segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Sobre o plano de vacinação contra a covid-19 em Portugal

 

As determinações legais e administrativas

O Despacho n.º 11737/2020, de 26 de novembro, determina a constituição duma “task force” para a elaboração do “Plano de vacinação contra a covid-19 em Portugal”, integrada por um núcleo de coordenação e por órgãos, serviços e organismos de apoio técnico e com um núcleo de coordenação presidido pelo Dr. Francisco Ventura Ramos e integrado por um elemento a indicar por cada uma das seguintes entidades: Ministério da Defesa Nacional, Ministério da Administração Interna e Direção-Geral da Saúde (DGS).

A “task force” conta com a colaboração das Forças Armadas, pois estas, como afirmou o Ministro da Defesa Nacional, “participam nesse processo de identificação de como deve ser o plano e participarão depois na execução quando houver vacinas”. E produzirá documentos que reflitam: a estratégia de vacinação, com a definição dos grupos prioritários; o plano logístico; o plano de segurança do armazenamento e distribuição das vacinas; o plano de administração das vacinas; o plano de registo e monitorização clínica da administração das vacinas; o plano de comunicação aos cidadãos; e as iniciativas normativas consideradas necessárias e adequadas.

Para lá da “task force”, está criada a Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), composta por 11 especialistas, que “têm acompanhado a evolução dos conhecimentos sobre o vírus SARS CoV-2, sobre a clínica e a epidemiologia da covid-19 e sobre as vacinas contra a covid-19 em desenvolvimento ou sobre a vacinação em geral”, como se lê no despacho da DGS. Tem como missão dar parecer técnico sobre a(s) estratégia(s) a adotar, recomendar os grupos prioritários para a vacinação e pronunciar-se sobre as vacinas que forem sendo disponibilizadas no mercado nacional e internacional.

Sem referir este grupo, a Ministra Marta Temido, explicou, em conferência de imprensa, que o plano de vacinação será revelado nesta semana, lembrando que existe uma comissão técnica nacional de vacinação, responsável pela introdução ou retirada de vacinas do Programa Nacional de Vacinação. E adiantou que o transporte das vacinas será feito pelas farmacêuticas produtoras e que ficarão todas armazenadas no mesmo local até à sua distribuição pelo país e regiões autónomas. Os peritos, que se reuniram, a 25 de novembro pela segunda vez, propõem-se acompanhar o desenvolvimento de estudos sobre a vacinação e as vacinas contra a covid-19 utilizadas no país, avaliar a necessidade de formação e metodologia na sua aplicação, bem como aconselhar medidas de exceção à vacinação em circunstâncias que se justifiquem.

Entre os especialistas estão o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, presença assídua nas reuniões do Infarmed, o imunologista Luís Graça, do Instituto Gulbenkian de Ciência, e a virologista Raquel Guiomar, responsável pelo Laboratório de Referência para o Vírus da Gripe e outros Vírus Respiratórios, do INSA (Instituto Nacional de Saúde Pública Doutor Ricardo Jorge).

A comissão é coordenada pelo médico internista Válter Bruno Ribeiro Fonseca, diretor dos serviços do DQS (Departamento da Qualidade na Saúde), da DGS. E o coordenador-adjunto é o pediatra José Gonçalo Pereira Marques, do Hospital de Santa Maria. Entre os restantes membros contam-se as farmacêuticas Diana da Silva Costa, Ema Paulino Pires e Maria de Fátima Ventura, a bióloga Teresa Alves Fernandes, a enfermeira Maria de Lurdes Silva e a médica de medicina geral e familiar Luísa Maria Rocha Vaz. Enquanto a “task force” tem a missão de operacionalizar todo o processo, a comissão decide quem as recebe primeiro e que vacinas serão dadas. De facto, será preciso operacionalizar a logística do armazenamento, distribuição e administração, bem como fazer a monitorização das pessoas que serão, entretanto, vacinadas. Será missão desta equipa garantir que estas áreas trabalharão de forma interligada.

A medida vai ao encontro do apelo feito por Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia, para os Estados-membros começarem “a preparar a logística para o lançamento de centenas de milhões de doses de vacinas”. Trata-se de milhões de seringas, da cadeia de transporte refrigerado, de centros de vacinação, de formação de profissionais.

O presidente do núcleo de coordenação da “task force” já escandalizou os decisores políticos e a opinião pública ao declarar que os idosos com mais de 75 anos, sem comorbilidades, poderiam não ser contemplados com a vacina, levando alguns especialistas a apontar que, mesmo que a evidência científica não assegure a suficiente eficácia da vacina por estas pessoas irem perdendo capacidade imunitária, ela deverá ser-lhes aplicada. E o Primeiro-Ministro já veio clamar que a vida humana não vem marcada com prazo de validade.   

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A génese e a consecução das vacinas

Segundo o JN, de 25/11/2020, uma molécula frágil, mas essencial para a vida humana, a RNA, é um corpúsculo tão fundamental que a comunidade científica crê que tenha sido responsável por dar origem à vida humana há mais de três mil milhões de anos. Fugaz na sua subsistência, é a base das duas vacinas contra a covid-19 que até ao momento apresentam maior taxa de eficácia.

No início de novembro, o mundo recebeu boas notícias sobre a covid-19. Os resultados dos ensaios clínicos de fase 3 revelaram que duas vacinas candidatas a livrar a população da pior pandemia do século XXI – a da Pfizer e a da Moderna – têm uma taxa de eficácia superior a 90%. Em adição a estas novidades, as vacinas partilham um fator em comum: são ambas feitas a partir da RNA, mais especificamente dum tipo da molécula – o RNA mensageiro (mRNA) – responsável por transmitir a mensagem da vida contida no ADN e convertê-la em todas as proteínas que nos permitem respirar, pensar, caminhar. 

Segundo o  ECDC (Centro Europeu para o Controlo e Prevenção de Doenças Contagiosas), as vacinas mRNA fornecem um código genético para as nossas células produzirem proteínas virais. Quando elas são produzidas, o corpo lança uma resposta imunológica contra o vírus, permitindo que a pessoa desenvolva a imunidade. E o mRNA pode ser usado para produzir qualquer proteína, com a vantagem de que é muito mais simples de fabricar que as proteínas, ou as versões inativadas e atenuadas dos vírus (técnica normalmente utilizada ​​em vacinas como a da influenza)

As vacinas de mRNA fornecem instruções para que as células criem um organismo inofensivo que espelha a proteína spike, a proteína usada pelo coronavírus para penetrar nas células. São administradas no músculo do braço. E o CDC (Centro de Controlo e Prevenção de Doenças) refere:

Com as instruções inscritas nas células musculares, estas produzem a proteína, desfazem as instruções e livram-se delas”.

Depois, as células exibem a proteína na sua superfície. O nosso sistema imunológico reconhece que a proteína não pertence àquele lugar e começa a construir a resposta produzindo anticorpos, como o que sucede na infeção natural contra a covid-19. No final, o corpo aprende como se proteger contra infeções futuras. E, como benefício, os vacinados de mRNA ganham a proteção imunológica sem nunca terem de correr o risco de enfrentar graves consequências que advêm de um contágio por covid-19. 

