segunda-feira, 9 de novembro de 2020

São de acatar as medidas da emergência, mas considero-as excessivas

 

O Governo solicitou o que o Presidente da República pretendia: um decreto presidencial de declaração do estado de emergência. E o Chefe de Estado, nos termos constitucionais, ou seja, tendo ouvido o Governo e sob autorização do Parlamento (por maioria, mas longe do consenso que o Presidente da República almejava), produziu o Decreto do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 6 de novembro, que declara o estado de emergência para todo o território nacional (sendo que a limitação do direito de circulação se circunscreve aos concelhos mais afetados pela pandemia), com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, com início às 0,0 horas do dia 9 de novembro de 2020 e cessando às 23,59 horas do dia 23 de novembro de 2020, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei.

Tanto o preâmbulo do diploma em referência como as declarações do Primeiro-Ministro, de que a comunicação social fez ressonância, assinalam o “âmbito muito limitado e de efeitos largamente preventivos” deste novo estado de emergência, que visa contrair o avanço da pandemia provocada pelo SARS-CoV-2.

E, na verdade, o decreto presidencial não prevê, ao invés de diplomas anteriores congéneres, restrições à circulação internacional, nem limitações ao direito de manifestação e à liberdade de culto na sua dimensão coletiva, nem o impedimento de todo e qualquer ato de resistência.

É verdade que o decreto presidencial prevê a possibilidade da “proibição de circulação na via pública durante determinados períodos do dia ou determinados dias da semana”, bem como “a interdição das deslocações que não sejam justificadas, mas “na medida do estritamente necessário e de forma proporcional”.

E é precisamente no quadro da inobservância dessa cláusula da “medida do estritamente necessário e de forma proporcional”, bem como da inadequação e ineficácia das decisões que se sustenta a crítica ao Governo pela produção do Decreto n.º 8/2020, de 8 de novembro, aprovado na sessão extraordinária do Conselho de Ministros do passado dia 7 de novembro. Obviamente que a crítica atinge o Presidente da República que promulgou o decreto, que certamente que o leu, analisou e achou em conformidade.

O que está em causa é o seu art.º 3.º, que estabelece, para os concelhos do território nacional continental (121 concelhos) referidos no anexo II à Resolução do Conselho de Ministros n.º 92-A/2020, de 2 de novembro, “a proibição de circulação na via pública, diariamente, no período compreendido entre as 23 horas e as 5 horas, bem como aos sábados e aos domingos no período compreendido entre as 13 horas e as 5 horas”, exceto nas condições ali especificadas. É o vulgarmente dito recolher obrigatório. 

***

Para lá da generalidade dos partidos políticos, com exceção do PS e do PSD, a assinalar a desproporção, a inadequação e a eficácia das medidas ou do atraso de algumas, e a sublinhar o estrangulamento de setores fundamentais da atividade económica – que têm reagido quase em tom de desespero clamando por ajudas que venham a compensar as restrições –, veio o bastonário da Ordem dos Advogados (OA) tomar posição, como se pode ler no site da OA.

Considera que a declaração do estado de emergência era imprescindível face à “calamidade pública de enorme gravidade que está a ser causada pela pandemia”, pois “a anterior emissão por parte do Governo de restrições ou mesmo suspensões de direitos constitucionais com base em resoluções do Conselho de Ministros não tinha qualquer base constitucional, constituindo, por isso, um precedente grave para a tutela dos direitos fundamentais”. Porém, recorda que, segundo a Constituição, o estado de emergência “apenas pode determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e garantias suscetíveis de serem suspensos(art.º 19.º, n.º 3); que a sua declaração deve “respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional(art.º 19.º, n.º 4); que a sua declaração “é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso(art.º 19.º, n.º 5); e que a sua declaração “em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião” (art.º 19.º, n.º 6).

Ora, como muito bem verifica, o decreto presidencial que declara este estado de emergência afirma que o mesmo é “de âmbito muito limitado e de efeitos largamente preventivos”. Todavia, o seu art.º 4.º, “embora de uma forma vaga, estabelece fortes limitações aos direitos à liberdade e de deslocação, à iniciativa privada, social e cooperativa, aos direitos dos trabalhadores, e ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade e vertente negativa do direito à saúde”. Com base em tal disposição, o Governo decreta “um recolher obrigatório em 121 concelhos do país, que abrange 7 milhões de pessoas, ou seja, 70% da população nacional, ficando as mesmas privadas da possibilidade de se ausentar do seu domicílio no período noturno e inclusivamente de sair de casa ao fim de semana, salvo no período da manhã” – o que, no entender do bastonário, “constitui uma fortíssima restrição do direito ao repouso e aos lazeres e ao descanso semanal dos trabalhadores, garantido pelo art.º 59.º, n.º 1, d) da Constituição”. É uma “enorme fatia da população portuguesa” que “ficou apenas com o direito de se ausentar do seu domicílio para ir trabalhar”, o que parece “claramente contrário ao princípio da proporcionalidade, que rege a declaração do estado de emergência”, ficando-se, ao invés do previsto, manifestamente “perante medidas muito duras e que nada têm de limitado ou preventivo”.

