Em
10 de agosto, o site da Associação Rumos
– movimento nacional das famílias dos padres casados, do Brasil, transcreve
do jornal La Repubblica, de 06-08-2014, um artigo do historiador italiano Agostino Giovagnoli, professor da Università
Cattolica del Sacro Cuore, em Milão, e diretor do Departamento
de Ciências Históricas da mesma instituição, sob o título que em
Português se lê Vínculo que liga Bergoglio e Paulo VI, em tradução de Moisés Sbardelotto.
O artigo traz para mim uma novidade, que muito me
apraz conhecer: “Paulo VI –
falecido no dia 6 de agosto de
1978 – é, entre os seus antecessores, aquele ao qual o Papa Francisco se refere com mais
convicção”. Penso que esta afirmação é um dos melhores atos de justiça à
memória de um obreiro do esforço de sintonia da Igreja com os novos tempos e
cujo perfil e ação ficam esbatidos por duas encíclicas por que empenhou o seu
rosto de líder eclesial (sendo fácil hoje, que não antes, ajuizar à luz da
informação disponível): a Sacerdodalis
Caelibatus e a Humanae Vitae –
assim como uma visão dolorosa da situação da Igreja, patente nos últimos anos
do seu pontificado.
É verdade que não era fácil encontrar um sucessor para
João XXIII, o pastor da bonomia sã, do otimismo de Deus, o pontífice que se
dirige a todos os homens de boa vontade, o paladino da paz na Terra com base
nos direitos humanos, o filho e discípulo da Igreja, mãe e mestra, e sobretudo
o promotor e convocante do Concílio. Era mister apresentar a Igreja sem mancha
nem ruga e que respondesse aos anseios do mundo que, sendo o espaço de Deus,
tem de ser o verdadeiro espaço de Deus.
Mas é Paulo VI que, escutando os escritores
eclesiásticos e aqueles não eclesiásticos com quem a Igreja pode reordenar as
linhas mestras da fé, marca a refontalização, continua a obra do concílio herdada
de Roncalli, mas posta em execução por Montini, qual seu verdadeiro arquiteto.
E não se pode olvidar a encíclica Ecclesiam
Suam, que como que antecipa e acompanha a Lumen Gentium, na reflexão sobre a profundidade do ser da Igreja, e
a Gaudium et Spes, na necessidade de
diálogo com o mundo, no respeito da autonomia das realidades terrestres e na
assunção, como suas, das alegrias e das perplexidades das pessoas, famílias e
povos.
O articulista em referência destaca, no magistério
exortante e mobilizador de Paulo VI, a exortação apostólica Evangelii nuntiandi, em que o
Pontífice “mostrou à Igreja latino-americana o caminho de uma evangelização a
serviço dos pobres e alternativa ao uso da violência para o seu resgate”. E
refere que se trata do “caminho proposto novamente hoje pelo Papa Francisco”. Aqui está um ponto de
contacto importante, quando os teólogos da libertação, porque mal interpretados
ou porque eventualmente terão caído em exageros ou visões parcelares da
realidade ou da doutrina (E quem está sem erro ou sem pecado que atire a
primeira pedrada!) se viram desacreditados, silenciados e proscritos em
pontificados subsequentes a Paulo VI e aos primeiros momentos de Woitila (Alguém
terá querido ser mais papista que o papa!). E Bergoglio já deu mostras de estar
disponível para a atenção a esses investigadores e formuladores de doutrina a
partir da História Bíblica e da Salvação e da realidade humana, social e
política que eles bem conhecem.
Convém salientar a dificuldade que os cardeais
sentiram para encontrar sucessor para João Paulo II, um pastor carismático,
“amado” quase universalmente (embora não seguido como ele desejaria). E optaram
pelo mais óbvio – a escolha do homem da doutrina, do mestre profundo (tímido e
delicado), com alguns rasgos de ousadia. A sua resignação, rezada e apresentada
quase de surpresa, tocou o mundo (possibilitando o ensejo futuro de
reapreciação de seu perfil e ação), mas levou os cardeais a escolherem um
sucessor de raízes italianas, ainda que de nação, experiência e atividade
latino-americanas – a Argentina, por quem a canção pede que não se chore. E o
Papa Francisco aparece ao mundo com o carisma de João Paulo II, embora um tanto
mais adocicado, a profundidade (não se deve pensar que a simplicidade de
palavras não corresponda a profundidade de conceitos e magnanimidade de
sentimentos) e a atenção de Ratzinger, ainda que larvada por maior
flexibilidade e melhor capacidade de empatia. Mas Francisco, sendo também isto,
é muito mais que isto: é ele próprio. Tanto assim que muito ou tudo se espera
dele. E. porque se sabe que está crescer cada vez mais o grupo daqueles que se
lhe querem opor, quando ele mostra não confessar qualquer tipo de medo perante
os riscos ou perigos, crê-se que não venha a desiludir a opinião pública.
