terça-feira, 24 de novembro de 2020

Escutar a ciência, mas não esperar toda a evidência científica para agir

 

Há dias, a comunicação social deu relevo à notícia duma petição atualmente em apreciação na Comissão de Saúde da Assembleia da República e que reclama mudanças drásticas no combate à pandemia da covid-19.

Na verdade, um conjunto de 245 subscritores liderado pelo médico internista português António Ferreira, do Centro Hospitalar e Universitário de São João, e professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, manifesta-se contra o “confinamento extremista” e defende o uso de medicamentos, mesmo sem “evidência científica indiscutível” de eficácia.

António Ferreira, considerando que o confinamento agressivo “serviu para muito pouco ou nada no que toca à evolução e à mortalidade da pandemia”, sustenta que as medidas de “confinamento” tomadas por países como Portugal não serviram para nada em termos da pandemia e conduziram a “uma catástrofe económica”. Com efeito, segundo o especialista, os países que tiveram confinamentos totais “apresentam, em termos gerais, um número de casos por milhão de habitantes idêntico aos que não confinaram”.

Apoiado num artigo científico que está em pré-publicação e que subscreveu com mais 33 investigadores, Ferreira defende que deve ser adotado um modelo semelhante ao que aconteceu com a epidemia do VIH. Efetivamente, para lidar com o vírus da imunodeficiência humana, para o qual não existe vacina, tal como o Sars-Cov2, associam-se medidas que não têm nada a ver com medicamentos com “tratamento farmacológico iniciado ainda antes da existência de evidência científica indiscutível, baseando-se, apenas, na prova pré-clínica ou em dados de estudos limitados”. Ora, essa abordagem “salvou muitas vidas” e é “uma estratégia similar” a que se deve aplicar à covid-19, quer agora, quer quando exista uma vacina, com “o tratamento precoce domiciliar dos infetados e a quimioprofilaxia alargada”.

No predito artigo, ainda não sujeito a revisão, os autores notam que “não existe prevenção ou tratamento para doentes não internados com sintomas ligeiros a moderados, que constituem 80% da população infetada e o modo principal de transmissão do SARS-Cov-2”. Mais advertem que muitos dos estudos clínicos feitos com medicamentos como a hidroxicloroquina ou o remdesivir se centraram em pacientes hospitalizados, mas que “as lições aprendidas em pacientes hospitalizados muito doentes não se aplicam necessariamente” às primeiras fases da infeção. Por isso, entendem que “agentes antivirais, como o remdesivir ou o favipiravir, plasma de convalescentes e anticorpos monoclonais serão provavelmente os mais eficazes nas primeiras fases de atuação do vírus, antes da hospitalização”.

Quanto aos políticos, António Ferreira interpela-os no sentido de que “deixem de se esconder apenas atrás da visão em túnel da saúde pública, acrescentem à visão meramente sanitária uma abordagem sistémica e política e arrisquem em favor daqueles que representam”.

Por outro lado, ataca a Organização Mundial de Saúde (OMS), que aponta como “responsável pela morte evitável de milhares ou dezenas de milhar de doentes de covid-19 em todo o mundo ao recomendar, contra a experiência acumulada” dos médicos que tratam infeções virais, “que não se usassem corticoesteroides no tratamento”, preferindo a aposta na “aplicação rígida e extremada de estratégias atávicas ‘medievais’ de combate às epidemias”, como “estados de emergência e outros que tais”.

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Não se sabe que apreciação fará da petição o Parlamento, mas ela merece reflexão. 

Em relação à covid-19, há muitas incertezas e, como acontece noutros casos, as asserções são muitas e, por vezes, contraditórias. Por isso, os especialistas que assessoram os decisores políticos têm de se pôr de acordo nas propostas que lhes fazem. E os políticos devem ouvir a ciência e não tomar medidas tímidas, temerárias ou ad hoc, mas indicar as medidas a tomar, explicando-as bem e sem hesitação, ou seja, não trazendo à praça as dúvidas científicas.

No entanto, não se compreende que se tenha declarado por mais que uma vez o estado de emergência sem a conveniente segurança quanto à eficácia das medidas, quer em relação ao seu acatamento por parte de todos os cidadãos, sem dar azo legal aos tribunais para que pudessem torpedear as prescrições e proibições, quer em relação a um benefício sanitário razoável.

É evidente que se tomaram medidas para as quais a evidência científica não existia, mas que, apesar da sua insuficiência, provavelmente constituíam o mal menor. Tal é o caso do uso da máscara (com inconvenientes para algumas pessoas) e/ou da viseira. Procedeu-se à desinfeção sistemática de espaços e vinha a OMS a dizer que tal não era indicado. Sabemos dos acidentes pessoais derivados do mau uso do gel alcoólico desinfetante. O distanciamento físico, que alguns incorretamente dizem “social”, é insuficiente e, por vezes, impraticável. Apesar de tudo insistimos em tudo isto, pois é necessário evitar males maiores.

No entanto, aceitámos o confinamento geral da primavera atendendo a que os governos não estavam preparados para obviar à crise através do sistema de saúde. Porém, apesar de a ciência biomédica advertir os poderes de que a pandemia não se afastaria e que poderia ocorrer uma 2.ª vaga com efeitos piores, os decisores não reforçaram o SNS com o aumento de camas de cuidados intensivos e de enfermaria, bem como de profissionais de saúde e recursos materiais, desmantelaram as estruturas de apoio que tinham sido montadas e não mobilizaram, nem contratualmente, nem por via coerciva, o setor privado de saúde e o social para o acolhimento dos doentes não covid e eventualmente para alguns doentes de covid. Quer dizer: nuns casos, agiram mesmo sem evidência científica; noutros, não ouviram a ciência.

