O
Governo solicitou o que o Presidente da República pretendia: um decreto
presidencial de declaração do estado de emergência. E o Chefe de Estado, nos
termos constitucionais, ou seja, tendo ouvido o Governo e sob autorização do
Parlamento (por maioria, mas longe do consenso que o Presidente
da República almejava),
produziu o Decreto do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 6 de novembro, que declara o estado
de emergência para todo o território nacional (sendo
que a limitação do direito de circulação se circunscreve aos concelhos mais
afetados pela pandemia), com fundamento na verificação de uma situação de calamidade
pública, com início às 0,0 horas do dia 9 de novembro de 2020 e cessando às 23,59
horas do dia 23 de novembro de 2020, sem prejuízo de eventuais renovações, nos
termos da lei.
Tanto o preâmbulo do diploma em referência como as
declarações do Primeiro-Ministro, de que a comunicação social fez ressonância,
assinalam o “âmbito muito limitado e de efeitos largamente preventivos” deste
novo estado de emergência, que visa contrair o avanço da pandemia provocada
pelo SARS-CoV-2.
E, na verdade, o decreto presidencial não prevê, ao invés de
diplomas anteriores congéneres, restrições à circulação internacional, nem
limitações ao direito de manifestação e à liberdade de culto na sua dimensão
coletiva, nem o impedimento de todo e qualquer ato de resistência.
É verdade que o decreto presidencial prevê a possibilidade da
“proibição de circulação na via pública durante determinados períodos do dia ou
determinados dias da semana”, bem como “a interdição das deslocações que não
sejam justificadas, mas “na medida do estritamente necessário e de forma
proporcional”.
E é precisamente no quadro da inobservância dessa cláusula da
“medida do estritamente necessário e de forma proporcional”, bem como da
inadequação e ineficácia das decisões que se sustenta a crítica ao Governo pela
produção do Decreto n.º 8/2020, de 8 de novembro, aprovado na sessão
extraordinária do Conselho de Ministros do passado dia 7 de novembro.
Obviamente que a crítica atinge o Presidente da República que promulgou o
decreto, que certamente que o leu, analisou e achou em conformidade.
O que está em causa é o seu art.º 3.º, que estabelece,
para
os concelhos do território nacional continental (121
concelhos) referidos no anexo II à Resolução do Conselho de Ministros n.º
92-A/2020, de 2 de novembro, “a proibição de circulação na via pública,
diariamente, no período compreendido entre as 23 horas e as 5 horas, bem como
aos sábados e aos domingos no período compreendido entre as 13 horas e as 5 horas”,
exceto nas condições ali especificadas. É o vulgarmente dito recolher
obrigatório.
***
Para lá da
generalidade dos partidos políticos, com exceção do PS e do PSD, a assinalar a
desproporção, a inadequação e a eficácia das medidas ou do atraso de algumas, e
a sublinhar o estrangulamento de setores fundamentais da atividade económica –
que têm reagido quase em tom de desespero clamando por ajudas que venham a
compensar as restrições –, veio o bastonário da Ordem dos Advogados (OA) tomar posição, como se pode ler no site da OA.
Considera que
a declaração do estado de emergência era imprescindível face à “calamidade
pública de enorme gravidade que está a ser causada pela pandemia”, pois “a
anterior emissão por parte do Governo de restrições ou mesmo suspensões de
direitos constitucionais com base em resoluções do Conselho de Ministros não
tinha qualquer base constitucional, constituindo, por isso, um precedente grave
para a tutela dos direitos fundamentais”. Porém, recorda que, segundo a
Constituição, o estado de emergência “apenas
pode determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e garantias suscetíveis de serem suspensos” (art.º
19.º, n.º 3); que a sua
declaração deve “respeitar o princípio da
proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração
e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento
da normalidade constitucional” (art.º 19.º, n.º 4); que a sua declaração “é
adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e
garantias cujo exercício fica suspenso” (art.º 19.º, n.º 5); e que a sua declaração “em nenhum caso pode afetar os
direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade
civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa
dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião” (art.º 19.º, n.º 6).
Ora, como
muito bem verifica, o decreto presidencial que declara este estado de
emergência afirma que o mesmo é “de âmbito muito limitado e de efeitos
largamente preventivos”. Todavia, o seu art.º 4.º, “embora de uma forma vaga,
estabelece fortes limitações aos direitos à liberdade e de deslocação, à
iniciativa privada, social e cooperativa, aos direitos dos trabalhadores, e ao
direito ao livre desenvolvimento da personalidade e vertente negativa do
direito à saúde”. Com base em tal disposição, o Governo decreta “um recolher
obrigatório em 121 concelhos do país, que abrange 7 milhões de pessoas, ou seja,
70% da população nacional, ficando as mesmas privadas da possibilidade de se
ausentar do seu domicílio no período noturno e inclusivamente de sair de casa
ao fim de semana, salvo no período da manhã” – o que, no entender do
bastonário, “constitui uma fortíssima restrição do direito ao repouso e aos
lazeres e ao descanso semanal dos trabalhadores, garantido pelo art.º 59.º, n.º
1, d) da Constituição”. É uma “enorme fatia da população portuguesa” que “ficou
apenas com o direito de se ausentar do seu domicílio para ir trabalhar”, o que
parece “claramente contrário ao princípio da proporcionalidade, que rege a
declaração do estado de emergência”, ficando-se, ao invés do previsto,
manifestamente “perante medidas muito duras e que nada têm de limitado ou
preventivo”.
