As
acrobacias, tanto as desenvolvidas em cenário circense como as praticadas com
aeronaves, podem redundar em desastre, se ocorrer qualquer facto imprevisto ou
se efetivamente os operadores correrem riscos demasiados em relação ao cálculo
previamente efetuado. Porém, ninguém ousa sequer colocar a hipótese de gente
impreparada se aventurar a ações desta ordem, cujo inêxito coloca em perigo a
vida própria, eventualmente perturba à séria a vida de outrem e desacredita
este tipo de espetáculos.
Já no
atinente à governança, parece que qualquer cidadão pode servir, desde que
disponha de algum currículo académico, elementar experiência profissional ou suficiente
aderência ao partido ganhador. E seria menos mal se, na verdade, o cidadão
alcandorado a um lugar de governante possuísse, acima de tudo, sensibilidade
política para fazer as opções mais adequadas e tomar as decisões mais
consentâneas com as necessidades detetadas, devendo rodear-se de personalidades
tecnicamente competentes, que não o induzissem em erro em nome de pretensa
ciência, tecnologia ou tecnicidade. Mal e de efeito nefasto sucede quando o
político se apresenta munido de competência técnica, que efetivamente não tem,
currículo académico de duvidosa sustentabilidade e diminuta experiência
profissional ou social. E do alto do seu nefelibatismo manda fazer estudos a
que apõe previamente conclusões ou em cujo processo introduz as informações que
inevitavelmente geram as conclusões pretendidas; depois, decide tudo a coberto
dos estudos de propalado rigor científico e técnico; e tenta, num ambiente de
exploração e mobilização de sacrifício estoicamente suportado (os protestos,
por mais gritantes que sejam, são ou entendidos no quadro da normalidade democrática
ou subestimados), convencer o público a colocar-se nas estrelas, para o que
arregimenta todo um chorrilho de discurso propagandístico e medidas paliativas.
E a coisa incandesce quando a arena governativa se estende em contradições ora
desmentidas ora objeto de recuo ora de avanço sem atender a nada nem a ninguém.
***
Se os
governos dos últimos quinze anos nos habituaram a este estilo de fazer
política, o atual tem usado e abusado da acrobacia nefelibata. Vejamos:
O
défice público, que a troika (que foi embora em maio e que parece estar de volta)
acertou com o Governo para 2014 como sendo de 4% do PIB (produto interno
bruto), poderá chegar, à luz das estatísticas oficiais, a 7,6% do PIB. A dívida
aumenta e a economia não consegue crescer significativamente. Seria milagre um
crescimento económico assinalável em Portugal com a estagnação da economia
europeia! Nisto, como em muitos outros capítulos, os nossos governantes passam
a vida a negar o óbvio para, dias depois, aceitarem as evidências que os factos
oferecem e oferecerem as mais incongruentes justificações.
No
entanto, o Governo reitera a pregação de que a meta do défice se manterá em 4%.
Só a ajuda do Estado ao BES, antigo ou novo, poderá agravar o desequilíbrio das
contas públicas em 2,9%.
Mas o
BdP (Banco de Portugal), que neste aspeto segue o Governo, e o próprio Governo
(que não se mete na área do privado – disse ) garantiram a boa saúde do BES,
distinguiram o BES (perfeitamente sustentável) do GES (com problemas); dividiram
o BES em Banco Mau e Banco Bom; garantiram que o contribuinte nada iria
desembolsar para o Banco Bom, o Novo Banco (o da borboleta), embora a Ministra
do Estado e das Finanças tenha, talvez por lapsus
linguae, especificado que, quando o Novo Banco for vendido, o contribuinte
terá o retorno financeiro; e hoje sabe-se que o Estado adiantou, em
nome dos bancos, os 635 milhões de euros que estes se tinham comprometido
emprestar ao Fundo de Resolução (acionista único) para que se procedesse à
capitalização do Novo Banco.
A
referida governante, na conferência de imprensa de apresentação do segundo orçamento
retificativo deste ano, sistematizou as quatro novas fontes de derrapagem da
despesa (normais!): a decisão do
Tribunal Constitucional (TC), que obrigou a repor salários e impediu a
tributação dos subsídios de doença, de desemprego e os cortes das pensões de
viuvez; a maior despesa com hospitais; os gastos inesperados das autarquias; e
as poupanças abaixo do previsto com os instrumentos de requalificação e de
rescisões “amigáveis” de funcionários públicos.
E quantifica: a despesa adicional decorrente
da decisão do TC rondará 860 milhões de euros; a despesa nova com hospitais, os
300 milhões; e a derrapagem autárquica, outros 300 milhões (porque não acabaram
com municípios quando agregaram freguesias?). Faltou-lhe quantificar os números
relativos às expectativas goradas com os esquemas de rescisões “amigáveis” e de
requalificação (despedimento a médio prazo).
Efetivamente, os
grandes responsáveis pelo défice e pela dimensão colossal da dívida pública são
o TC e os funcionários públicos. Já o sabíamos. O descalabro do BES/GES, do
BPN, do BPP, do BCP, do BANIF, os salários, indemnizações e reformas obscenas de
alguns, bem como algumas superdespesas de gabinetes ministeriais – tudo isto é
matéria irrelevante, não é?!