O conceito de usar o mRNA para produzir proteínas úteis para combater doenças existe há décadas. Porém, até agora, nenhuma vacina conseguiu chegar longe com essa tecnologia. Por isso, o sucesso demonstrado pelas vacinas contra a SARS-CoV-2, como diz Norbert Pardi, um especialista na vacinação por mRNA na Universidade de Pensilvânia, “é excelente para os investigadores do campo do RNA, pois, até há pouco, havia apenas um punhado de pessoas que realmente acreditavam nas vacinas de mRNA”, ao passo que “temos, agora, a oportunidade inédita de comprovar a sua utilidade numa situação pandémica desesperante” (disse ao jornal The Scientist). Contudo, apesar de ser um trabalho promissor, ainda há desafios associados ao desenvolvimento de vacinas baseadas no mRNA. Na verdade, o mRNA comum produz apenas baixos níveis de proteínas, e a molécula degrada-se rapidamente dentro do corpo para se considerar adequada como agente terapêutico. Além disso, o RNA pode desencadear uma resposta imunológica que corre o risco de ser independente da resposta à proteína que codifica. E Pardi explica este risco:

Se apenas injetarmos RNA exterior – ou seja externo àquele encontrado no organismo – em pessoas ou animais, podemos induzir uma resposta inflamatória muito grave”.

O cientista acrescenta que esta realidade acontece graças aos mecanismos de defesa dos nossos corpos contra vírus, que podem usar ADN ou RNA para armazenar as suas informações genéticas. Muito por causa destas problemáticas, a adesão a este tipo de tecnologia foi lenta e muitos cientistas optaram por se concentrar no desenvolvimento de vacinas com ADN, um trabalho mais estável e assumidamente fácil. E as autoridades científicas testaram clinicamente vacinas de mRNA para uma ampla gama de doenças infeciosas, incluindo raiva, gripe e Zika, mas, até agora, nenhum desses testes passou de pequenos ensaios clínicos de fase inicial.

A vacina AstraZeneca/Oxford, que não tem o mesmo funcionamento, foi pioneira na corrida para a cura do novo coronavírus e demonstrou ser 70,4% eficaz, podendo a taxa evoluir para os 90%. Já a vacina chamada ChAdOx1 nCoV-19 usa uma versão inofensiva e enfraquecida dum vírus comum que causa gripes em chimpanzés. Investigadores já usaram esta tecnologia para produzir vacinas contra uma série de patógenos, incluindo o vírus influenza, o Zika e a Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS). O vírus é geneticamente modificado para ser impossível de se desenvolver no organismo humano.

A AstraZeneca e a Universidade de Oxford reconheceram a existência dum erro de fabrico que está a levantar questões sobre os resultados preliminares e a eficácia da sua vacina experimental. E as autoridades britânicas anunciaram a realização dum “estudo adicional” para validar os resultados da eficácia da sua vacina contra o novo coronavírus, depois de ter revelado que houve mudanças imprevistas na dosagem no primeiro ensaio.

Acerca da distribuição das vacinas, Marques Mendes – ex-líder socialdemocrata e comentador político – no seu espaço de comentário na SIC, a 29 de novembro (vd Jornal Económico), revelou que o país receberá 6 vacinas diferentes – “cerca de 22 milhões de doses” –, embora em quantidades diferentes, da Biontech/Pfizer, da Astrazeneca/Universidade de Oxford, da Johnson&Johnson – Janssen, da Moderna, da Sanofi e da Curevac. “São, no fundo”, como disse, “aquelas com quem a União Europeia fez contratos; e, quando começarem a ser distribuídas, chegarão a Portugal exatamente ao mesmo tempo que qualquer outro país da União Europeia”. Referiu que, a partir de janeiro, o país começará a receber as primeiras doses da vacina e garantiu que “haverá vacinas para todos os portugueses” e que essa será “universal e gratuita para todos os portugueses”. Três dessas vacinas estão em avaliação por parte da EMA (Agência Europeia de Medicamentos): Pfizer, Astrazeneca e Moderna. E Marques Mendes especificou que “são diferentes no tipo de vacina, no preço e nas condições de armazenamento, mas têm de um modo geral um grau de eficácia muito acentuado, na ordem de 90%”, e salientou que a vacina da gripe tem uma eficácia “entre 40 e 45%” no atinente à covid-19.

As primeiras vacinas poderão ser aprovadas pela EMA já no mês dezembro e as primeiras doses das vacinas poderão chegar “em janeiro”, devendo a da Pfizer ser “a primeira a chegar”.

Em relação às doses a tomar, as da Pfizer, Astrazeneca e Moderna serão tomadas “em duas doses”, com intervalos “de 3 a 4 semanas” entre a 1.ª dose e a 2.ª. Já a Johnson&Johnson – Janssen deverá ser tomada “apenas numa dose”, mas a sua avaliação está ainda “atrasada”.

Segundo o comentador, a vacina, que é “universal e gratuita para todos os portugueses”, será distribuída e aplicada só no âmbito do SNS e os primeiros grupos da sociedade e profissionais a ser vacinados são, de acordo com o plano de vacinação do Governo: “idosos, residentes dos lares, profissionais dos lares, profissionais de saúde, forças de segurança e agentes de proteção civil”. Porém, ainda não há informações em relação aos idosos com mais de 75 anos, mas a vacina também é eficaz neste grupo etário.

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A propósito das prioridades no acesso à vacinação

Neste contexto, o DN, a 28 de novembro, referia que, na vacinação, a última palavra será política e que há especialistas a frisar que, mesmo na hipótese de ser menos eficaz nos mais velhos, a vacina terá sempre um efeito de atenuação da doença. E, como pensa Constantino Sakellarides, professor catedrático jubilado em Saúde Pública e ex-Diretor-Geral da Saúde, “não é uma questão puramente técnica, é também uma questão ética, social e política”. Por isso, além das pessoas entre os 50 e os 75 anos com doenças graves, os profissionais de saúde mais expostos à covid-19 e os residentes e funcionários de lares de idosos deverão ser priorizados no acesso à vacina (como quer o grupo de trabalho), também os maiores de 75 devem ser abrangidos.

O especialista assente que há conhecimento científico e técnico que pode fundamentar uma decisão destas, pois, “à medida que se envelhece, o sistema imunitário deixa de responder eficazmente à vacinação”, mas ressalva que “uma vacina, mesmo que não seja eficaz no sentido de impedir a multiplicação do vírus, pode atenuar a doença, impedindo que desenvolva formas mais graves”. Para Sakellarides, há aspetos importantes a debater, como:  

Os critérios de vacinação, quem deve ser ou não vacinado numa primeira fase, depois a posição antivacinação e como se pode convencer estes grupos da sua importância e, em terceiro lugar, toda a logística que pode fazer chegar tais vacinas a toda a gente”.

Também Filipe Froes, da comissão de peritos da OM (Ordem dos Médicos) para a Covid-19 e da CNV (Comissão Nacional de Vacinação), defende que “a ausência de evidência científica não implica não se fazer”. O pneumologista observa que se trata de vacinas que têm demonstrado eficácia da ordem dos 90% e que não faz sentido que os idosos não sejam integrados numa primeira fase da vacinação, pois “a vacina pode ser menos eficaz, mas tem alguma atuação”. E acrescenta:

Os critérios de definição para a vacinação têm de ser criteriosos e ter em perspetiva a prevenção da mortalidade, da morbilidade e a sobrecarga do Serviço Nacional de Saúde”.

Por sua vez, o imunologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Manuel Santos Rosa, ressalva que se trata dum documento preliminar, havendo informação técnica a ajustar e que o importante é “definirmos uma estratégia”. E explica que nenhum dos ensaios das vacinas para a covid-19 revelou a taxa de eficácia nas faixas etárias mais elevadas, o que pode criar a hipótese da utilização de forma pouco eficaz dum recurso que é parco. Por isso, defende que era importante poderem ser vacinadas todas as pessoas, mas quando tal não é possível “e há escolhas a fazer não é fácil e no discurso político faz ricochete”, como tem vindo a acontecer. Ademais, a distribuição alonga-se no tempo, provavelmente até setembro de 2021.

A seguir à reação de Costa, Marcelo disse que não priorizar uma faixa etária em razão da idade seria uma “ideia tonta”. E o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde garantiu que os idosos (como os doentes com comorbilidades) serão uma prioridade”. E, “se não for técnica, será política”.

Entretanto, o CDS pediu a audição de Francisco Ramos na comissão parlamentar de Saúde, considerando “muito preocupante o atraso de Portugal em todo este processo”.

Enquanto Portugal terá o seu plano de vacinação dentro de dias, a Espanha aprovou o seu a 24 de novembro, prevendo o início do processo para janeiro com prioridade para os idosos que vivem em lares e o pessoal de saúde; a Alemanha vem a preparar o processo de vacinação desde fins de outubro, com os estados regionais a definirem os locais de vacinação e dando prioridade aos cidadãos de maior risco, seja pelas condições de saúde (doentes crónicos), seja pela idade, entrando no grupo dos prioritários os sujeitos a um maior risco de exposição à covid-19, caso dos profissionais de saúde; e, em França, o plano de vacinação será apresentado nesta semana, tendo já as autoridades de saúde colocado em consulta pública um documento provisório, que aponta para a priorização do pessoal que trabalha na primeira linha de resposta à covid-19, ou seja, os indivíduos suscetíveis a manifestações mais graves da doença por força da idade e da situação de saúde e aqueles que desempenham tarefas essenciais ao país.

Por seu turno, a OMS (Organização Mundial da Saúde) defende que os trabalhadores da saúde, os idosos e outros grupos de risco sejam grupos prioritários na vacinação contra o SARS-CoV-2.

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Também os professores querem fazer parte do grupo prioritário no acesso à vacina contra a covid-19 e ser vacinados logo após os profissionais de saúde, tendo já pedido ao Governo (Ministérios da Educação e da Saúde) que os considere profissionais de risco.

A decisão foi tomada pela direção da ASPL (Associação Sindical de Professores Licenciados), segundo a qual as condições de trabalho dos professores e educadores são preocupantes, em especial por se tratar dum grupo profissional envelhecido que está em contacto direto e diário com muitas crianças e jovens. A este respeito, alerta a ASPL:

Com a impossibilidade de, na esmagadora maioria das escolas, serem respeitadas as regras de distanciamento social determinadas pelo Governo para as demais instituições, quer no que se refere à que separa aluno-aluno, quer professor-alunos, quando é do conhecimento público o número crescente de casos de infetados com covid-19, os professores e educadores estão particularmente expostos”.

Lembra a ASPL as inúmeras situações em que os alunos são mandados para casa devido ao aparecimento dum caso positivo, mas os “seus professores e educadores continuam na escola, a lecionar às outras turmas que constam do seu horário de trabalho” – casos que têm sido denunciados pela associação, que tem enviado ofícios aos Ministérios da Educação e Saúde, bem como ao Primeiro-Ministro, e apresentou queixa à Provedoria de Justiça. Assim, face a estas situações que se vivem nas escolas, a ASPL entende ser de “elementar justiça” considerar os professores e educadores profissionais grupo de risco e devendo, por isso, ser vacinados logo que o plano de vacinação contra a covid-19 seja acionado, depois dos profissionais de saúde.

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Concluindo

É bom que a vacina abranja a tempo e horas todos os grupos de riscos e sem estarmos à espera de todas as evidências científicas. Para tanto, requer-se vontade política, atenção e organização.

2020.11.30 – Louro de Carvalho

Profissionais sensíveis, que se dedicam aos doentes, bom augúrio de Natal

 

É o positivo toque que Paulo Teixeira, capelão do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, uma das unidades de saúde mais pressionadas pela covid-19 em Portugal, releva em entrevista à Renascença e à Ecclesia, publicada a 29 de novembro.

O sacerdote, que diz assistir todos os dias ao chamamento de familiares para que se possam despedir dos doentes, faz duas pertinentes asserções: ninguém morre sozinho no hospital e “ninguém foi posto à porta de casa ou na rua” por falta de camas na sequência da pandemia, porquanto o hospital “sempre foi encontrando uma solução para aquelas pessoas que estão abandonadas pela própria família”.

Questionado se a pandemia o obrigou a repartição de atenções mais equilibrada entre doentes e profissionais de saúde, assegurou que, embora o ritmo seja “o de sempre”, a pandemia levou a “uma atenção redobrada”, pela condição de todos estarmos sujeitos à contração de covid-19 e de, consequentemente, sermos seus transmissores. Não obstante, ainda que com redobrados cuidados, a preocupação no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa no Hospital acaba por ser a mesma, sem diferença significativa no número de acompanhamentos e pedidos, todos os dias, da parte de doentes e profissionais.

É verdade que, pela grande pressão da pandemia, “algumas pessoas não têm o à-vontade para pedir a nossa intervenção”, até por estarem assoberbadas com os problemas. Com efeito, a covid-19 cria-nos preocupação, visto que ecoa na comunicação social ficando todos a saber o que pode provocar. Assim, o ambiente de receio leva a que profissionais e doentes internados nem sequer equacionem a possibilidade de pedir o Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa.

O entrevistado confessa não saber dar resposta completa à pergunta que lhe fizeram quanto à perceção da importância da dimensão espiritual e religiosa neste contexto de calamidade, por não sabermos “em que momento da pandemia estamos”. Porém, revela que o seu trabalho tem agora “um maior número de horas”, não por haver descoordenação, que não há, mas por haver “uma maior carga de trabalhos”, já que “a procura que as pessoas fazem deste Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa não é, muitas vezes, nos horários habituais, como eram anteriores à pandemia”, mas num horário “mais de acordo com as necessidades que surgem naquele momento”. Efetivamente, tendo os profissionais “uma carga de trabalho maior”, “não podem pedir ajuda e achar que precisam de ser acompanhados”, bem como os doentes ao estarem envolvidos por cuidados necessariamente mais assíduos.

Sobre um eventual prejuízo da proximidade e afeto com os doentes, mercê do risco de infeção, o Padre Teixeira frisa que agora os afetos, no ambiente hospitalar, “são muito provocados pelo olhar”, sendo que, “a certa altura, já não nos lembramos da parte de baixo do rosto dos profissionais e dos doentes”. E explicita:

Confesso em público que, de vez em quando, já me custa recordar a parte de baixo do rosto das pessoas. O que eu fixo, trabalho e me dá alento para fazer o trabalho todos os dias são os olhos das pessoas. Pelo olhar e a forma como as pessoas nos olham e nos cumprimentam com os olhos…”.

Confrontado com a asserção de que “os olhos não mentem”, confirma e reconhece que, embora haja “mentirosos compulsivos”, não há ninguém que consiga entrar por esse caminho na questão do olhar e da alma, pelo que “o olhar é o que mais nos prende no contacto e na relação direta”. De facto, não há máscaras para os olhos e “temos esse canal sempre aberto”. Por isso, há que olhar e ver – digo eu.

O sacerdote não se furtou a responder a um tema delicado, a limitação (vulgo “proibição”) das visitas aos doentes por via da covid-19 e, consequentemente, ao tema da limitação do acompanhamento aos outros doentes e aos familiares no momento da perda.

