segunda-feira, 4 de agosto de 2014

E ainda sobejaram doze cestos…

O padre Laureano Alves Pereira, Provincial dos Passionistas, presidiu a 3 de agosto, em Santa Maria da Feira, à celebração eucarística em que o irmão José Gregório fez a profissão perpétua.
O predito Padre Provincial, evocando o poder que lhe fora dado pela Igreja, recebeu os votos – de pobreza voluntária, castidade perpétua e obediência inteira, bem como o de testemunhar de forma intensa a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, integrado na congregação fundada por São Paulo da Cruz – emitidos pelo irmão missionário ora professo.
Apreciando gostosamente todo o ambiente de festa e fraternidade decorrente do evento religioso, em íntima consonância com a celebração da Eucaristia, não pode deixar de sublinhar-se o tocante comentário que o padre Laureano teceu aos conteúdos das leituras que enformaram a Liturgia da Palavra.
Ao referir-se ao episódio da multiplicação dos pães e dos peixes referido por São Mateus (Mt 14,13-21), não deixou de sublinhar aspetos interessantes e que entende estarem na base do milagre. Desde já, é importante desligar da linguagem do mundo hodierno, do “comprar e vender”, e passar à linguagem de Deus, do “dar e receber”. Com efeito, quando os discípulos viram que se fazia tarde e que a multidão estava faminta, sugeriram ao Mestre que a mandasse embora para que as pessoas pudessem ir às aldeias “comprar” alimento. A esta sugestão o sedutor das multidões, cujos enfermos havia curado, reagiu ensinando, “não é preciso que eles vão”, e ordenando, “dai-lhes vós mesmos de comer”.
Os discípulos começaram a hesitar, a calcular, “só temos aqui cinco pães e dois peixes”. E na perspetiva de homens aquilo não era nada para tanta gente. No entanto, Cristo não desprezou o pouco que havia: até poderia fazer milagre a partir do nada. Todavia, a sua lógica e pedagogia fazem-no partir daquilo que há disponível ao nível das coisas e das pessoas. “Trazei-mos cá”, ordenou. E os discípulos não se fizeram rogados e entregaram todo o pouco que tinham.
E foi sobre este pouco que o Senhor “ergueu os olhos ao céu, pronunciou a bênção, partiu e deu aos discípulos e estes distribuíram pela multidão”. Se compararmos com a formulação narrativa do capítulo 26 (vd Mt 26,26), veremos neste episódio uma antecipação prática da instituição da Eucaristia – o Cristo como “O Pão partido pela vida do mundo inteiro” (lema do Congresso Eucarístico Internacional de Lourdes, em 1981).
Todos comeram e ficaram saciados (alusão ao maná e codornizes, Ex 16,4-5.12-15.31, dados no deserto). Só agora com a comida e a saciedade é que muitos se dão conta do milagre, quando – reflete o orador – o milagre começa (E é espantoso!) quando as pessoas vêm e se entregam e entregam tudo o que têm para que Ele possa pronunciar a bênção e mandar repartir. É a bênção que, aliada à disponibilidade, gera a abundância e permite que, se houver partilha/distribuição, todos se alimentem em conjunto (ordenou à multidão que todos se sentassem, não andando nenhuma das pessoas a comer em seu cantinho) e fiquem saciados. É a consumação do convite formulado em Isaías no início do capítulo 55:
Atenção! Todos vós que tendes sede, vinde às águas. E os que não tendes dinheiro, vinde também, comprai, e comei. Sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem nada pagardes, vinho e leite, que são de graça. Porque gastais o vosso dinheiro naquilo que não alimenta? E o salário, produto do vosso trabalho, naquilo que não pode saciar-vos? Se me escutardes, havereis de comer do melhor e saborear iguarias deliciosas.
Prestai-me atenção e vinde a mim. Escutai-me e vivereis. Farei convosco uma aliança eterna e a promessa de David será mantida. (Is 55,1-3).
E quando referiu que, com o que sobejou, se encheram doze cestos, o presidente da celebração e condutor homilético interrogou a assembleia sobre o que significavam os doze cestos. Foi óbvia a resposta: ss doze cestos são os doze apóstolos. Sim, concordou, os doze apóstolos, a Igreja, o espaço da superabundância divina.
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Ora a sobra configurada nos doze cestos de pedaços suscita uma pequena reflexão bíblico-eclesiológica. Se o bom senso manda não estragar nada do que sobra, para que noutra ocasião ou com outras pessoas venha a servir, o facto de haver sobra – e sobra significativa – a partir do pouco que se disponibilizou, é admirável e resulta mais do milagre da divindade do que da gestão rigorosa, de que hoje se fala e que dá raia ao dobrar da esquina da primeira dificuldade.
Quanto às sobras atinentes à multiplicação dos pães e dos peixes (Mt 14,13-21; 15,32-38; Mc 6,34-44; 8,1-9; Lc 9,10-17; Jo 6,1-15), referem os estudiosos que a recolha dos restos de pão evoca um outro episódio passado no Antigo Testamento, no segundo Livro dos Reis:
Veio um homem de Baal-Salisa, que trazia ao homem de Deus, como oferta de primícias, vinte pães de cevada e trigo novo no seu saco. Disse Eliseu ao servo: “Dá-os a esses homens para que comam”. Ao que o servo respondeu: “Como poderei dar de comer a cem pessoas com isto”? Mas Eliseu insistiu: disse ele: “Dá-os a esses homens para que comam. Pois assim diz o Senhor: Comerão e ainda sobejará”. Então colocou os pães diante deles. Todos comeram e ainda sobejou, como o Senhor tinha dito. (2Rs 4,42-44).
