O padre Laureano Alves Pereira,
Provincial dos Passionistas, presidiu a 3 de agosto, em Santa Maria da Feira, à
celebração eucarística em que o irmão José Gregório fez a profissão perpétua.
O predito Padre Provincial,
evocando o poder que lhe fora dado pela Igreja, recebeu os votos – de pobreza
voluntária, castidade perpétua e obediência inteira, bem como o de testemunhar
de forma intensa a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, integrado na
congregação fundada por São Paulo da Cruz – emitidos pelo irmão missionário ora
professo.
Apreciando gostosamente todo o
ambiente de festa e fraternidade decorrente do evento religioso, em íntima
consonância com a celebração da Eucaristia, não pode deixar de sublinhar-se o
tocante comentário que o padre Laureano teceu aos conteúdos das leituras que
enformaram a Liturgia da Palavra.
Ao referir-se ao episódio da
multiplicação dos pães e dos peixes referido por São Mateus (Mt
14,13-21), não
deixou de sublinhar aspetos interessantes e que entende estarem na base do
milagre. Desde já, é importante desligar da linguagem do mundo hodierno, do “comprar e vender”, e passar à linguagem
de Deus, do “dar e receber”. Com efeito, quando os discípulos viram que se
fazia tarde e que a multidão estava faminta, sugeriram ao Mestre que a mandasse
embora para que as pessoas pudessem ir às aldeias “comprar” alimento. A esta
sugestão o sedutor das multidões, cujos enfermos havia curado, reagiu
ensinando, “não é preciso que eles vão”,
e ordenando, “dai-lhes vós mesmos de
comer”.
Os discípulos começaram a
hesitar, a calcular, “só temos aqui cinco
pães e dois peixes”. E na perspetiva de homens aquilo não era nada para
tanta gente. No entanto, Cristo não desprezou o pouco que havia: até poderia
fazer milagre a partir do nada. Todavia, a sua lógica e pedagogia fazem-no
partir daquilo que há disponível ao nível das coisas e das pessoas. “Trazei-mos cá”, ordenou. E os discípulos
não se fizeram rogados e entregaram todo o pouco que tinham.
E foi sobre este pouco que o
Senhor “ergueu os olhos ao céu,
pronunciou a bênção, partiu e deu aos discípulos e estes distribuíram pela
multidão”. Se compararmos com a formulação narrativa do capítulo 26 (vd
Mt 26,26), veremos
neste episódio uma antecipação prática da instituição da Eucaristia – o Cristo
como “O Pão partido pela vida do mundo
inteiro” (lema do Congresso Eucarístico Internacional de
Lourdes, em 1981).
Todos comeram e ficaram saciados
(alusão
ao maná e codornizes, Ex 16,4-5.12-15.31, dados no deserto). Só agora com a comida e a
saciedade é que muitos se dão conta do milagre, quando – reflete o orador – o
milagre começa (E é espantoso!) quando as pessoas vêm e se entregam e entregam
tudo o que têm para que Ele possa pronunciar a bênção e mandar repartir. É a bênção
que, aliada à disponibilidade, gera a abundância e permite que, se houver
partilha/distribuição, todos se alimentem em conjunto (ordenou à multidão que
todos se sentassem, não andando nenhuma das pessoas a comer em seu cantinho) e
fiquem saciados. É a consumação do convite formulado em Isaías no início do
capítulo 55:
Atenção! Todos vós que tendes sede, vinde às águas. E os que
não tendes dinheiro, vinde também, comprai, e comei. Sim, vinde, comprai, sem
dinheiro e sem nada pagardes, vinho e leite, que são de graça. Porque gastais o
vosso dinheiro naquilo que não alimenta? E o salário, produto do vosso
trabalho, naquilo que não pode saciar-vos? Se me escutardes, havereis de comer
do melhor e saborear iguarias deliciosas.
Prestai-me atenção e vinde a mim. Escutai-me e vivereis.
Farei convosco uma aliança eterna e a promessa de David será mantida. (Is
55,1-3).