Por outro lado, o bastonário afirma que a Ordem “encara com muita preocupação” que o decreto presidencial em referência “não tenha expressamente referido que os efeitos da declaração do estado de emergência não afetam, em caso algum, os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, à não retroatividade da lei criminal, à defesa dos arguidos e à liberdade de consciência e religião”, nos termos constitucionais, e que “não afetam igualmente, em caso algum, as liberdades de expressão e de informação”. E sublinha que o decreto “não refere que, em caso algum, pode ser posto em causa o princípio do Estado unitário ou a continuidade territorial do Estado e que a Procuradoria-Geral da República e a Provedoria de Justiça se devem manter em sessão permanente durante a vigência do estado de emergência” – ressalvas constantes das “declarações de estado de emergência anteriores” e cuja omissão “constitui um indício preocupante de menor proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos perante uma declaração de estado de emergência extremamente vaga e que pode ser considerada como uma carta branca para restringir de forma desmesurada os direitos constitucionais”.

***

Concordando com o teor desta posição do Bastonário da OA, devo vincar que aqueles e aquelas que trabalham uma semana inteira no seu local de trabalho ou em teletrabalho (por vezes com maior sobre carga laboral e familiar), não podem ser privados, nas tardes de sábado e de domingo, da possibilidade de ida às compras, aquisição de serviços, como barbearia ou cabeleireiro, tempo para relaxar ou assumir compromissos familiares (extra agregado familiar), contatuais, sociais e/ou religiosos. Duas manhãs são muito pouco. E ir para casa não é solução para tudo.

Para a atividade religiosa e formativa catequética, que não está proibida nem limitada pelo decreto presidencial nem pelo decreto do Governo, é castrante a supressão das tardes de sábado e de domingo. E o comunicado do secretariado-geral da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa), que anota como necessárias – e bem – as exigências da pandemia, traz uma solução de remendo ao sugerir que se adaptem os horários a esta situação, por exemplo, passando as missas vespertinas para a manhã de sábado. Dizem-se surpreendidos os venerandos prelados. Então, ao notarem a iminência da emergência, não se afizeram à eminência da negociação?

O estado de emergência na primavera justificava-se pela inadvertência dos governos europeus, que pensavam que o vírus não chegava à Europa, a qual tinha os sistemas de saúde depauperados e não encontrava forma concertada de conter a pandemia no meio de incertezas científicas e sem meios de proteção individual e comunitária, tendo o resultado sido a grande crise sistémica. Agora, o estado de emergência serve para mascarar o relaxamento de verão, em que não se mantiveram as estruturas de apoio criadas nem se robusteceu o sistema de saúde. E as medidas de regresso ao trabalho, à escola e ao convívio foram contraditórias e quase sem fiscalização. Entretanto, o medo e o espectro da pandemia continuaram, recaindo a culpa sobretudo nos cidadãos, que de bem comportados civicamente passaram a maus da fita.

Festas, ajuntamentos, feiras, corridas de automóveis continuam sob medidas restritivas quase teóricas, a começar pelo ajuntamento frente aos portões das escolas e entradas a conta-gotas. E o recolher obrigatório pouco trará de melhor para a generalidade as pessoas. E quem sofre mais são os de mais idade e os que integram grupos de risco. Estes até podem trabalhar, mas ao fim de semana têm de estar em causa. Ora, o enclausuramento a estas pessoas só vem agravar a saúde mental, sobretudo se se sentirem encaixotados, e obrigar as demais doenças a esperar.

Quer dizer: se os abades dissessem que a pandemia ou o cataclismo era castigo de Deus pelos pecados dos homens e das mulheres, iríamos a correr para as igrejas rezar e a fazer procissões de penitência (não dizem, não convenceriam); se o castigo não é de Deus, mas de nós próprios que nos autoflagelamos, acatamos as restrições que nos impõem e melhoramos os nossos hábitos por amor do planeta e do próximo; se Deus nos perdoa sempre, como diz o Papa e eu sei, os homens às vezes, mas a natureza nunca, enveredamos em campanha pela mudança climática, poupança em recursos energéticos naturais, reciclagem, reutilização e despoluição; e, se os políticos se convencem de que, em vez de reconhecerem a sua incapacidade de governança, somos nós os culpados pela pandemia e seus efeitos, mandam-nos ficar em casa, não ir às igrejas, aos funerais, aos batizados e casamentos, aos cemitérios, aos lares, aos hospitais e centros de saúde. Será que nos deixarão ir a eleições? Nem a encomia para, nem a sociedade!

Será que a declaração do estado de emergência apenas serve para dar cobertura política às decisões do Governo? Ai, aí sim, o principal responsável pela coisa pública será o Presidente acolitado pelo Parlamento!

Os cientistas, sabendo das leis da natureza, em vez da cultura de instrumentos de manipulação e morte, deveriam ter feito mais esforços para as perceberem e nos livrarmos dos seus efeitos.

2020.11.09 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário