma divinamente revelado:
A imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”.
***
A liturgia da Assunção refere em especial o Livro do Apocalipse (Ap 12, 1-6):
Apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol, com a lua sob os pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça. Estava grávida e gritava de dor, pois estava para dar à luz. E apareceu no céu outro sinal: um enorme dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres, tendo sobre as cabeças sete diademas. A sua cauda arrastou consigo um terço das estrelas do céu, lançando-as na terra. O dragão pôs-se diante da mulher, que estava para dar à luz, para lhe devorar o filho logo à nascença. A mulher deu efetivamente à luz o seu filho varão, que governará todas as nações com cetro de ferro.
O texto aplica-se a Maria, a mulher assim caraterizada e a Cristo, o filho que ela deu à luz, com o demónio prestes a devorá-lo logo à nascença. Mas o diabo não consegue levar a melhor. Mas não se pode olvidar que, por um lado, Maria, a mãe deste filho, é, por vontade dele, mãe dos filhos no Filho, ou seja, da Igreja. Com Ele e como ele, a Igreja há de levar a melhor sobre todos os espíritos do mal (o dragão com sete cabeças, a resistência à morte; e sete chifres e diademas, o poder satânico).
E, Maria é protótipo, modelo e exemplo da Igreja. Por isso, como a mulher apocalíptica, a Igreja grita as dores de parto, porque, na sua função maternal, tem de dar Jesus ao mundo, educando o mundo, sendo sua mãe e mestra, com quem tem de reaprender a ensinar e a fazer discípulos. E, enquanto o tal filho varão foi arrebatado par o trono de Deus, a Igreja tem de, como a mulher, ir até ao deserto, onde Deus lhe preparou um lugar e onde se alimentará (cf Ap 5-6).
O sol mostra o rosto esplendoroso de Deus e do seu Cristo; a lua sob os pés significa o domínio sobre a dependência do espírito do mal; a coroa de doze estrelas remete para o paraíso em que todos os membros no novo Israel têm lugar. Por seu turno, o dragão (com sete cabeças, a resistência à morte; e com sete chifres e diademas, o poder satânico) representa todas as forças que se armaram e armarão contra o projeto de Deus de que a Igreja deve ser portadora e que deve estar pronta para a luta sem tréguas, mas de que sairá vencedora com o Cristo da Vitória e o arcanjo Miguel, o chefe da milícia celeste e protetor da Igreja (dos vv seguintes, não citados).

E, assim como Maria, a Igreja pode e deve cantar o cântico da misericórdia, sempre original, mas sempre na linha das promessas messiânicas: Exulta o meu espírito em Deus meu salvador, porque fez em mim grandes coisas e, conforme prometeu, tomou o partido dos que são ou se tornam misericordiosos, pobres e humildes (cf Lc 1,46-56). E clamar com Cristo a vitória final: eu venci o mundo (Jo 16,33).

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