A abundância veterotestamentária tem continuidade no Novo Testamento. Só que a deste é definitiva e suplanta infinitamente a superabundância antiga, dado que é firmada a partir da palavra e da ação da plenitude do Filho por quem tudo foi criado e por quem tudo é recriado na plenitude dos tempos (cf Gl 4,4). Por outro lado, ela está inscrita naquele desígnio que marca a vinda de Cristo ao mundo: vim para que tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10). E, se a superabundância fica associada à bênção e à disponibilidade, também fica ligada ao trabalho, à colocação dos talentos a render (vd Mt 25,14-23; Lc 19,12-19), à disponibilidade interior e exterior, ao risco, à aventura pelos outros, pelo Reino.
Mateus e Marcos referem dois episódios de multiplicação dos pães e dos peixes (Mt 14,13-21; Mc 6,34-44 – Mt 15,32-38; Mc 8,1-9), ao passo que Lucas (Lc 9,10-17) e João (Jo 6,1-15) relatam apenas um, que coincide com os primeiros relatados por Mateus e por Marcos.
No episódio narrado por Lucas e João e no primeiro narrado por Mateus e por Marcos são doze os cestos de pedaços de pão que sobram, enquanto no segundo episódio relatado por Mateus e por Marcos os cestos de pedaços que sobram são sete.
Como vimos, a assembleia litúrgica respondeu ao padre Laureano que os doze cestos significam os doze apóstolos, seguindo neste aspeto os comentadores bíblicos. Com efeito, estes remetendo o fenómeno da superabundância para as doze tribos de Israel, acentuam a continuidade da missão salvífica de Cristo prefigurada e iniciada em Israel. Porém, ao ensinarem que os doze cestos evocam o número dos doze discípulos, escolhidos por Jesus e por Ele ensinados a dar o pão da Palavra e da Eucaristia às multidões com fome, acentuam a natureza da Igreja como o Novo Israel de Deus ao serviço do povo faminto de Palavra e de Pão. Se nem só de pão vive o homem, mas da Palavra que lhe vem da boca de Deus (cf Mt 4,4), também é preciso que, de acordo com a missão da Igreja, se lhe dê de comer (cf Mt 14,16) e sobretudo que se lhe dê o Pão Vivo que desceu do Céu (cf Jo 6,35), mais do que o do alimento que desaparece (cf Jo 6,35). É também a plenitude do ciclo de vida de cada ano que retorna (12 meses, 12 signos; e 12 x 12 é o número simbólico dos redimidos – Ap 7,1-14); a síntese do divino (o três de Deus, pessoas e virtudes teologais) com o divino (as quatro virtudes cardeais). É a abundância no seu expoente máximo, os doze frutos do Espírito Santo, ou a plenitude do fruto do Espírito.
Por outro lado, quando se remete o significado dos sete cestos que sobraram (segundo episódio) para outra simbologia, a do número sete, acentua-se a perfeição e a completude da ação de Cristo (o milagre não deixa a obra incompleta, mas é a realização do desígnio – aqui saciar a multidão e mostrar a força de Deus resultante da compaixão por quem tem fome e cansaço). Mas o número sete também remete para a totalidade da Igreja: as sete Igrejas de que fala o Livro do Apocalipse (a Igreja presente e em diáspora); os sete selos, como a plenitude da marca e da operação de Deus, espelhada também nos sete dias da semana; os sete espíritos (a plenitude do Espírito, com a plenitude dos seus sete dons, o Sagrado Septenário); e os sete diáconos, como a plenitude do serviço (cf At 6,2-6). Efetivamente, para que não falhasse nenhum dos serviços essenciais, segundo o Livro dos Atos, foram instituídos os diáconos em número de sete de modo a proverem eficazmente ao serviço das mesas (e que mais tarde levariam a eucaristia os doentes e encarcerados), enquanto os apóstolos se dedicavam à oração e à pregação. Assim, “a palavra de Deus ia-se espalhando cada vez mais; o número dos discípulos aumentava consideravelmente em Jerusalém (a assembleia dos discípulos, presidida pelos apóstolos, é a Igreja) e grande número de sacerdotes obedeciam à fé” (At 6,7). É a plenitude da graça divina e vida da Igreja construída a partir dos sete sacramentos em torno da Eucaristia, fonte e cume da vida cristã.
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Há, porém, uma coisa que os Evangelhos não especificam: o tamanho do cesto. E, não sendo essencial essa referência, talvez seja oportuno refletir sobre a sua omissão. Se o cesto é o instrumento de que se serve o discípulo feito apóstolo e servidor, ele tem de ser consentâneo com o tamanho do apóstolo. Todavia, este não pode contentar-se com o tamanho que lhe foi doado. E, sem a prosápia da rã da fábula, que pretendia crescer até ao tamanho do boi e rebentou, o discípulo – apóstolo e servidor – tem de tentar crescer até ao tamanho de Cristo, para que o seu cesto e o seu serviço equivalham ao do Mestre, numa messe cada vez mais vasta.

Mas o cesto pode ser a metáfora do próprio discípulo/apóstolo.  Aí o cesto/ discípulo/ apóstolo tem de ter um tamanho adequado à missão e ao seu contexto. Perante o universo de pobreza, ou mesmo miséria, o servidor tem de ser eficaz e, se necessário, pequeno com os pequenos, para não assustar e para que o possam acompanhar progressivamente no crescimento, ou seja, o cesto aumenta à medida da promoção, a que faz permanente apelo discreto e a que dá cada dia maior impulso. E ante um universo de poder, o cesto há de ser tão grande que não se torne desprezível, mas não tanto que se confunda com a arca do poder ou com o banco da podridão da riqueza. E, se pretenderem instrumentá-lo ou colocá-lo à margem, há de ter resposta compatível, à laia de Cristo: O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate em favor de muitos (Mt 20,28); e “Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz”! (Jo 18,37).

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