Considerando a delicadeza da questão, esclarece que “as visitas estão limitadas”, mas “não estão proibidas”, sendo que “a comunicação social tem dito o que lhe é pedido para dizer”. Assim, regra geral, “os doentes não devem ser visitados” por via do risco de contágio. Porém, “quando o doente está internado há um tempo demasiado longo e isso pode trazer para o próprio doente uma carga psicológica muito grande que o diminua – e os profissionais estão sempre atentos a isso – claro que as visitas são permitidas”. Obviamente não pode vir a família toda, mas uma pessoa de cada vez. E, tendo ouvido dizer, desde o início, que não havia visitas às pessoas covid-19 e que morriam sozinhas, o capelão garante que “isso não é verdade” no Hospital de São João. Mais diz que assiste “todos os dias ao chamamento dos familiares para se apresentarem nas enfermarias onde estão esses doentes para que as famílias se possam despedir e estabelecer comunicação, quando há essa possibilidade”. Não podem ser diárias essas visitas nem podem ser “por um tempo muito alargado”, mas acontecem. Não há um acompanhamento das famílias aos seus familiares como dantes, mas “existe um acompanhamento e a visita”.

Advertindo que isso postula especial sensibilidade do profissional de saúde para saber o momento em que o doente está a precisar da visita e sem que esbarre na azáfama do seu trabalho diário que é de cuidar da saúde, o Padre Teixeira afirma que, antes de mais, “junto dos doentes estão os profissionais” e são eles quem melhor conhece o seu estado de espírito e de saúde. Ora, juntando a sensibilidade de cada um, consegue-se “entre todos avaliar essa situação”. E, não sendo parco em elogios ao pessoal que trabalha naquele centro hospitalar, discorre com justeza:

Temos um corpo de profissionais de altíssimo calibre! São profissionais inteiros, que não usam apenas a sua arte da medicina, da enfermagem, do auxílio que é preciso nas artes médicas e enfermagem, mas procuram pôr a sua sensibilidade pessoal. Nós temos pessoas que são muito bem formadas, em todas as áreas. A área da humanidade, o que a pessoa pode fazer em prol do próximo, está presente em quase todos os profissionais da nossa casa: a sensibilidade para o cuidado generoso e direto do próximo está presente em quase todos os profissionais da nossa casa.”.

E afirma categoricamente que, nos 8 mil profissionais que ali trabalham, a que se vão juntando alguns de novo, nomeadamente médicos, a sensibilidade que manifestam “é o garante para que possam, no momento certo, fazer que aconteça a visita e a pessoa não se sinta diminuída e a visita possa reabilitá-la”.

Contrapondo o seu ponto de vista à recente afirmação da Ministra da Saúde de que “a situação é grave nos cuidados intensivos e que dezembro vai ser difícil”, assegura que todos os profissionais do Hospital de São João têm, para lá do cansaço, “a capacidade de renovação, de dar mais um pouco, de estar inteiramente ao serviço mesmo para lá dos seus interesses e necessidades pessoais”. E, em jeito de testemunho pessoal, confessa que tem verificado, ao logo destes anos, que alguns profissionais, mesmo já em estado de cansaço notório, “conseguem ainda dar mais um turno”, porque um colega teve de assistir a um familiar, ficou infetado, ficou doente; e conseguem, contra toda a esperança, “atender mais um pouco”.

Afasta liminarmente a ideia de que, por ser o capelão, esteja a “tentar meter alguma água na fervura” e assegura que está a dizer aquilo que vê, o que “é uma dedicação extrema”.

Mais entende que, vindo daqui a pouco a ocorrer mais situações, “o hospital, até na sua estrutura, na sua administração e gestão humana, vai conseguir abrir portas e janelas para que se possa atender a todas as pessoas”. Admite que “a casa está preenchida e dificilmente nós encontramos uma cama vazia neste período”, mas contrapõe que “as pessoas que estão a recorrer ao Hospital de São João nunca são mandadas embora”.

Em abono do que assegura, evoca a experiência do passado:

Até ao dia de hoje, nunca aconteceu isso e, portanto, há sempre mais um espaço e eu tenho assistido a que o hospital procura sempre alargar os espaços de cuidados intensivos e outros cuidados e com esse alargamento vai conseguindo acolher a todas as pessoas”.

Atreve-se a comparar a situação daquele centro hospitalar com a mesa de Deus: cabe sempre mais um.  

Interpelado sobre a transversalidade do abandono de doentes em contexto hospitalar e a pressão que aumenta nos hospitais por causa da necessidade de todas as camas, responde sem que persistam dúvidas sobre os factos, ainda que não se fique a perceber o modo como se encontram as soluções, a não o ser o exemplo que deu do recurso ao Centro de Reabilitação do Polo de Valongo, polo que integra o Centro Hospitalar Universitário de São João. Diz que não faz parte da assistência social do hospital, mas que se apercebe das soluções que se vão encontrando e concretizando. Assim, tem visto que às pessoas que dizem que são abandonadas – colocadas no hospital e esquecidas pela família – o hospital tem dado resposta a todas, de modo que, até agora, “ninguém foi posto à porta de casa ou na rua, porque sempre foi encontrada uma solução para aquelas pessoas que estão abandonadas pela própria família”. E crê que isso será sempre uma prioridade do hospital”.

Não escamoteia os casos dos doentes que estão demasiado tempo no hospital abandonados pelas famílias, referindo que já acompanhou vários que estiveram nessa situação. E aponta dois tipos de casos: as pessoas deixadas no hospital, que ficam muito tristes porque o filho, o neto ou a neta nunca mais quiseram saber delas; e as pessoas – e são-no em maior número – que, depois de cuidadas da doença, querem ficar no hospital, por lhes custar “sair daquela enfermaria” ou “sair do convívio com aqueles profissionais, com quem estiveram durante tanto tempo”.

E anota que os casos de sério abandono já o eram antes de as pessoas virem para o hospital, ao passo que no hospital se sentem acolhidas, com refeições a horas certas e banho todos os dias, assim como algum, mimo às vezes…, em ambiente de cuidado familiar.

Por fim, o sacerdote, porque a entrevista viria a lume no 1.º domingo do Advento, é questionado sobre a preparação do Natal face à incerteza do momento. A isto responde que “o Natal existe já há 2000 anos” e que, sendo o nascimento de Jesus também para hoje, nós somos, no dizer do Cardeal Tolentino Mendonça, “a manjedoura onde Jesus deve nascer”. Assim, “o Natal não é”, como se diz, “quando um homem quiser”, mas “quando a manjedoura estiver preparada” – manjedoura que é a nossa vida, o nosso coração, o centro da nossa existência.

A pandemia leva a muitas restrições, que não devem retirar-nos do sentido do verdadeiro Natal.

É certo que o convívio será diminuído mercê das regras sanitárias propostas pela DGS, mas “o verdadeiro Natal nunca nos será retirado”, só dependendo de cada um saber e quer trilhar o caminho, pelo que tem de “ficar na escuta e à espera” para que “a manjedoura da sua própria vida possa devidamente ser habitada”, mas não por bens materiais, por coisas que nos afagam a sede de bens materiais, mas por bens “que nos preenchem a partir de dentro para conseguirmos ser verdadeiros filhos de Deus” numa escuta permanente do que “Deus tem para nos dizer”.

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Haja quem diga bem dos hospitais! Faça-se e celebre-se o verdadeiro Natal!

2020.11.30 – Louro de Carvalho

domingo, 29 de novembro de 2020

Que o Senhor venha para nós e que nós nos deixemos modelar por Ele

 

O 1.º domingo do Advento inaugura o Ano Litúrgico, ou seja, um quadro de 365 dias dividido em ciclos litúrgicos (Natal, Páscoa, Tempo Comum e Santoral) em que se celebra o mistério de Cristo, a Virgem Maria, os Anjos e os Santos através das celebrações litúrgicas do Povo de Deus (solenidades, festas e memórias), sobretudo pelo Sacrifício/Banquete Eucarístico e Liturgia das Horas.