***
Giovanni Battista Montini,
em vida, “foi pouco compreendido e
gozou de pouca popularidade”. Muita se falava da sua frágil saúde e do seu
trabalho de Cúria e gabinete em torno de Pio XII. Quase que se esqueceu o seu
trabalho apostólico de ligação à ação católica, à juventude, ao mundo operário
e ao mundo académico. E pouco relevo se deu à sua atividade pastoral como
arcebispo de Milão, onde, sem ostracizar as vértebras humanas da sociedade
milanesa, se revelou próximo dos trabalhadores e dos pobres.
Ao assumir o sumo pontificado, multiplicaram-se-lhe os
adversários e “foi abandonado até mesmo por aqueles que anteriormente o
apoiavam”. Giovagnoli refere-se-lhe como “grande intelectual e fino diplomata”,
que “foi pouco compreendido pelas multidões, enquanto, dentro do palácio, ficou
muitas vezes sozinho em batalhas muito duras”. Há quem lhe aponte uma
formatação teológica pré-conciliar – o que não seria de estranhar, a não ser
que tentasse anular ou minorar a discussão conciliar, cuja ideia terá
inicialmente achado extemporânea – mas não pode deixar de se lhe reconhecer uma
notória e convicta abertura à sociedade, um assíduo acompanhamento da
diplomacia vaticana, incluindo a problemática da Segunda Grande Guerra, a
atenção aos movimentos bíblico, litúrgico e ecuménico. Creio que, entre as
críticas acres de progressistas, cujas pretensões não satisfez, e os ataques de
ultraconservadores, que o apodaram de marxista e maçon – e perante o abandono generalizado – não se poderá estranhar
que um grupo de conservadores, um tanto abertos à pluralidade da sociedade
contemporânea, tenha conseguido abeirar-se dele e condicionar-lhe a sua visão
de Igreja, que de equilibradamente otimista até determinado momento do
pontificado passa a ser revestida de certo negrume.
Porém, não se me afigura lícito deixar de enaltecer
iniciativas e gestos de pioneirismo já por vezes explicitados, como: a
encíclica Populorum Progressio e a
carta Octogesima adveniens, de forte
incidência social; a “destiarização” do papado e a abolição da sedes gestatoria; as viagens pastorais
pelo mundo; os diversos dias temáticos; a reforma da Cúria, que se
internacionalizou; a atribuição de competências aos bispos diocesanos e às
conferências episcopais; o uso da palavra em diversos areópagos internacionais;
a contribuição monetária para os pobres, as missões e os grandes cataclismos;
etc. Tudo isto configura palavra, iniciativa e gesto que os sucessores
assumiram e ampliaram.
Para lá do que foi dito, sobre a Evangelii Nuntiandi, importa salientar que ela constitui um apelo,
na sequência dos decretos conciliares sobre o múnus pastoral dos bispos (Christus Dominus), a atividade e vida
dos sacerdotes (Presbyterorum Ordinis)
e, sobretudo, o apostolado dos leigos (Apostolicam
Actuositatem), à mobilização de todos os estratos do povo de Deus para a
ingente tarefa da evangelização, com destaque especial para o ser e missão dos
leigos no mundo, que é preciso eivar do fermento evangélico. E será a leitura,
à luz do Evangelho, da realidade humana, tal como ela se nos apresenta, que
será possível suscitar o juízo de Deus sobre o mundo e proceder em conformidade
com o que Deus pretende e aquilo de que o mundo necessita.
Agostino, no mencionado artigo, entende que Montini “continua
sendo ainda hoje uma referência obrigatória ao menos por duas questões cruciais
na Igreja Católica do século XXI: a reforma da Cúria Romana e o diálogo com as
culturas contemporâneas”. E, do meu humilde ponto de vista, talvez seja o facto
de Paulo VI ter sido um “homem de fé profunda, absorvida no ambiente familiar e
no contexto de Bréscia”, que,
apesar do seu “forte apego à tradição” – como refere o autor do texto citado –,
“mais do que outros papas, ele soube fazer ruturas dilacerantes”. Acordo
plenamente em que a mais visível e talvez a maior tenha sido a da reforma
litúrgica: “mudou de repente, depois de 500 anos, o modo de rezar de todos os
fiéis católicos do mundo”.
***
E o professor da Università Cattolica del Sacro Cuore destaca os seguintes aspetos:
– O aval dado pelo pontífice à reforma litúrgica não
foi aceite por todos, como mostra o cisma lefebvriano e a crítica de teólogos
famosos como Joseph Ratzinger.
– Montini,
ao invés, “tinha entendido que, se ninguém entende mais a linguagem da
oração, as igrejas estão destinadas a esvaziar-se – convicção compartilhada
pelo Papa Francisco.
– A questão
da liturgia já o tinha levado ao confronto, ainda em 1933, com os jesuítas da
época, muito diferentes dos de hoje.
– Estava
em jogo impedir que os jovens fossem atraídos pelo fascismo, e Montini foi forçado a deixar a
liderança da FUCI, a
associação dos universitários católicos.
– “O cardeal Pacelli, então secretário de Estado e seu superior, olhou com
espanto e distanciamento para esse jovem eclesiástico tão brilhante que
colocava em risco a sua carreira por um punhado de rapazes”.
– A incompreensão então iniciada entre os dois levou,
mais tarde, ao afastamento de Montini de Roma para Milão e à sua promoção
cardinalícia fracassada por obra do próprio de Pacelli, que se tornou o Papa Pio XII.
– O então arcebispo de Milão tudo suportou com paciência, mas, tendo-se tornado
papa, libertou a Cúria vaticana do “partido romano” e começou uma decidida
internacionalização dela.
– A preocupação de Montini com os “distantes”, os das periferias – aqueles
que estão cada vez mais distantes da Igreja, da tradição, do cristianismo, dos
poderes, das liberdades… – levou-o, de facto, a combater aquela Igreja
autorreferencial e “doente” de fechamento em si mesma que Jorge Bergoglio vem criticando.
– Nunca tendo entrado
em conflito com a sua fé, seus comportamentos entraram, muitas vezes, em
contradição e rutura com suas ideias e formas de avaliar as situações – isto,
graças à “sua extraordinária capacidade de abraçar a complexidade”.
– Convicto da importância de uma Europa não mais
dividida pela Guerra Fria, presta incondicional
apoio à Ostpolitik de Casaroli,
antecessora da similar e futura de Gorbatchev, como testemunha a biografia deste último,
da pena de Roberto Morozzo della
Rocca.
– No entanto, o Papa bresciano soube sair da Europa e intuir
a urgência da abertura ao mundo inteiro e, “em 1974, dirigindo-se a um
episcopado católico esgotado pelo conflito entre progressistas e conservadores,
com a Evangelii nuntiandi, indicou, para além das ideologias
já em declínio, o diálogo entre as culturas como problema crucial do mundo contemporâneo”.
***
Radica-se aí, na Evangelii nuntiandi, segundo o parecer do articulista, um
motivo também pessoal de reconhecimento em relação a Paulo VI por parte de Jorge Bergoglio, que, em meu entender,
a retoma, reescreve, aprofunda e amplia com a sua exortação apostólica Evangelii Gaudium. A Igreja, radicada no
Ressuscitado, que anuncia e testemunha alegremente, tem de ser aquele hospital
de campanha em saída para todas e cada uma das periferias existenciais e, ao
mesmo tempo, ser solidariamente a vez e a voz daqueles que bradam por justiça,
vítimas daquela economia e daquela guerra que matam, porque despidas do valor ético
fundante da sã axiologia antropológica. São linhas de força que reitera quase diariamente,
alicerçadas na fé e na misericórdia!
Francisco vai beatificar Paulo VI em outubro; crê-se
que a canonização ocorra ainda em 2015 (termo do cinquentenário do Vaticano II);
e lá virá o tempo, se a Deus prouver, que Bergoglio tenha o seu lugar numa das
peanhas do Vaticano.
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