Entretanto, como os efeitos da pandemia cresceram e recrudesceram, sujeitaram os portugueses a confinamento dito limitado, mas mais gravoso para aqueles a quem diz respeito, continuando a não garantir a mitigação da pandemia e a contradizer a ciência económica. Por outro lado, esperam uma vacina que resolva o problema – que não resolve por não ter 100% de eficácia, por não ter efeito duradoiro e por ser difícil distribuí-la por todos em tempo útil – e/ou por medicamentos que obviem com eficácia inequívoca ao tratamento da doença. Ora, até aí, era – e é – necessário utilizar os medicamentos disponíveis que o decisor clínico considerasse mais consentâneo em cada caso.

A história dos cuidados de saúde está cheia de situações em que para as doenças não havia antídotos disponíveis, mas não cessava o cuidado dos doentes, dentro do possível. Tanto assim é que se disseminou o número dos hospitais, o exercício da medicina chegou a ser considerado uma espécie de sacerdócio, as famílias (por si ou através de pessoas habilidosas) tratavam dos seus doentes e as mezinhas caseiras – incluindo os caldos de galinha, os panos quentes ou os panos molhados, os chás, etc. – nunca deixaram de emparceirar com a administração dos fármacos que a ciência médica e farmacêutica ia descobrindo.

Enfim, com meios ou sem eles, o cuidado das pessoas não pode faltar. E, a talho de foice, refiro um texto do Expresso online que a redação acabou de emitir.           

Refere o Expresso que a pressão sobre hospitais de Lisboa obriga a abrir, até ao fim desta semana, mais 151 camas de enfermaria e 34 de cuidados intensivos, sendo que, na região, terão de abrir mais 1100 camas de enfermaria e 164 de cuidados intensivos.

O cenário mais provável gizado pelos militares que, no âmbito do NAD (Núcleo de Apoio à Decisão), apoiam a ARSLVT (Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo) é o do aumento do número de internados covid-19, levando os três hospitais (Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, Hospital do Médio Tejo e o Fernando Fonseca/Amadora-Sintra) que não aumentaram os níveis dos planos de contingência a fazê-lo, mesmo com prejuízo da atividade cirúrgica programada (sacrificando parte do atendimento não covid), para responder ao crescimento da pandemia.

O caso é sério, pois, deste dia 24 de novembro, o número de internados covid-19 em unidades de Cuidados Intensivos no país ultrapassou as 5 centenas (506, mais 8 que no dia anterior) e em enfermaria eram já 3275 (mais 34 que na véspera). E a ARSLVT já sabia que teria de criar mais 151 camas de enfermaria até ao fim da semana e mais 34 leitos para doentes críticos.

Após a expansão agora anunciada, virá a adoção desta estratégia para as transferências entre as várias regiões, o que já sucede de forma casuística. No caso dos doentes críticos, o coordenador nacional da CARNMI (Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva) tem vincado a necessidade de aumentar a capacidade de resposta dos hospitais nesta área.

No passado dia 19, a mensagem passada pela tutela em reunião da Ministra da Saúde com os diretores clínicos dos hospitais do país que recebem doentes covid-19 foi de que é altura de parar de pensar em termos individuais e começar a agregar esforços transregionais e mesmo nacionais. Já desde setembro que o Ministério da Saúde começou a centralizar a informação sobre o número de doentes internados e de óbitos, pedindo que todas as ARS fizessem o que estava a ser feito em LVT, com o cruzamento do número de camas com as necessidades da população infetada, pois, como afirma a diretora do Departamento de Planeamento e Contratualização da ARSLVT, “estamos num momento em que a solidariedade entre as instituições é fundamental”, já não sendo possível pensar em doentes de cada centro hospitalar. As transferências são pedidas – não impostas – e, apesar das dificuldades, causadas sobretudo pela escassez de meios, “no fim, acabam sempre por ceder”. Até já se fazem transferências profiláticas, com base nas previsões militares. Assim, quando um hospital se aproxima do ponto de saturação, os doentes começam a ser transportados para outra unidade menos pressionada.

Um dos aspetos agora em discussão agora é a forma como será feito o transporte inter-hospitalar. No caso de doentes não críticos, a estratégia ficará a cargo dos Comandantes Operacionais Distritais (CODIS) da Proteção Civil, que auxiliarão os hospitais a agilizar o processo de transferência de doentes. Nos casos críticos, o Ministério da Saúde tentará que o transporte seja apoiado pelo INEM, com recurso às VMER (Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação), ambulâncias capazes de dar suporte às situações mais graves.

Em suma, como em tempo de guerra, não se limpam armas e se usam os meios mais expeditos, cuide-se dos doentes a todo o custo, ouvindo a ciência, mas sem esperar por todas as evidências científicas. Livrem-nos dos confinamentos e não nos metam em sítios propícios ao vírus. Melhorem as condições de trabalho e de escola, evite-se a superlotação das casas e de outros espaços, cuide-se dos transportes públicos e vigiem-se os ajuntamentos. E evitem desfazer a convivência familiar.   

2020.11.24 – Louro de Carvalho

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