No voo de
regresso da Coreia do Sul, durante o encontro com os diversos jornalistas, no
quadro da resposta ao jornalista Johannes Schidelko, da Agência Católica Alemã, sobre o tipo
de relacionamento com o emérito Bento XVI, o Papa Francisco declarou que não
era teólogo:
Temos
um relacionamento normal, porque – e volto a esta ideia que talvez não agrade a
qualquer teólogo; eu não sou teólogo
– penso que o Papa emérito não seja uma exceção, mas, depois de muitos séculos,
este é o primeiro emérito. (…) Ele abriu uma porta que é institucional, não excecional.
Esta asserção, estranha dado o currículo do papa e a sua
eminente função na Igreja, deverá levar-nos a revisitar o conceito de teologia
e de teólogo, bem como a questão dos lugares teológicos.
***
Do currículo, pode ler-se que se graduou em Teologia
em 1969; emitiu os seus últimos votos na Companhia de Jesus em 1973, ano em que
passou a mestre de noviços no
Seminário da Villa Barilari, em San Miguel; no mesmo ano, foi eleito superior
provincial dos jesuítas, na Argentina; em 1980, após o período do
provincialato, retornou a San Miguel, para ensinar numa escola dos jesuítas; no
período de 1980 a 1986, foi reitor da Faculdade de Filosofia e Teologia de San
Miguel; após o doutoramento na Alemanha,
foi confessor e diretor espiritual em Córdoba; em 1992, tornou-se bispo de Auca
e auxiliar de Buenos Aires, passando a arcebispo coadjutor em 1997; em 1998
tornou-se arcebispo metropolitano de Buenos Aires e também, ainda no mesmo ano,
ordinário para os fiéis de rito
oriental sem ordinário próprio, na Argentina; foi criado cardeal no Consistório Ordinário Público de
2001, recebendo o título de cardeal-presbítero de São Roberto Belarmino; e, em
13 de março de 2013, o conclave elegeu-o Bispo de Roma, a quem compete o
supremo magistério eclesial, no âmbito do ministério petrino.
Portanto, a nível do currículo académico e
gestão académica, não restam dúvidas sobre o seu estatuto de teólogo, bem como
no atinente às funções de relevo na Igreja e a mais de uma dezena de
publicações de caráter teológico ou afins.
***
Quanto a teologia e a teólogo, são
termos que não se encontram explicitamente nas Sagradas Escrituras. Porém, na tradição cristã (de matriz
agostiniana), a teologia é organizada segundo os dados da revelação e da
experiência humana (transversal a todo o homem, mas diversificada consoante os
tempos, os espaços e outras condições em que se movem os homens). Esses dados
são organizados no que se conhece como teologia sistemática e teologia
dogmática ou teologias específicas, numa
explícita referência cristológica, soteriológica e eclesiológica.
Etimologicamente, o termo “teologia”
deriva de dois nomes gregos: Theós, que significa Deus; e logia, que
significa “palavras”, “oráculo”, “dito”, “fala”, “declaração”, “ensino” ou
“tratado” (cf 1Pe 4,11). No grego, “ta logia tou Theou” [τά λόγια τον θεοῠ] pode traduzir-se
pelas expressões “Palavra de Deus” e “Revelação de Deus”.
Assim, Teologia é a ciência que estuda
os discursos ou tratados sobre Deus e factos com Ele relacionados. Segundo as
palavras de Chafer, podemos afirmar que a teologia é o discurso que se faz
sobre Deus (cf. CHAFER, Lewis
Sperry. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2003. Livro 1,
v1 e 2 – Prolegómenos, Bibliologia, Teontologia).
De acordo com Paul Tillich, “teologia é
a interpretação metodológica dos conteúdos da fé cristã” e configura “uma função
da Igreja cristã” (cf Paul Tillich, Teologia Sistemática,
EP:1987).
Apesar de o vocábulo “teologia” não ser
visivelmente encontrado na Escritura, não deixa, contudo, de lhe corresponder. Paulo
(Rm 3,2) trata da palavra
inspirada sob a denominação de “oráculos de Deus”; e Pedro, já mencionado,
também se refere claramente aos oráculos de Deus: “Se alguém fala, fale de acordo
com os oráculos de Deus” (1Pe 4.11).
Desta forma, o “teólogo” (Θεóλoγος, teólogos, no grego) é
aquele que fala de Deus, que fala a Deus e é, também, aquele a quem Deus fala.
Gingrinch e Danker definem o teólogo como “alguém que fala de Deus ou de coisas
divinas” (Cf. GINGRICH, F.
Wilbur; DANKER, Frederick W. Léxico do NT: grego/português.
São Paulo: Vida Nova, 1984). Se o termo “teólogo”, for usado em sentido ativo, como
acontece habitualmente, refere-se à pessoa que fala de e em nome de Deus; mas
quando usado passivamente, reporta-se àquele a quem Deus fala. (Cf. CHAFER, op cit).
A função do teólogo, em certo sentido,
confunde-se com a do profeta no Antigo Testamento ou com a do apóstolo
neotestamentário: por meio da revelação divina recebe a mensagem direta de Deus
e a transmite aos homens, que a replicam. Por isso, como afirma Railey e Aker,
“a boa teologia é escrita por aqueles que tomam o devido cuidado em deixar que as
suas perspetivas sejam moldadas pela revelação bíblica” (cf RAILEY,
James H.; AKER, Benny C. Fundamentos teológicos. In HOR-TON, Stanley M. (ed). Teologia Sistemática: Uma perspetiva Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1996).
Nestes termos, podemos compreender que a
teologia deve ser elaborada e aceite pela Igreja e em Igreja, por se tratar da presentificação
e explanação da Palavra de Deus; e que o teólogo não é um indivíduo que se
tranca em seu gabinete e inventa conceitos triviais ou inacessíveis aos pobres
mortais. O teólogo, ao invés, é um profeta que entra na presença de Deus,
discerne a Sua voz e a transmite aos homens, tal como a recebeu e percebeu
pelos seus olhos humanos, embora com a concomitância da fé e da oração. O
teólogo está com o rebanho, a que pertence e não ao lado ou distante dele. O
teólogo não é um corpo estranho, que se possa extrair ou isolar, pois, como
afirma Paul Tillich, “O teólogo, tendo uma função relevante na Igreja, deve
servir às necessidades desta Igreja”. O mesmo diz Pedro em relação a qualquer
dom ou carisma que alguém receba: “deve colocá-lo ao serviço da comunidade” (cf 1Pe 4,10). Isto significa que a função básica do teólogo é ser útil à Igreja na sua
edificação doutrinária. Entretanto, deve ter o cuidado de não minorar as
verdades bíblicas em detrimento das eventuais “vontades” da Igreja. Além disso,
“não pode haver nenhuma diferença básica entre a verdade que a comunidade
cristã conhece através do Espírito Santo, que nela habita, e a que é expressada
nas Escrituras” (cf Paul Tillich, op cit). Daí a importância do ensino
teológico e da função teológica na Igreja; bem como a permanente dialética
entre aquilo que está formulado como que em definitivo e a reflexão que é
tentada a tudo pôr em causa, a descobrir mais, a reformular, a apresentar em
novas linguagens ou a responder a novos desafios ou de outra forma a velhos
problemas.
Segundo o preceituado na Carta aos
Efésios, percebemos que o dom de pastor e doutor é um dom que Cristo concedeu à
Igreja “em ordem à estruturação dos santos, para o trabalho do ministério, para
a edificação do Corpo de Cristo, até chegarem todos à unidade da fé e do
conhecimento do Filho de Deus, ao estado do homem feito, à estatura proporcionada
à plenitude de Cristo” (cf Ef 4,11-13). Numa interpretação textual ao pé da letra e com as devidas consequências,
poderemos afirmar que o Senhor não dá apenas dons ministeriais, mas ministros
com dons, ou seja, o próprio Cristo é quem dá “doutores” à Sua Igreja.
Sem o ensino teológico e a função do
doutor, não pode existir liderança eficaz para enfrentar os problemas
teológicos e espirituais da pós-modernidade. Sem ensino teológico não teremos
cristãos fiéis, maduros, capacitados para toda a boa obra, segundo o querer e
sentir de Deus!
Também neste âmbito, o Papa Francisco
não fica a dever muito ou quase nada ao teólogo, dado que recentra a vocação, o
ser e a missão da Igreja (sente o apelo de Deus e o desafio da humanidade que
sofre; tem a referência profunda e explícita a Jesus Cristo e não a si mesma e
o seu estilo a estar a caminho; e qual hospital de campanha está aberta e em
saída às diversas e a todas as periferias existenciais); acentua em Deus o seu
vulto misericordioso, de que não é legítimo ter medo quer em termos de fé quer
de testemunho; está eminentemente ao serviço desta Igreja pela qual está
disposto a dar a vida, oferecendo o corpo às balas se tal tiver de ocorrer.
Enfim, e não é teólogo este Papa?!
***
Quanto aos lugares teológicos,
que alguns designam por fontes da teologia, embora sem muito me alongar, deixo
aqui alguma reflexão. Terá sido, do ponto de vista epistemológico, o atinente à
compreensão e à determinação do “lugar teológico” que originou a polémica
surgida em torno da Teologia da Libertação, pela qual Paulo VI nutria alguma
simpatia e que Francisco parece querer reaver.
Por trás da polémica estão, entre
outras questões, duas formas de compreender o conceito de “lugar teológico”,
cujos principais representantes são o seiscentista dominicano espanhol Melchor
Cano, por um lado, e os jesuítas espanhóis/salvadorenhos Jon Sobrino e Ignacio
Ellacuría, por outro, do século XX.
Considerando os argumentos de
razão e os de autoridade e a afirmação do primado da autoridade sobre a razão
em teologia, Melchor Cano, à luz dos tópicos aristotélicos, compreende os
lugares teológicos como os lugares de onde se tiram os argumentos teológicos:
tal como Aristóteles propôs em seus tópicos uns lugares comuns como sedes e
sinais de argumentos, donde se pudesse extrair a argumentação para todas as
modalidades de disputa, de modo similar, os teólogos definem certos lugares
próprios da teologia como domicílios ou fontes de todos os argumentos teológicos,
donde os teólogos podem extrair os seus argumentos quer de prova quer de refutação.