Sobre o sentido do Advento (latim: adventus) – Vinda (de Deus até nós) –, a CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) produziu, a 22 de novembro, uma mensagem em que valoriza o Deus que vem, saúda desejando-nos a paz e o bom dia, fala, escuta, chama, responde, ordena e envia. Por outro lado, constitui o apelo a que respondamos Àquele que vem e chama, saindo da nossa zona de conforto para irmos ao seu encontro e declarar que aceitamos a vinda daquele que Se confunde com os pequeninos e está entre nós, que sofremos de anemia e estamos assolados pela pandemia. E nós acalentamos a esperança de que Ele, tendo compaixão (éleos) de nós, como teve do povo oprimido no Egito, nos acompanhará e ajudará a sair do beco que parece não ter saída.

E, se o Advento com odor de Natal começa liturgicamente com a prece do Salmo 25, “Para Ti, Senhor, elevo a minha alma(da antífona de entrada da Missa), apontando a atitude de oblação permanente e oração constante a assumir pela assembleia fiel e orante, a Liturgia da Palavra deste 1.º domingo do Advento no Ano B irrompe com a oração do Profeta Isaías (Is 63,16b-17.19b; 64,2b-7), inserida no Tritoisaías (caps. 56-66), isto é, num conjunto de textos pós-exílicos redigidos ao longo dum arco de tempo relativamente longo (provavelmente, entre os séculos VI e V a.C.).    

O profeta dirige efetivamente ao Senhor uma oração em que invoca Deus como pai (patêr) e como redentor (lytrôtês). O título “pai” (herdado das culturas cananeias, cujo deus principal é pai porque exerce a função de proteção e de senhorio) resulta da ação protetora e salvadora de Deus em prol do seu Povo ao longo da história. O título “redentor” era, no direito israelita, reservado ao parente próximo, a quem incumbe o dever de defender os seus e manter o património familiar (cf Lv 25,23-25), de libertar o familiar caído na escravidão (cf Lv 25,26-49), de proteger viúva (cf Rt 4,5) e de vingar o parente assassinado (cf Nm 25,18-19). Com estes títulos, lembra-se a Deus a sua responsabilidade de protetor, defensor e salvador do Povo.

Assim, o profeta pretende que Deus, pai e redentor, não deixe que o Povo endureça o coração e se a afaste dos caminhos da Aliança. E, porque aquela geração, não reconhecendo culpa alguma, vive instalada no pecado, na infidelidade, na injustiça, na indiferença face a Deus o profeta como que força a intervenção libertadora de Deus, de modo que se altere esta lógica geracional e Israel se volte decisivamente para Deus e trilhe as rotas de salvação e de vida.

Apesar de convicto da possibilidade dessa dinâmica, o profeta tem a noção de que o Povo é incapaz de sair, por si só, da rotina de rebeldia e infidelidade em que tem vivido. Por isso, urge que Deus, assumindo o múnus de Pai e redentor, Se digne “descer” para transformar o coração do Povo. É a memória histórica que fundamenta a esperança: se Deus sempre foi o pai e o redentor de Israel, há de voltar a sê-lo de novo, na atual situação dramática, que assim o exige.

E o texto termina com um discurso genesíaco: Deus é o oleiro e o seu Povo é o barro que o artista modela com amor e cuidado – imagem que define o poder amoroso de Deus que pode modelar o seu Povo como Lhe aprouver e que alude ao que o profeta espera de Deus: uma nova criação. A imagem leva-nos à criação do homem a partir do barro da terra (cf Gn 2,7), pelo que o profeta sugere que a intervenção de Deus no sentido de mudar o coração do Povo, fazendo que ele deixe os caminhos do egoísmo e da autossuficiência e volte para os caminhos de Deus e da Aliança é uma nova criação, de que nascerá uma humanidade nova. É o prenúncio do que Jesus, o Verbo incarnado há de fazer quando chegar a plenitude dos tempos, que já chegou!

Para Dom António Couto, Bispo de Lamego, Isaías serve-nos o mais poderoso Salmo de lamentação popular da Bíblia, nas palavras de Claus Westermann, pois nele confessamos a nossa rebeldia e fugacidade e invocamos o amor paternal, criador e redentor de Deus, para que venha em auxílio da nossa fraqueza. Em resposta, Deus, nosso Pai, por nós, rasgou mesmo os céus e veio ter connosco.

A passagem do Evangelho assumida na Liturgia da Palavras (Mc 13,33-37) põe-nos em Jerusalém, pouco antes da Paixão e Morte de Jesus, no terceiro dia da estada de Jesus em Jerusalém, o dia dos ensinamentos e das polémicas mais radicais com os líderes judaicos. No final do dia, já no Jardim das Oliveiras, Jesus oferece a um grupo de discípulos um ensinamento amplo e enigmático, que ficou conhecido como o “discurso escatológico” – um discurso em linguagem profético-apocalíptica, que descreve a missão da comunidade cristã no período que vai da morte de Jesus até ao final da história, constituindo uma leitura profética da história humana para dar aos discípulos indicações acerca da atitude a tomar face às vicissitudes que marcarão a caminhada histórica da comunidade até à vinda final de Jesus para instaurar, em definitivo, o novo céu e a nova terra.

Os 4 discípulos referenciados no início do “discurso escatológico(Pedro, Tiago, João e André), representam a comunidade cristã de todos os tempos, são os primeiros discípulos chamados por Jesus (cf Mc 1,16-20), que se convertem em representantes de todos os futuros discípulos. Assim, o discurso não será uma mensagem privada destinada a um grupo especial, mas uma mensagem destinada a toda a comunidade crente, chamada a caminhar na história, com esperança ativa e com os olhos postos no encontro final com Jesus e com o Pai. A missão que Jesus, consciente de ter chegado a hora de partir ao encontro do Pai, confia à sua comunidade não é fácil, pois os discípulos enfrentarão as dificuldades, as perseguições e as tentações que o mundo vai colocar na sua rota, precisando a comunidade em marcha de estímulo e alento. Por isso, vem o apelo à fidelidade, à coragem, à vigilância, pois, no horizonte último da caminhada da comunidade, Jesus coloca o final da história humana e o reencontro definitivo dos discípulos com Jesus.

O “discurso escatológico” divide-se em três partes, antecedidas duma introdução (cf Mc 13,1-4). Na 1.ª parte (cf Mc 13,5-23), anunciam-se vicissitudes que marcarão a história e que requerem dos discípulos a atitude adequada da vigilância e lucidez. Na 2.ª parte (cf. Mc 13,24-27), anuncia-se a vinda definitiva do Filho do Homem e o nascimento dum mundo novo a partir das ruínas do mundo velho. E, na 3.ª parte (cf Mc 13,28-37), foca-se a incerteza quanto ao tempo histórico dos eventos anunciados e insiste-se com os discípulos para que estejam sempre vigilantes e preparados para acolher o Senhor que vem.

O trecho desta dominga, inserto na 3.ª parte, refere-se ao final dos tempos e à atitude que os discípulos devem ter face a esse com Jesus, não para informar do “como” e do “quando”, mas formar os discípulos e torná-los capazes de enfrentar a história com determinação e esperança; e, tendo começado com a parábola do homem que partiu em viagem, distribuiu tarefas aos servos e mandou ao porteiro que vigiasse (cf Mc 13,33-34), termina a admoestar os discípulos acerca da atitude correta de espera pelo Senhor (cf Mc 13,35-37).

O texto está atravessado pelo verbo “vigiar”, usado 4 vezes (Mc 13,33.34.35.37), em imperativo: uma vez agrypneîte (agr-, negação, e hypnóô, dormir) (v. 33), e 3 vezes grêgoreîte, vigiar (Mc 34.35.37). No Getsémani, Jesus clarificará em que consiste esta “vigilância”, dizendo: “vigiai e orai” (Mc 14,28: grêgoreîte kaì proseúkhesthe). Na verdade, é preciso manter sempre o coração sintonizado com o coração de Deus, pelo que as vigílias da noite são enunciadas no v. 35: ao anoitecer, à meia-noite, ao cantar do galo (pelas 3 horas) e às matinas (6 horas). E a frase imperativa “estai atentos” (blépete) emerge 4 vezes no capítulo 13 de Marcos (Mc 13,5.9.23.33), em que Jesus fala aos discípulos preditos 4 discípulos.

A parábola contada por Jesus era dirigida aos discípulos a recordar-lhes o dever de guardar e fazer frutificar os tesouros do Reino que lhes confiou antes de partir para o Pai.

O dono da casa da parábola é Jesus, que, ao voltar para junto do Pai, confiou aos discípulos a tarefa de construir o Reino e de tornar realidade um mundo construído de acordo com os valores do Reino. Por conseguinte, os discípulos não podem cruzar os braços, à espera de que o Senhor venha; têm, antes, de concretizar, mesmo em condições adversas, a missão que Jesus lhes confiou. Assim, esta espera, vivida no tempo da história, não é a espera passiva de quem deixa passar o tempo até que chegue um final anunciado, mas uma espera ativa, radicada na fé que, implicando um compromisso efetivo com a construção de um mundo mais humano, mais fraterno, mais justo, mais evangélico, configura a esperança de quem peregrina na força da caridade interpessoal e comunitária que o amor de Deus nos imprime.

O porteiro (thyrôrós) que tem a especial tarefa de vigilância (v. 34) é, na ótica de Marcos, todo o que tenha especial responsabilidade na comunidade cristã, a de impedir que a comunidade seja invadida por valores estranhos ao Evangelho e à dinâmica do Reino. É uma figura que se adequa, especialmente, aos responsáveis da comunidade cristã, aos quais incumbe a vigilância e a animação da comunidade e que devem ajudar a comunidade a discernir permanentemente, ante os valores do mundo, o que a comunidade pode ou não aceitar para viver na fidelidade ativa a Jesus e às suas propostas.

Obviamente, todos – porteiro e demais servos do Senhor – devem estar vigilantes e ativos, a inspirar confiança e segurança, a dar paz, a irradiar alegria. Sendo “vigilância” a palavra-chave do Evangelho desta dominga, é de ter em conta que “vigilância” não significa viver à margem da história, no angelismo alienante, sem o compromisso de não se sujar com as realidades do mundo e procurando manter a alma pura e sem mancha para que o Senhor, quando chegar, nos encontre sem pecados graves; será, antes viver o quotidiano no compromisso com a construção do Reino, desempenhando fielmente as tarefas que o Senhor nos confiou.

Como dizia João Paulo Silva, sacerdote passionista, “vigiar” não significa apenas estar acordado e ver, mas estar ativo e cuidar daqueles por quem estamos acordados, amá-los, prestar-lhes atenção, dar-lhes carinho, acompanhá-los, apoiá-los.  

O texto assegura aos discípulos, em caminhada pelo mundo, que o objetivo final da história é o encontro com Jesus, encontro definitivo e libertador. E, ainda que tudo pareça ruir, os discípulos são instados a não perder a esperança e a ver, para lá das estruturas velhas que vão caindo, a realidade do mundo novo a nascer. Por isso, enquanto esperam que irrompa o mundo novo prometido, devem contribuir, corajosa e perseverantemente, para a edificação do Reino, sendo testemunhas e arautos da paz, da justiça, do amor, do perdão, da fraternidade, cumprindo deste modo a missão que Jesus lhes confiou. Efetivamente, “vigiar”, em sentido evangélico, implica fazer da vida oração, vida em ascensão permanente, sacrifício de suave odor, incenso puro subindo para o nosso Deus.

E o Evangelho diz com a energia e alegria: “Estai atentos”, “vigiai”, pois “não sabeis quando virá o dono da casa” (Mc 13,33-37). Na verdade, é como um homem que partiu de viagem (Mc 13,34); e tudo o que possuímos foi dele que o recebemos (Mc 13,34). Então, cabeça erguida, rosto volvido para Deus serão os gestos do justo justificado por Deus (cf Jb 22,26).

Com o vigor que lhe é reconhecido, diz-nos Paulo que “passa, na verdade, a figura (tò schêma) deste mundo” (toû kósmou toútou) (1Cor 7,31). Por isso, ficamos a saber que a realidade deste mundo é penúltima, não Última. Porém, há uma realidade que não passa: a palavra de Jesus (Mc 13,31). Sobressai, pois, esta como a âncora a que nos devemos agarrar. E o Evangelho de hoje termina com Jesus a dizer: “O que vos digo a vós, digo-o a todos!”. Cá está: também é para nós!

Ora, Paulo, a abrir a 1.ª Carta aos Coríntios (1,3-9), assumido com 2.ª leitura desta dominga, saúda-nos com a Graça para vós e a Paz de Deus, nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo (kháris hymîn kaì eirênê apò Theoû patròs kaì Kyríou Iêsoû Khristoû), e maravilhosamente clama: “Dou graças ao meu Deus por vós em todo o tempo” (v. 4) pelas inumeráveis bênçãos com que Deus nos tem enriquecido em Cristo Jesus, o único Senhor da vida. E o excerto fecha com a indicação de que Deus nos chamou, não a uma coisa qualquer, nem só a participar na alegria do Messias, como dizem de Abraão os rabinos, mas a participar na comunhão pessoal com o seu Filho, Jesus Cristo (v. 9).

Nesta “ação de graças” (texto carregado de densidade teológica), há dois elementos relevantes: os dons que a comunidade recebeu de Deus; e a finalidade do chamamento dos coríntios.

É a primeira vez que, nos escritos paulinos, aparece o termo “carisma” (v. 7: kharísma) – que define os dons que resultam da generosidade divina, derramados sobre determinadas pessoas para o bem da comunidade. Assim, é bom que a comunidade coríntia, amada por Deus, tenha consciência da liberalidade divina e saiba dar graças.

Os carismas aqui referidos são a “palavra” (lógos) e o “conhecimento” (gnôsis) como principais componentes da riqueza que Deus concedeu aos coríntios e temas muito importantes na cultura grega, aqui apresentados como dons de Deus. Paulo procura, pois, animar a intensa procura de “sabedoria” (sophía) dos coríntios, mas dando-lhe significado e um enquadramento cristão. E vai desenvolver a questão nos capítulos seguintes avisando, contudo, de que a “sabedoria” de Deus nem sempre coincide com a “sabedoria” dos homens.

Por outro lado, Paulo manifesta a convicção de que os “carismas” com que Deus cumulou os coríntios são destinados a construir uma comunidade orientada para Jesus Cristo, capaz de viver de forma irrepreensível o compromisso com o Evangelho até ao dia do encontro final com Cristo. É para esse encontro definitivo de total e eterna comunhão com Deus que a comunidade deve caminhar, guiada pelo Espírito Santo, animada por Cristo e sustentada com os dons do Pai.

***

Enfim, se queremos que Deus Se volte para nós e venha ter connosco, devemos também voltarmos para Ele e ir ao seu encontro; se queremos que Ele seja o nosso oleiro-criador, teremos de O acolher na alegria de nos deixarmos moldar por Ele.

