É do
conhecimento geral que o Primeiro-Ministro propôs ao Presidente da República
que decretasse a declaração um estado de emergência “de natureza essencialmente
preventiva, para poder eliminar dúvidas jurídicas, quanto
a quatro dimensões fundamentais”.
Por
outro lado, o Governo, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
92-A/2020, de 2 de novembro, declarou “a situação de calamidade, no âmbito da pandemia da
doença covid-19”, em todo o território nacional continental desde as 00:00
horas do dia 4 de novembro de 2020 até às 23:59 horas do dia 19 de novembro de
2020. Mais determinou restrições específicas para 121 concelhos, de acordo com
“o critério do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, uniforme
para toda a União Europeia, que define como situação de elevada incidência a
existência de 240 casos por cada 100 000 habitantes nos últimos 14 dias”. E a
este juntou o “de contiguidade territorial, na medida em que determinados
concelhos, apesar de não se integrarem naquele critério do Centro Europeu de
Prevenção e Controlo das Doenças, se encontram circundados por outros concelhos
com um elevado número de casos”.
A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira, no blogue
“Causa Nossa”, diz considerar “acertada a
estratégia decidida pelo Governo de adotar medidas mais restritivas somente
para os municípios com maiores índices de contaminação” pela exigência que
suscita aos respetivos moradores e empresas de esforço por “inverter a situação”
e pelo que significa de incentivo aos demais concelhos “a manterem a sua
situação controlada”. Mais entende que as novas medidas “são relativamente
pouco intrusivas”, se comparadas com as do surto pandémico da primavera e com
as adotadas noutros países por estes dias, “não se incluindo nelas, por
exemplo, o recolher obrigatório à noite, que vários países decretaram” para travar “os eventos sociais noturnos e o seu elevado
potencial de contaminação”. E conclui que poucas destas novas medidas “se
traduzem verdadeiramente em suspensão de direitos”, como é o caso das eventuais
“proibição de mercados de levante” e “obrigação de teletrabalho”, pelo que
exigem a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República. Já
as demais configuram “restrições mais ou menos severas a várias liberdades”, mas
sem afetarem o “seu núcleo essencial”, podendo ser estabelecidas ou autorizadas
por lei fora de estado de emergência. Todavia, a declaração do estado de
emergência, “além de comprometer o Presidente da República na sua adoção, afasta
eventuais dúvidas sobre a sua constitucionalidade”, como as infundadamente
suscitadas a propósito da recente restrição da liberdade de deslocação entre
municípios.
É evidente que estado de emergência
que aí vem – diz o constitucionalista – fica longe da “amplitude da suspensão
de direitos fundamentais” do de março e abril, que suspendeu várias liberdades,
como a de deslocação, a liberdade de estabelecimento em várias atividades (cafés,
restaurantes, etc.), a liberdade
de culto e outras mais.
Porém, em
meu entender, a declaração do estado e emergência que se avizinha, aliás como a
referida Resolução do Conselho de Ministros, pela qual o Governo declarou a situação de
calamidade, enquadra medidas excessivamente restritivas sobretudo para as
pessoas mais vulneráveis e tem como pano de fundo uma pesada carga de
culpabilidade para o cidadão comum. Com efeito, se os cidadãos foram aliviando
a tensão e deslaçaram o compromisso com o combate ao vírus, também as
instâncias governamentais e da administração pública deram sinais
contraditórios, por exemplo ao permitirem uns eventos e proibirem outros de
natureza similar sem explicarem devidamente em que consistiam as diferenças em
termos de risco, se elas existiam efetivamente, como,
por outro lado, definiram regras para comportamentos dentro de determinados
espaços (vg: escolas), mas não acautelaram os ajuntamentos na sua envolvente. É
confrangedor ver a acumulação de alunos junto ao portão duma escola e com
entradas a conta-gotas. Depois, as notícias dão conta da detenção de centenas
de pessoas que infringiram as normas do confinamento ou as do isolamento profilático,
mas não há notícia de qualquer julgamento pela perpetração dolosa do crime de
desobediência. E, ainda, além das incertezas dos cientistas, verificam-se as
dúvidas – fundadas ou não – de eminentes constitucionalistas.
Um outro aspeto que suscita “várias reservas” a
Vital Moreira – e que emerge na epígrafe deste alinhavamento de ideias – é o
caráter preventivo do estado de
emergência ora proposto.
E o
constitucionalista apresenta três motivos: a lógica constitucional deste estado
de exceção é a resposta a “calamidades
atuais ou iminentes”, não a situações verificáveis “num futuro mais ou
menos indefinido”; o decreto presidencial declara “os direitos que ficam suspensos”, não
autorizando o Governo fazê-lo “quando o entender conveniente”; e “o estado de
emergência só é necessário para suspender o exercício de
direitos”, devendo evitar definir restrições
(menos
gravosas, por terem de respeitar o núcleo essencial dos direitos afetados), cuja competência cabe ao legislador (reserva
relativa do Parlamento, não podendo o Governo legislar, a não ser com autorização
parlamentar: alínea b do art.º 165.º da CRP), “sob pena de se criar a ideia
incorreta de que também estas só podem ser estabelecidas em estado de
emergência”.