Mas o Governo entende
que as despesas acima referenciadas configuram gastos novos, que já estão
acomodados no défice de 4%, graças à maior coleta de receita fiscal e
contributiva. A melhoria da atividade e do emprego (dizem alguns que a registada
baixa do desemprego é artificial!) permitirá um encaixe adicional de 0,7% do
PIB em impostos e de 0,3% em descontos para a Segurança Social – cerca de mil e
500 milhões de euros, respetivamente.
Ora, sendo assim, por
que motivo se anuncia o congelamento de verbas para funcionamento em grande
parte dos Ministérios?
***
Se atentarmos na
problemática do segundo orçamento retificativo, veremos afirmações bem
esquisitas. Uns dizem que o orçamento retificativo se reduz a estas cinco
palavras, “Não há aumento de impostos”
(CDS); outros vêm a dizer que se trata de um retificativo “sem medidas específicas adicionais” (Governo). A oposição é
quase unânime na indicação da continuação e agravamento da austeridade.
A grande
caraterística deste segundo orçamento retificativo, disse Maria Luís
Albuquerque, é que o desvio na despesa será tapado com mais receita e maior
controlo da despesa. No entanto, não especificou em que áreas. Sublinhou apenas
que, ao mesmo tempo que subirá o teto da receita, também elevará o teto da
despesa, mas assegurou que este orçamento não traz “medidas específicas
adicionais”, simplesmente “um esforço de contenção da despesa adicional”.
A despesa
extraordinária de 2014 somará seis mil milhões. Trata-se, no entanto, do resultado de uma série
de operações extraordinárias ou irrepetíveis (sendo a fatia de leão a
decorrente da ajuda do Estado ao Novo Banco, originado a partir do antigo BES,
através do fundo de resolução) que o Eurostat poderá obrigar a incluir como
défice deste ano, embora a Ministra das nossas carteiras garanta que não
implicará despesa adicional, segundo os critérios ajustados com a troika,
segundo os quais, por serem irrepetíveis, não contarão para a meta dos 4%.
Isto quer dizer que,
com troika ou sem troika, com Eurostat ou sem Eurostat, o défice lá estará bem
à vista! Será que uma despesa extraordinária ou irrepetível não será uma
despesa?
Também se afigura
surreal a gestão discursiva do orçamento retificativo. Não tem notícias, não
implica despesas adicionais, não aumenta impostos, não origina cortes de
salários… Ora, se é tão inócuo, como se se tratasse de mero formalismo a
reconhecer pelo parlamento em formato de lei, como um jornalista comentador
alvitrou, o Governo deverá declará-lo à opinião pública. Mas na verdade não é
assim. A ver vamos, quando o documento obtiver a redação final em sede
parlamentar.
Parece, antes, que o
Governo e seus defensores estão apostados em que os portugueses se concentrem
na propalada inocuidade do retificativo, para esquecerem o próximo dia 4 de
setembro, em que a Assembleia da República vai iniciar a discussão do diploma a
que o TC apontou a inconstitucionalidade de algumas normas, para côngrua expurgação
das mesmas, mas também para firmar aquelas que o Tribunal considerou legítimas,
dada a sua transitoriedade, ou seja, a reposição, para o resto do ano de 2014 e
todo o ano de 2 2015, dos cortes salariais na função pública decretados no
tempo de Sócrates para vigorarem no ano de 2011. Quer dizer que, em setembro ou
em outubro, vai ter lugar quebra de salários de funcionários públicos, o que
implicará redução de despesa, a não ser que haja aumento por outra via.
Também os apaniguados
do Governo acentuam que o retificativo não prevê aumento de impostos nem
aumento de despesas; mas o Governo admite a hipótese de um outro orçamento
retificativo para este ano. Aí, não se inscreverá uma antecipação do aumento de
impostos e/ou contribuições e de redução de despesa em relação a 2015? E para
esse ano teremos o agravamento da austeridade nos termos até agora delineados
ou noutros a definir?
A ginástica
governamental da não necessidade de cortes de salários ou do aumento de impostos
e contribuições, da reformulação de taxas e tarifas e do não despedimento de funcionários
– desmentida pelos factos e por sucessivas edições legislativas – revela um
governo que não sabe, não pode ou não quer governar de outro modo. É uma acrobacia
pública de riscos catastróficos a que o povo se vai habituando anestesiado por
uma propaganda assente no tópico da inevitabilidade e da afirmação caluniosa,
por generalizada, de que os portugueses viveram acima das suas possibilidades. E
agora pretende artificialmente compartimentar os diplomas legais, de modo que,
ao arrepio da epistemologia jurídica e política, sejam apreciados independentemente
uns dos outros, para que não se notem os efeitos e não, como deveria ser,
favorecer a sua análise enquanto integrados no corpus jurídico integral.
Há que repor a verdade,
a justiça e a honra do povo português e assegurar-lhe o patamar de um mínimo de
conforto. A esperança é aquela que não pode estiolar!
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