terça-feira, 26 de agosto de 2014

Pardais de torre…

A agência Ecclesia, citando a Rádio Vaticano, em 25 de agosto fazia eco das palavras do representante diplomático da Santa Sé em Damasco, D. Mario Zenari, que lamentou o “esquecimento” da comunidade internacional perante a tragédia provocada pela guerra na Síria.
“Infelizmente, os holofotes sobre a Síria foram desligados, a Síria desapareceu do radar da comunidade internacional, já não é notícia” – desabafava o núncio apostólico na Síria aos microfones da rádio da Santa Sé.
Em consonância com os dados divulgados pela Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, a sublinhar que os mais de três anos de conflito naquele território provocaram 191 mil mortes, D. Mario Zenari declara que “todos os dias há uma média de 180 mortes, na Síria” – “número que não deveria deixar ninguém tranquilo”. Verifica, no entanto, com amargura, que infelizmente “a Síria caiu no esquecimento”.
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O caso faz-me lembrar este fenómeno observado popularmente: os pardais aninhados em torre de igreja, às primeiras vezes que ouvem o toque dos sinos, ficam cheios de temor e espanto e deitam a fugir; porém, com a habituação, os sinos bem podem soar e ressoar, que os pardais lá continuam no seu posto a gozar do conforto, segurança e índole altaneira da torre. Conseguiram sítio para abrigo, dificilmente o caçador os atinge e dali podem mirar melhor as oportunidades de apresamento de insetos e culturas na imensidão dos ares e na vastidão dos campos. Tanto assim que o povo sabe que o primeiro milho é dos pardais. Na torre, em que o toque de sino passa a funcionar como celestial música, nada os aflige, a não ser algum raio ou terramoto; no campo, a única forma de os afugentar parece que são os espantalhos, talvez por lhes lembrarem figurações humanas.
Alguns padres espirituais assemelham ao comportamento dos pardais de torre a reação dos cristãos à pregação: muito comovidos, a princípio, muito habituados, a seguir. Algo se diz dos “missionários”, os das missões populares em vilas e cidades de cristianismo morno: colhem de imediato os frutos dos primeiros fervores, a que muitas vezes pouco mais se segue de significativo. E os clérigos que, tal como as tropas de quadrícula que aguentam estoica e organizadamente a luta no terreno, por ali mourejam no quotidiano, epidermicamente sem resultados, sentem o seu labor subvalorizado, quando não totalmente ignorado. É assim a vida: uns semeiam, outros colhem.
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Votando aos esquecimentos da comunidade internacional, há que referir a multitude de casos olvidados. Quem se lembra da Somália, do Zaire, do Burundi, do Uganda, da Etiópia? Não se esqueceram já as tropelias da União Soviética e a crassa violação dos direitos humanos na China, a quem o Governo da República Portuguesa e o Governo de Sua Majestade Britânica, entregaram pacificamente os Estados de Macau e de Hong-Kong, respetivamente, não sem que previamente se tenha procedido a investimentos avultados em cada um desses Estados, aos quais as autoridades chinesas prometeram um estatuto político-administrativo especial, garantia ora olvidada?
Se não fora o Papa Francisco nos últimos dias, quem recordaria o sofrimento por que passam os cidadãos norte-coreanos, obrigados que são a bater palmas e a chorar? Ou quem lembra o Tibete, a vida degradada na Índia, o montão de refugiados e os emigrantes clandestinos (em vários lugares), a dizimação, em tempos, na Chechénia ou na Geórgia e a guerra do Kosovo?
Não está quase no arquivo da memória a primavera árabe com a destituição dos “poderes” na Tunísia, na Líbia e no Egito – sem solução aceitável?
Recordo-me de que a Indonésia submeteu ao seu regime ditatorial o Estado de Timor Lorosae, sem reação internacional significativa, desde 1975 até 1991, ano do massacre no Cemitério de Santa Cruz, em Dili. Foi preciso o Dr. Mário Soares, então Presidente da República, ter visto o espetáculo pela televisão e ouvir os timorenses a rezar em Português para Durão Barroso e Ana Gomes tocarem as campainhas do alerta internacional, o qual, depois de alastrado e consolidado, pouco a pouco levou Ali Alatas a promover e a aceitar iniciativas conducentes à independência (e mediaram mais de 10 anos). Ainda me lembro do compungente discurso de Mário Soares em 13 de maio de 1991, a solicitar a intercessão de João Paulo II por Timor, aquando da sua despedida de Portugal, no âmbito de uma sua vista pastoral ao país. Custou, mas hoje Timor Lorosae é uma grande e florescente nação!
Ainda dobram mediocremente os sinos pelo Afeganistão, fortemente pelo Iraque e pela Terra Santa, pouco pela Guiné Equatorial. Esquece-se a Guiné-Bissau, a continuidade da revolução cubana… Poucos acreditam na instalação e prosseguimento da III Guerra Mundial, por capítulos ou por episódios (aos pedaços), mas a produzir cada vez mais vítimas e vítimas que nada têm a ver com a guerra e com expedientes inéditos até há pouco anos – o avião-bomba, o carro-bomba, o homem-bomba (Alguns destes são portugueses!).
Oxalá não seja necessário que surja uma hecatombe humana ou natural para que estes internacionais pardais ou outros pássaros de torre acordem nos termos dramaticamente cantados no poema de Thiago Petrucelli, de 3 de janeiro de 2014, que se deixa à reflexão espiritual e à fruição literária.
Nós somos como pássaros.
Estamos empoleirados no topo de uma torre
Que é a nossa família, amigos.
Nosso emprego.
Nossa cidade, nossas ideias.
Nossa segurança, conforto
Esperanças
Nosso Deus.
Mas um dia, inadvertidamente,
A vida vem com raios de uma tempestade
Que bloco a bloco
Põem nossa torre abaixo.
Nós, pássaros empoleirados no topo da antiga torre,
Nesse momento de queda livre
Tentamos nos agarrar ao que restou,
Voltar ao que era antes
Mas tudo desaba ao nosso toque,
Não há mais ninho para voltar.
E nesse cair vertiginoso
Analisamos nossas opções
E ao ver o chão se aproximando com velocidade
Percebemos que na verdade não há opção
Senão abrir as asas,
E voar.


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