Relativamente
ao segundo motivo, devo dizer que a redação dos decretos presidenciais de
declaração do estado de emergência até agora publicados define claramente quais
os direitos cujo exercício fica parcialmente suspenso. Porém, para o único que
fica totalmente definido o teor, é o direito à resistência, ficando proibido
todo e qualquer ato neste âmbito. Quanto ao mais, “podem
ser impostas pelas autoridades públicas competentes…”; “pode ser requisitada pelas autoridades
públicas competentes…”; “pode ser
determinado pelas autoridades públicas competentes…”; “podem ser estabelecidos pelas autoridades públicas competentes…”. Ou seja, não há uma definição taxativa do quando e
como, tudo dependendo da avaliação dos executores.
O estado de
emergência deve ser declarado nos termos do artigo 19.º da Constituição, o qual
define os termos em que pode ocorrer a “suspensão do exercício de direitos”. E tal suspensão só pode ocorrer “em caso de estado
de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na
Constituição” (n.º 1), ficando as autoridades com
“competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento
da normalidade constitucional” (n.º 8).
O estado de sítio e o
estado de emergência são estados de exceção e “só podem ser declarados, no todo
ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efetiva ou iminente
por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional
democrática ou de calamidade pública” (n.º 2), sendo o estado de
emergência declarado quando estes pressupostos “se revistam de menor gravidade”
e apenas podendo “determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e
garantias suscetíveis de serem suspensos” (n.º 3). Deve sempre respeitar-se
o princípio da proporcionalidade, limitar-se, nomeadamente quanto à extensão e
duração e meios utilizados, ao estritamente necessário e retornar-se, logo que
possível, ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional (n.º 4). A declaração deve ser fundamentada e “conter a especificação dos
direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o
estado declarado ter duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por
lei quando em consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações,
com salvaguarda dos mesmos limites” (n.º 5). “Em nenhum caso
pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à
capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito
de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião” (n.º 6).
“Só pode alterar a
normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não
podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à
competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das
regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares” (n.º 7).
Não sei se o n.º 6
foi devidamente acautelado aquando do confinamento na primavera ou se os órgãos
do Estado não foram demasiado longe nas restrições em matéria religiosa e se não
se limitaram a tolerar, às vezes com alguma dificuldade, as atitudes criativas
das confissões religiosas. Tal como terá sucedido com a supressão ou a
excessiva minimalização dos atos simbólicos do país e o funcionamento do
Parlamento e dos Tribunais, beliscando o n.º 7 em parte. E não vi
constitucionalistas a pronunciar-se então. O plenário do Parlamento poderia
funcionar em espaço mais avantajado, bem como as audiências nos tribunais!
Nos termos da alínea
d) do art.º 134.º da CRP, compete ao Presidente da República “declarar o estado de sítio ou o
estado de emergência”, mas com a observância do estabelecido no art,º 138.º,
que faz depender tal declaração de “audição do Governo e de autorização da
Assembleia da República ou, quando esta não estiver reunida nem for possível a
sua reunião imediata, da respetiva Comissão Permanente”, tendo de ser, neste
caso, “confirmada pelo Plenário logo que seja possível reuni-lo”.
A declaração do estado de emergência confere ao Chefe de Estado um poder legislativo
excecional – ainda que de limitada duração e sob audição do Governo e
autorização parlamentar – que, por derrogar o princípio da separação de
poderes, só pode ser utilizado para os fins
estritamente previstos constitucionalmente e não fazer do Presidente compartícipe
de poderes e responsabilidades próprias do Executivo. Com efeito, ao invés do
Governo, que responde politicamente perante o Parlamento e tem o dever de
informar regularmente o Presidente da República, este não é politicamente
responsável pelo exercício do seu poder, a não ser face ao eleitorado. Assim, não se percebe a declaração de Marcelo a assumir-se como o “o
maior responsável pelos erros da luta à covid-19”. Agrada ao Governo, mas não é
credível. Toda a gestão do combate à pandemia tem sido da competência e
responsabilidade do Governo, sem que o Presidente devesse interferir. Não
obstante e apesar de não poder existir responsabilidade sem “poder”, o
Presidente, sente-se responsável, mercê das intervenções que tem a tempo e fora
de tempo sobre a gestão da crise, sobrepondo-se comunicacionalmente tanto aos
especialistas como aos membros do Governo. Além disso, ele sabe que as
solidariedades se pagam com solidariedades e o Governo sempre tem acabado em
solidariedade com Marcelo.
Quanto à índole
preventiva do estado de emergência, sigo a leitura da CRP de Vital Moreira, mas
pergunto-me se, quando se verificarem as condições gravosas em mais um concelho
e mais outro, será sempre preciso novo decreto presidencial com os trâmites
constitucionais. Não estaremos, antes, já na iminência de perigo comunitário a
alastrar?
2020.11.04 –
Louro de Carvalho
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