Assim, estabelece dez “lugares teológicos”: a autoridade da Sagrada Escritura, a
autoridade das Tradições de Cristo e dos Apóstolos, a autoridade da Igreja
Católica em geral, a autoridade dos Concílios, a autoridade da Igreja de Roma
em especial, a autoridade dos Santos Padres, a autoridade dos Teólogos
Escolásticos e dos Canonistas, a Razão Natural, a autoridade dos Filósofos e autoridade
da História Humana. Os argumentos provenientes dos sete primeiros lugares são
argumentos “inteiramente próprios” da teologia, ao passo que os outros são
argumentos “adscritos e como que mendigados ab
alieno”. Dos preditos lugares teológicos, os dois primeiros contêm os
‘princípios próprios e legítimos’ da teologia, enquanto os três últimos contêm
os ‘princípios externos e alheios”. E os cinco lugares intermédios contêm ou a
interpretação dos princípios próprios ou as conclusões que nasceram ou saíram
deles.
Por seu turno, Jon Sobrino e
Ignacio Ellacuría, tendo em conta o caráter histórico-social do conhecimento
teológico, bem como a sua possível e comprovada ideologização, na linha
veterotestamentária e na neotestamentária de Lucas (no 3.º Evangelho e no Livro
dos Atos) e de de Tiago, compreendem o lugar teológico, fundamentalmente, como
lugar social: o mundo dos pobres e dos oprimidos como lugar privilegiado da
revelação e, consequentemente, da fé (práxis teologal) e de sua intelecção
(teoria teológica). Vivemos numa sociedade dividida (ricos e pobres, opressores
e oprimidos, resignados e conscientizados); e o lugar social em que nos
situamos exerce um papel decisivo na configuração da nossa vida prática e, consequentemente,
da formulação teórica. De modo que, do ponto de vista estritamente teologal e
teológico, não é fácil a situação simultânea no lugar social dos ricos e no
lugar social dos pobres. Nestes termos, Ellacuría distingue, ao menos
metodologicamente, entre “lugar” e “fonte” da teologia. Por “fonte” da
teologia, entende o depósito da fé (à guarda dos Pastores, sobretudo do Romano
Pontífice), ou seja, aquilo que, de uma ou de outra forma, mantém os conteúdos
da fé. Por “lugar” da teologia, entende aquele lugar (social) a partir do qual
se acede às fontes da fé e da teologia e a partir do qual essas mesmas fontes
fazem brotar de si a luz e a orientação, que levam ao compromisso com Deus e
com o homem. Seria, portanto, um erro pensar que bastaria o contato direto com
as fontes para estar em condição de ver nelas e de extrair delas o que é mais
adequado para o que há de constituir uma autêntica reflexão teológica. Não por
acaso a parcialidade de Deus pelos pobres e a centralidade da libertação na
revelação e na fé bíblicas foram redescobertas precisamente num continente
marcado pela pobreza e pela opressão.
Eis, portanto, dois conceitos
distintos, embora não necessariamente contrários, de lugar teológico: fontes ou
domicílios de argumentos teológicos (Melchor Cano), de inspiração aristotélica
(vd
D-S, Enchiridion Symbolorum… Ed XXXIV); e mundo dos pobres e oprimidos
como lugar social (Ignacio Ellacuría e Jon Sobrino), de feição existencial. Se
não se pode fazer teologia prescindindo das fontes, também é certo que o acesso
às fontes da teologia – que não se circunscrevem aos textos do passado –
acontece sempre num lugar social em concreto, mais ou menos adequado. (cf Francisco de Aquino
Júnior, Sobre o conceito de ‘lugar teológico’. In “Adital” [em linha]: http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=38025, ac agosto 2014).
Não
podemos olvidar que a economia da salvação acentua a opção de Deus pelo seu
povo, sobretudo quando ele passava a tribulação da fome, miséria, guerra, opressão
e exílio, bem como os marginalizados da sorte ou da sociedade (mulheres estéreis,
estrangeiros, leprosos, mulheres, crianças, pecadores…). O cântico da Virgem Maria
é um hino à misericórdia divina, cujo amor se estende de geração em geração, que
exalta os humildes, enche de bens os famintos (cf Lc 1,46-56). E, se se duvida da validade da teologia
latino-americana por alegadamente se situar demasiado na problemática local e
regional e utilizar linguagens peculiares daqueles povos e da sua
idiossincrasia, seria útil fazer-se o exercício de despir, por exemplo, a
teologia tomista do seu contexto sociocultural e das linguagens epocais a ver que
o que restaria.
Também
no concernente a lugares teológicos, Francisco está nos trilhos do teólogo. Não
cita abundantemente a Escritura, os Padres da Igreja, os concílios, os
predecessores, a luz da razão, os documentos da ONU? Não provém de uma nação sul-americana,
não se empenhou com Brasil, Lampedusa, Coreias, Síria, Iraque, Terra Santa?
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