2020.11.29 – Louro de Carvalho

sábado, 28 de novembro de 2020

A longevidade da vida do homem e de outros animais

 

A duração de vida está longe de ser igual e mesmo aproximada nas diversas espécies animais. Muitíssimos vivem menos que o ser humano, enquanto alguns vivem muito mais.

A este respeito, o “Observador” publicava, a 3 de abril de 2017, um artigo sob o título “Porque é que alguns animais vivem tanto tempo?”, em que afirma que “a longevidade de alguns animais sempre foi uma incógnita aos olhos dos cientistas”. Se uns vivem séculos, como o molusco ming (o animal mais antigo do mundo encontrado vivo) ou o tubarão-da-gronelândia, outros vivem meses, semanas ou até dias. E a BBC referia que, segundo os especialistas, um aprofundado conhecimento das razões da longevidade animal nos dá a possibilidade de entender melhor os animais, bem como a espécie humana.

Uma das ideias mais conexas com o tempo de vida animal “é a taxa metabólica ou a velocidade das reações químicas que transformam os alimentos em energia e produzem os componentes necessários para as células”. Diversas investigações levaram a estabelecer um mecanismo para apoiar o que ficou conhecido como a teoria da taxa de vida, que defendia que quanto mais rápido for o metabolismo dum organismo vivo, menor será a sua vida útil. Porém, embora os mamíferos tenham taxas metabólicas mais lentas e vivam mais tempo, a comunidade científica abandonou a teoria, pois os investigadores vêm apontando que muitas aves vivem muito mais tempo do que o devido em razão das suas taxas metabólicas.

Assim, John Speakman, cientista da Universidade de Aberdeen (Reino Unido) não vê conexão entre metabolismos mais lentos e maiores tempos de vida dos animais, pois as evidências que justificavam a teoria da taxa de vida “provêm de estudos que comparam animais com diferentes pesos e tamanhos”. E o investigador, que levou a cabo um estudo em que analisou 239 espécies de mamíferos e 164 espécies de aves diferentes, mas sem contar com a massa corporal de cada um, salientou que “para ambos – mamíferos e aves –, uma vez que a massa corporal foi removida, a relação entre a taxa metabólica e a duração de vida foi zero”.

Numa segunda tentativa e em busca de mais esclarecedores resultados, Speakman comparou ainda o gasto de energia diária e o tempo de vida de 28 espécies de mamíferos e 44 espécies de aves, retirando a massa corporal de cada um, e concluiu que há “uma relação entre eles, mas é o oposto àquilo que se previa a partir da teoria da taxa viva” e que, nos mamíferos, os que têm taxas metabólicas mais rápidas são os que vivem mais tempo, ao passo que, nas aves, não foram registados dados significativos.

Com a descoberta do molusco ming em 2006, acreditou-se que a longevidade estaria relacionada com o baixo consumo de oxigénio. Mas a ideia foi rapidamente ultrapassada, mercê dos vários estudos que analisaram as mitocôndrias, uma parte das células que gera energia.

Outro dos fatores a ter em conta foi o tamanho do corpo dos animais de grande porte. João Pedro Magalhães, da Universidade de Liverpool (Reino Unido) comparou a massa corporal com o tempo de vida útil de mais de 1.400 espécies de mamíferos, aves, anfíbios e répteis, vindo a concluir que 63% da variação do tempo médio de vida tinha a ver com a quantidade de massa corporal e que isso se devia, principalmente, a fatores ecológicos e evolutivos. E explicou:

O tamanho do corpo é um grande determinante de oportunidades ecológicas. Animais menores têm mais predadores e têm de crescer mais rápido, bem como reproduzir mais cedo, se quiserem realmente transmitir os seus genes. Os animais maiores, como os elefantes e as baleias, são menos propensos a ser comidos por predadores e não têm a pressão evolutiva para amadurecer e reproduzir numa idade ainda precoce.”.

Para lá do tamanho do corpo e das oportunidades ecológicas, há outros fatores a considerar em relação às expectativas de vida animal, por exemplo, o tamanho do cérebro e o do globo ocular, que se têm vindo a relacionar com o tempo máximo de vida das espécies, sobretudo nos primatas. Todavia, Speakman disse:

Se temos alguma coisa que muda consoante o crescimento do tamanho do corpo, é como se estivesse relacionada com a vida, simplesmente porque não há qualquer relação entre o tamanho do corpo e o tempo de vida útil”.

Sem pistas que relacionem o tamanho do corpo com a longevidade, os investigadores voltam-se para os ambientes onde cada espécie se insere e a sua temperatura corporal. Assim, o jornalista Steven Austad observou que não é coincidência o facto de o molusco ming e o tubarão-da-gronelândia serem os seres vivos mais antigos. E justificou:

A maioria dos animais que vive durante muito tempo tem uma temperatura corporal baixa ou vive num ambiente de baixas temperaturas”.

Com o passar dos anos, outras pesquisas e investigações tentaram comprovar quais os grandes responsáveis pela longevidade de algumas espécies. Porém, não se conseguiu chegar a nenhuma conclusão e João Pedro Magalhães garantiu que “há muito trabalho a fazer” para haver dados consensuais acerca das expectativas de vida e do envelhecimento dos animais.

***

Ao invés, a 7 de fevereiro de 2018, na revista “Mais Guimarães”, a médica veterinária Ana Vidal Pinheiro, no pressuposto de que alguns animais vivem bastante menos que o ser humano, perguntava “por que razão um cão vive menos tempo que nós” – resposta que se sintetiza aqui.  

A este respeito, admitindo que a validade de várias respostas – desde a elevada taxa de reprodução, um maior número de crias por parto, um menor avanço científico na medicina veterinária, entre outras razões – centrava e desenvolvia uma resposta baseada no facto de “os animais já nascerem a saber viver”.

Aduzindo que os seres humanos vivem permanentemente presos ao passado e ansiosos pelo futuro quando está nas “nossas mãos” a escolha de viver o “agora”, advertia que “não nos é possível alterar o que já foi nem prever o que virá”, pelo que se afigura ilógico “vivermos entre ‘dois tempos’ onde o nosso poder de controlo é literalmente inexistente”. Não obstante, são de ter em consideração aspetos interessantes no contraste entre o homem e os outros animais. Ao contrário destes, o ser humano valoriza em demasia a opinião dos outros e baseia a vida nas expectativas quando deveria olhar para dentro e viver realizado com as suas escolhas; deixa de se relacionar com pessoas que admira por receio de se magoar, não se abrindo a novos mundos devido à fobia estranha pelo desconhecido; quer permanecer dentro da sua zona de conforto mesmo a saber que isso não lhe permitirá crescer; vincula-se aos seus desejos como se fossem necessidades quando, na realidade, as verdadeiras necessidades se traduzem em alimentação e abrigo; e queixa-se da falta de tempo, mas está convencido que este nunca terminará.

Ao invés do ser humano, o cão vive no “agora” e não assombrado pelo passado, frustrado com as suas falhas e muito menos ansioso pelo amanhã. Os seus propósitos de vida são mais simples que os nossos. Sente-se bem desde que consiga colmatar as suas necessidades básicas. Nada mais exige que a comida e um local confortável onde possa pernoitar.