Por outro
lado, o bastonário afirma que a Ordem “encara com muita preocupação” que o
decreto presidencial em referência “não tenha expressamente referido que os
efeitos da declaração do estado de emergência não afetam, em caso algum, os
direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade
civil e à cidadania, à não retroatividade da lei criminal, à defesa dos
arguidos e à liberdade de consciência e religião”, nos termos constitucionais,
e que “não afetam igualmente, em caso algum, as liberdades de expressão e de
informação”. E sublinha que o decreto “não refere que, em caso algum, pode ser
posto em causa o princípio do Estado unitário ou a continuidade territorial do
Estado e que a Procuradoria-Geral da República e a Provedoria de Justiça se
devem manter em sessão permanente durante a vigência do estado de emergência” –
ressalvas constantes das “declarações de estado de emergência anteriores” e
cuja omissão “constitui um indício preocupante de menor proteção dos direitos
fundamentais dos cidadãos perante uma declaração de estado de emergência
extremamente vaga e que pode ser considerada como uma carta branca para
restringir de forma desmesurada os direitos constitucionais”.
***
Concordando com
o teor desta posição do Bastonário da OA, devo vincar que aqueles e aquelas que
trabalham uma semana inteira no seu local de trabalho ou em teletrabalho (por vezes com maior sobre carga
laboral e familiar), não
podem ser privados, nas tardes de sábado e de domingo, da possibilidade de ida
às compras, aquisição de serviços, como barbearia ou cabeleireiro, tempo para
relaxar ou assumir compromissos familiares (extra agregado familiar), contatuais, sociais e/ou religiosos. Duas manhãs são muito
pouco. E ir para casa não é solução para tudo.
Para a
atividade religiosa e formativa catequética, que não está proibida nem limitada
pelo decreto presidencial nem pelo decreto do Governo, é castrante a supressão
das tardes de sábado e de domingo. E o comunicado do secretariado-geral da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa), que anota como necessárias – e bem
– as exigências da pandemia, traz uma solução de remendo ao sugerir que se
adaptem os horários a esta situação, por exemplo, passando as missas vespertinas
para a manhã de sábado. Dizem-se surpreendidos os venerandos prelados. Então,
ao notarem a iminência da emergência, não se afizeram à eminência da negociação?
O estado de
emergência na primavera justificava-se pela inadvertência dos governos europeus,
que pensavam que o vírus não chegava à Europa, a qual tinha os sistemas de
saúde depauperados e não encontrava forma concertada de conter a pandemia no
meio de incertezas científicas e sem meios de proteção individual e comunitária,
tendo o resultado sido a grande crise sistémica. Agora, o estado de emergência
serve para mascarar o relaxamento de verão, em que não se mantiveram as
estruturas de apoio criadas nem se robusteceu o sistema de saúde. E as medidas
de regresso ao trabalho, à escola e ao convívio foram contraditórias e quase
sem fiscalização. Entretanto, o medo e o espectro da pandemia continuaram,
recaindo a culpa sobretudo nos cidadãos, que de bem comportados civicamente
passaram a maus da fita.
Festas,
ajuntamentos, feiras, corridas de automóveis continuam sob medidas restritivas
quase teóricas, a começar pelo ajuntamento frente aos portões das escolas e
entradas a conta-gotas. E o recolher obrigatório pouco trará de melhor para a
generalidade as pessoas. E quem sofre mais são os de mais idade e os que
integram grupos de risco. Estes até podem trabalhar, mas ao fim de semana têm
de estar em causa. Ora, o enclausuramento a estas pessoas só vem agravar a
saúde mental, sobretudo se se sentirem encaixotados, e obrigar as demais
doenças a esperar.
Quer dizer:
se os abades dissessem que a pandemia ou o cataclismo era castigo de Deus pelos
pecados dos homens e das mulheres, iríamos a correr para as igrejas rezar e a
fazer procissões de penitência (não dizem, não convenceriam); se o castigo não é de Deus, mas de nós próprios que nos
autoflagelamos, acatamos as restrições que nos impõem e melhoramos os nossos
hábitos por amor do planeta e do próximo; se Deus nos perdoa sempre, como diz o
Papa e eu sei, os homens às vezes, mas a natureza nunca, enveredamos em campanha
pela mudança climática, poupança em recursos energéticos naturais, reciclagem,
reutilização e despoluição; e, se os políticos se convencem de que, em vez de
reconhecerem a sua incapacidade de governança, somos nós os culpados pela
pandemia e seus efeitos, mandam-nos ficar em casa, não ir às igrejas, aos
funerais, aos batizados e casamentos, aos cemitérios, aos lares, aos hospitais
e centros de saúde. Será que nos deixarão ir a eleições? Nem a encomia para,
nem a sociedade!
Será que a
declaração do estado de emergência apenas serve para dar cobertura política às
decisões do Governo? Ai, aí sim, o principal responsável pela coisa pública
será o Presidente acolitado pelo Parlamento!
Os cientistas,
sabendo das leis da natureza, em vez da cultura de instrumentos de manipulação
e morte, deveriam ter feito mais esforços para as perceberem e nos livrarmos
dos seus efeitos.
2020.11.09 – Louro de Carvalho
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