E quando referiu
que, com o que sobejou, se encheram doze cestos, o presidente da celebração e
condutor homilético interrogou a assembleia sobre o que significavam os doze
cestos. Foi óbvia a resposta: ss doze cestos são os doze apóstolos. Sim,
concordou, os doze apóstolos, a Igreja, o espaço da superabundância divina.
***
Ora a sobra
configurada nos doze cestos de pedaços suscita uma pequena reflexão
bíblico-eclesiológica. Se o bom senso manda não estragar nada do que sobra,
para que noutra ocasião ou com outras pessoas venha a servir, o facto de haver
sobra – e sobra significativa – a partir do pouco que se disponibilizou, é
admirável e resulta mais do milagre da divindade do que da gestão rigorosa, de
que hoje se fala e que dá raia ao dobrar da esquina da primeira dificuldade.
Quanto às sobras
atinentes à multiplicação dos pães e dos peixes (Mt
14,13-21;
15,32-38; Mc 6,34-44; 8,1-9; Lc 9,10-17; Jo 6,1-15), referem os
estudiosos que a recolha dos restos de pão evoca um outro episódio passado no
Antigo Testamento, no segundo Livro dos Reis:
Veio um homem de Baal-Salisa, que trazia ao homem de Deus,
como oferta de primícias, vinte pães de cevada e trigo novo no seu saco. Disse
Eliseu ao servo: “Dá-os a esses homens para que comam”. Ao que o servo
respondeu: “Como poderei dar de comer a cem pessoas com isto”? Mas Eliseu
insistiu: disse ele: “Dá-os a esses homens para que comam. Pois assim diz o
Senhor: Comerão e ainda sobejará”. Então
colocou os pães diante deles. Todos comeram e ainda sobejou, como o Senhor
tinha dito. (2Rs
4,42-44).
A abundância veterotestamentária
tem continuidade no Novo Testamento. Só que a deste é definitiva e suplanta
infinitamente a superabundância antiga, dado que é firmada a partir da palavra
e da ação da plenitude do Filho por quem tudo foi criado e por quem tudo é
recriado na plenitude dos tempos (cf Gl 4,4). Por outro lado, ela está
inscrita naquele desígnio que marca a vinda de Cristo ao mundo: vim para que tenham vida e a tenham em abundância
(Jo
10,10). E, se a superabundância fica
associada à bênção e à disponibilidade, também fica ligada ao trabalho, à
colocação dos talentos a render (vd Mt 25,14-23; Lc
19,12-19), à
disponibilidade interior e exterior, ao risco, à aventura pelos outros, pelo
Reino.
Mateus e Marcos referem dois
episódios de multiplicação dos pães e dos peixes (Mt 14,13-21; Mc 6,34-44 – Mt 15,32-38; Mc 8,1-9), ao passo que Lucas (Lc
9,10-17) e João (Jo
6,1-15) relatam
apenas um, que coincide com os primeiros relatados por Mateus e por Marcos.
No episódio narrado por Lucas e
João e no primeiro narrado por Mateus e por Marcos são doze os cestos de
pedaços de pão que sobram, enquanto no segundo episódio relatado por Mateus e
por Marcos os cestos de pedaços que sobram são sete.
Como vimos, a assembleia
litúrgica respondeu ao padre Laureano que os doze cestos significam os doze
apóstolos, seguindo neste aspeto os comentadores bíblicos. Com efeito, estes
remetendo o fenómeno da superabundância para as doze tribos de Israel, acentuam
a continuidade da missão salvífica de Cristo prefigurada e iniciada em Israel. Porém,
ao ensinarem que os doze cestos evocam o número dos doze discípulos, escolhidos
por Jesus e por Ele ensinados a dar o pão da Palavra e da Eucaristia às
multidões com fome, acentuam a natureza da Igreja como o Novo Israel de Deus ao
serviço do povo faminto de Palavra e de Pão. Se nem só de pão vive o homem, mas
da Palavra que lhe vem da boca de Deus (cf Mt 4,4), também é preciso que, de
acordo com a missão da Igreja, se lhe dê de comer (cf
Mt 14,16) e
sobretudo que se lhe dê o Pão Vivo que desceu do Céu (cf
Jo 6,35), mais do
que o do alimento que desaparece (cf Jo 6,35). É também a plenitude do ciclo
de vida de cada ano que retorna (12 meses, 12 signos; e
12 x 12 é o número simbólico dos redimidos – Ap 7,1-14); a síntese do divino (o três de
Deus, pessoas e virtudes teologais) com o divino (as quatro virtudes cardeais).