No contacto diário com este ser, percebe-se a grande simplicidade e a forma descomplicada com que lida com diversas situações: não se preocupa com o que levamos vestido, com a nossa beleza ou feiura e com o tipo de automóvel que temos; olha para dentro de nós tentando intuir as nossas intenções e se somos bons seres humanos; e apresenta-se sem julgamento e preconceito. E, se lhe permitimos, recebemos afeição ilimitada e lealdade inquebrável; entrega-se de corpo e alma, sem medos; domina a arte de saber dar sem a intenção de receber, de relativizar os seus momentos menos bons, de perdoar a nossa ignorância e de nos ensinar a deixar o que já não nos faz falta; e ensina-nos o significado do desapego e da afeição incondicional. Enfim, “já nasce a saber viver”.

Em contraste, nós perdemos oportunidades de crescer como seres humanos por acharmos que viveremos sempre. Ora, se tivermos sempre presente a nossa morte, disfrutaremos dos pequenos prazeres da vida e relativizaremos os problemas; e, se aplicarmos diariamente a descomplicada “vida de cão”, valorizaremos o nosso dia como se fosse o último. Talvez assim vivamos menos tempo, mas indiscutivelmente vivê-lo-emos com mais felicidade, com mais tolerância e com menos exigências à vida. Aceitando-nos como somos, sem nada mais exigir, seremos mais “animais” e, podendo viver “menos” tempo, teremos melhor qualidade de vida.

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A este propósito, recolhi da página do Facebook da minha antiga aluna Manuela Rodrigues, a história contada por um veterinário que também se questionava “porque os cães vivem menos que as pessoas”, sendo que a resposta lhe fora dada por uma criança de 6 anos.

Chamado o veterinário para examinar um cão de 13 anos de idade chamado Batuta, a família esperava por um milagre. Porém, tendo descoberto que o animal estava a morrer de cancro e que não podia fazer nada, o veterinário deixou que a família cercasse o Batuta. O Pedrito, tão calmo, acariciava o cão pela última vez e o veterinário perguntava-se se ele entendia o que estava a acontecer. Em poucos minutos, o Batuta caiu pacificamente a dormir para nunca mais acordar.

O garoto parecia aceitar sem dificuldade. E, quando a mãe se interrogava “porque a vida dos cães é mais curta do que a dos seres humanos, Pedro disse: “Eu sei por quê”. E explicou:

A gente vem ao mundo para aprender a viver uma boa vida, como amar os outros o tempo todo e ser boa pessoa, não é?! Como os cães já nascem sabendo fazer tudo isso, não têm que viver por tanto tempo como nós.”.

Assim, de acordo com o aludido veterinário, com o cão pode aprender-se: a correr para as pessoas que amamos quando, por exemplo, elas entram em casa; a aproveitar a oportunidade de ir passear; a deixar que a experiência do ar fresco e do vento no rosto nos extasie; a dormir boas sonecas despreocupados; a alongarmo-nos antes de nos levantarmos; a correr, cantar, saltar e brincar diariamente; a não mordermos os demais quando apenas um “rosnado” for suficiente; a beber, em clima quente, muita água, em vez de alcoólicas e refrigerantes, e a usufruir da sombra duma árvore frondosa; a dançar movendo todo o corpo para mostrarmos a felicidade que sentimos; a deliciarmo-nos com a simples alegria duma longa caminhada; a sermos fiéis e leais; a nunca pretendermos ser o que não somos; a, quando sentirmos o que desejamos está enterrado, cavar até o encontrar; e, sobretudo, a, quando virmos alguém que esteja mal nalgum dia ou tenha um mal, mais do que usarmos da palavra, que pode ser intrusiva e fatigar, ficarmos em silêncio, sentindo-nos próximos e suavemente fazendo-o sentir que estamos ali.

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Porém, se podemos aprender com os animais – que nem sempre se comportam como o que se disse do cão (também o cão tem não raro comportamentos agressivos), pois são ciosos do território e das vias que delimitaram para si – os seres com quem somos fadados a aprender são os humanos, mormente os revestidos da sabedoria da experiência e da sabedoria académica.

A este respeito, apraz-me trazer à colação um artigo de José Morgado, dado à luz na “Visão” on line, de 24 de fevereiro de 2017, sob o título “Manual de instruções”, em que sublinha que as crianças são ‘fornecidas’ aos pais sem manual de instruções, “de preferência em várias línguas”, ao invés do que sucede com todos os bens, até por imposição comunitária. E conta que um amigo que ia ser avô lhe pedia que lhe sugerisse “alguma leitura”, ao que o articulista respondera que “uma boa e primeira opção seria ele estar disponível para ler atentamente e para compreender os gaiatos”, bastando, na maioria das situações, estar atento para os compreender, pois eles “também nos compreendem e a estrada faz-se com não mais do que os sobressaltos que todas as estradas apresentam”.

Aponta algum excesso nos discursos sobre a “instrução” e “educação” face às questões novas que as mudanças nos valores e nos estilos de vida colocam, levando os pais a sentirem algumas dificuldades no seu mister de pais e muitos técnicos a providenciar um “manual de instruções” que promoverá a educação perfeita da criança perfeita. Até – recordo eu – as escolas viram publicado “ Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória”, elaborado por um grupo de peritos e homologado pelo Despacho n.º 6478/2017, 26 de julho, que se afirma como “referencial para as decisões a adotar por decisores e atores educativos ao nível dos estabelecimentos de educação e ensino e dos organismos responsáveis pelas políticas educativas, constituindo-se como matriz comum para todas as escolas e ofertas educativas no âmbito da escolaridade obrigatória, designadamente ao nível curricular, no planeamento, na realização e na avaliação interna e externa do ensino e da aprendizagem”.

E o articulista diz que ultimamente verifica um aumento exponencial na publicação daqueles “manuais”, que os há “para todos os gostos, para todas as idades” e vêm “escritos sob as mais variadas perspetivas”. Porém, deixam alguma preocupação por não passarem de “um enunciado de orientações prescritivas longe das circunstâncias de vida em que muitas famílias se movem”.

Se tais instrumentos podem constituir preciosa ajuda a pais e outros educadores, também é certo que “todos nós a começar pelas crianças” reconhecemos que “os pais são, de uma forma geral, intuitivamente competentes” (diz Morgado; mais “asneira”, menos “asneira”, mais uma “festinha”, menos um “ralhete” e o caminho cumpre-se sem grandes problemas), pelo que o discurso social excessivo eivado de “psicologização” ou indutor da ideia de que, só indo a uma “escola de pais” e lendo “manuais de instruções”, poderemos ser bons pais, “pode ser mais fonte de inquietação que de ajuda”.

É, antes, importante que os pais falem entre si sobre as suas experiências, sem receio de alheios julgamentos sobre o seu perfil de paternidade, e que, na relação com os técnicos ligados à educação, as conversas não incidam apenas sobre “se está bem ou mal na escola”, mas que abordem as questões educativas no contexto familiar de forma aberta e serena. Com efeito, “pais atentos, pais confiantes, são pais que educam sem especiais problemas”, ao passo que alguns ‘manuais’ e discursos ‘científicos’ “podem aumentar a insegurança e a ansiedade dos pais”.

***

Em suma, é verdade que é útil saber que e porque alguns animais tem uma durabilidade de vida maior ou menor, para que o homem se possa situar melhor no sistema ecológico e ser mais e melhor homem. Também é verdade que o comportamento de alguns animais nos pode oferecer lições de vida, quer do lado positivo, que do lado negativo. Porém, é sobretudo com os humanos que nós temos de aprender e é a eles que devemos ensinar a aprender. Com efeito, assim como Deus nos deixou a tarefa de completar a sua obra criadora pelo trabalho, também nos deu responsabilidade do cuidado da segurança, educação e saúde uns dos outros, enfim, da vida.

Por isso, um educador referia que a educação é o manual de instruções de que o homem carece.

2020.11.28 – Louro de Carvalho