É a abundância no seu expoente máximo, os doze frutos do Espírito Santo, ou a
plenitude do fruto do Espírito.
Por outro lado, quando se remete
o significado dos sete cestos que sobraram (segundo episódio) para outra simbologia,
a do número sete, acentua-se a perfeição e a completude da ação de Cristo (o
milagre não deixa a obra incompleta, mas é a realização do desígnio – aqui
saciar a multidão e mostrar a força de Deus resultante da compaixão por quem
tem fome e cansaço). Mas o número sete também remete para a totalidade da
Igreja: as sete Igrejas de que fala o Livro do Apocalipse (a Igreja presente e
em diáspora); os sete selos, como a plenitude da marca e da operação de Deus,
espelhada também nos sete dias da semana; os sete espíritos (a plenitude do
Espírito, com a plenitude dos seus sete dons, o Sagrado Septenário); e os sete
diáconos, como a plenitude do serviço (cf At 6,2-6). Efetivamente, para que não
falhasse nenhum dos serviços essenciais, segundo o Livro dos Atos, foram
instituídos os diáconos em número de sete de modo a proverem eficazmente ao
serviço das mesas (e que mais tarde levariam a eucaristia os doentes e
encarcerados), enquanto os apóstolos se dedicavam à oração e à pregação. Assim,
“a palavra de Deus ia-se espalhando cada vez mais; o número dos discípulos
aumentava consideravelmente em Jerusalém (a
assembleia dos discípulos, presidida pelos apóstolos, é a Igreja) e grande
número de sacerdotes obedeciam à fé” (At 6,7). É a plenitude da graça divina
e vida da Igreja construída a partir dos sete sacramentos em torno da
Eucaristia, fonte e cume da vida cristã.
***
Há, porém, uma coisa que os
Evangelhos não especificam: o tamanho do cesto. E, não sendo essencial essa
referência, talvez seja oportuno refletir sobre a sua omissão. Se o cesto é o
instrumento de que se serve o discípulo feito apóstolo e servidor, ele tem de
ser consentâneo com o tamanho do apóstolo. Todavia, este não pode contentar-se
com o tamanho que lhe foi doado. E, sem a prosápia da rã da fábula, que pretendia
crescer até ao tamanho do boi e rebentou, o discípulo – apóstolo e servidor –
tem de tentar crescer até ao tamanho de Cristo, para que o seu cesto e o seu
serviço equivalham ao do Mestre, numa messe cada vez mais vasta.
Mas o cesto pode ser a metáfora
do próprio discípulo/apóstolo. Aí o
cesto/ discípulo/ apóstolo tem de ter um tamanho adequado à missão e ao seu contexto.
Perante o universo de pobreza, ou mesmo miséria, o servidor tem de ser eficaz
e, se necessário, pequeno com os pequenos, para não assustar e para que o
possam acompanhar progressivamente no crescimento, ou seja, o cesto aumenta à
medida da promoção, a que faz permanente apelo discreto e a que dá cada dia maior
impulso. E ante um universo de poder, o cesto há de ser tão grande que não se
torne desprezível, mas não tanto que se confunda com a arca do poder ou com o
banco da podridão da riqueza. E, se pretenderem instrumentá-lo ou colocá-lo à
margem, há de ter resposta compatível, à laia de Cristo: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para
servir e dar a sua vida como resgate em favor de muitos” (Mt 20,28); e “Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz”! (Jo
18,37).
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