quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Declaração de estado de emergência de natureza essencialmente preventiva

 

É do conhecimento geral que o Primeiro-Ministro propôs ao Presidente da República que decretasse a declaração um estado de emergência “de natureza essencialmente preventiva, para poder eliminar dúvidas jurídicas, quanto a quatro dimensões fundamentais”.

Por outro lado, o Governo, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 92-A/2020, de 2 de novembro, declarou “a situação de calamidade, no âmbito da pandemia da doença covid-19”, em todo o território nacional continental desde as 00:00 horas do dia 4 de novembro de 2020 até às 23:59 horas do dia 19 de novembro de 2020. Mais determinou restrições específicas para 121 concelhos, de acordo com “o critério do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, uniforme para toda a União Europeia, que define como situação de elevada incidência a existência de 240 casos por cada 100 000 habitantes nos últimos 14 dias”. E a este juntou o “de contiguidade territorial, na medida em que determinados concelhos, apesar de não se integrarem naquele critério do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, se encontram circundados por outros concelhos com um elevado número de casos”.

A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa Nossa”, diz considerar “acertada a estratégia decidida pelo Governo de adotar medidas mais restritivas somente para os municípios com maiores índices de contaminação” pela exigência que suscita aos respetivos moradores e empresas de esforço por “inverter a situação” e pelo que significa de incentivo aos demais concelhos “a manterem a sua situação controlada”. Mais entende que as novas medidas “são relativamente pouco intrusivas”, se comparadas com as do surto pandémico da primavera e com as adotadas noutros países por estes dias, “não se incluindo nelas, por exemplo, o recolher obrigatório à noite, que vários países decretaram” para travar “os eventos sociais noturnos e o seu elevado potencial de contaminação”. E conclui que poucas destas novas medidas “se traduzem verdadeiramente em suspensão de direitos”, como é o caso das eventuais “proibição de mercados de levante” e “obrigação de teletrabalho”, pelo que exigem a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República. Já as demais configuram “restrições mais ou menos severas a várias liberdades”, mas sem afetarem o “seu núcleo essencial”, podendo ser estabelecidas ou autorizadas por lei fora de estado de emergência. Todavia, a declaração do estado de emergência, “além de comprometer o Presidente da República na sua adoção, afasta eventuais dúvidas sobre a sua constitucionalidade”, como as infundadamente suscitadas a propósito da recente restrição da liberdade de deslocação entre municípios.

É evidente que estado de emergência que aí vem – diz o constitucionalista – fica longe da “amplitude da suspensão de direitos fundamentais” do de março e abril, que suspendeu várias liberdades, como a de deslocação, a liberdade de estabelecimento em várias atividades (cafés, restaurantes, etc.), a liberdade de culto e outras mais.

Porém, em meu entender, a declaração do estado e emergência que se avizinha, aliás como a referida Resolução do Conselho de Ministros, pela qual o Governo declarou a situação de calamidade, enquadra medidas excessivamente restritivas sobretudo para as pessoas mais vulneráveis e tem como pano de fundo uma pesada carga de culpabilidade para o cidadão comum. Com efeito, se os cidadãos foram aliviando a tensão e deslaçaram o compromisso com o combate ao vírus, também as instâncias governamentais e da administração pública deram sinais contraditórios, por exemplo ao permitirem uns eventos e proibirem outros de natureza similar sem explicarem devidamente em que consistiam as diferenças em termos de risco, se elas existiam efetivamente, como, por outro lado, definiram regras para comportamentos dentro de determinados espaços (vg: escolas), mas não acautelaram os ajuntamentos na sua envolvente. É confrangedor ver a acumulação de alunos junto ao portão duma escola e com entradas a conta-gotas. Depois, as notícias dão conta da detenção de centenas de pessoas que infringiram as normas do confinamento ou as do isolamento profilático, mas não há notícia de qualquer julgamento pela perpetração dolosa do crime de desobediência. E, ainda, além das incertezas dos cientistas, verificam-se as dúvidas – fundadas ou não – de eminentes constitucionalistas.    

Um outro aspeto que suscita “várias reservas” a Vital Moreira – e que emerge na epígrafe deste alinhavamento de ideias – é o caráter preventivo do estado de emergência ora proposto.

E o constitucionalista apresenta três motivos: a lógica constitucional deste estado de exceção é a resposta a “calamidades atuais ou iminentes”, não a situações verificáveis “num futuro mais ou menos indefinido”; o decreto presidencial declara “os direitos que ficam suspensos”, não autorizando o Governo fazê-lo “quando o entender conveniente”; e “o estado de emergência só é necessário para suspender o exercício de direitos”, devendo evitar definir restrições (menos gravosas, por terem de respeitar o núcleo essencial dos direitos afetados), cuja competência cabe ao legislador (reserva relativa do Parlamento, não podendo o Governo legislar, a não ser com autorização parlamentar: alínea b do art.º 165.º da CRP), “sob pena de se criar a ideia incorreta de que também estas só podem ser estabelecidas em estado de emergência”.

Relativamente ao segundo motivo, devo dizer que a redação dos decretos presidenciais de declaração do estado de emergência até agora publicados define claramente quais os direitos cujo exercício fica parcialmente suspenso. Porém, para o único que fica totalmente definido o teor, é o direito à resistência, ficando proibido todo e qualquer ato neste âmbito. Quanto ao mais, “podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes…”; “pode ser requisitada pelas autoridades públicas competentes…”; “pode ser determinado pelas autoridades públicas competentes…”; “podem ser estabelecidos pelas autoridades públicas competentes…”. Ou seja, não há uma definição taxativa do quando e como, tudo dependendo da avaliação dos executores.       

O estado de emergência deve ser declarado nos termos do artigo 19.º da Constituição, o qual define os termos em que pode ocorrer a “suspensão do exercício de direitos”. E tal suspensão só pode ocorrer “em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição” (n.º 1), ficando as autoridades com “competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional” (n.º 8).

O estado de sítio e o estado de emergência são estados de exceção e “só podem ser declarados, no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública” (n.º 2), sendo o estado de emergência declarado quando estes pressupostos “se revistam de menor gravidade” e apenas podendo “determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e garantias suscetíveis de serem suspensos” (n.º 3). Deve sempre respeitar-se o princípio da proporcionalidade, limitar-se, nomeadamente quanto à extensão e duração e meios utilizados, ao estritamente necessário e retornar-se, logo que possível, ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional (n.º 4). A declaração deve ser fundamentada e “conter a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o estado declarado ter duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações, com salvaguarda dos mesmos limites” (n.º 5). “Em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião” (n.º 6).

Só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares” (n.º 7).

Não sei se o n.º 6 foi devidamente acautelado aquando do confinamento na primavera ou se os órgãos do Estado não foram demasiado longe nas restrições em matéria religiosa e se não se limitaram a tolerar, às vezes com alguma dificuldade, as atitudes criativas das confissões religiosas. Tal como terá sucedido com a supressão ou a excessiva minimalização dos atos simbólicos do país e o funcionamento do Parlamento e dos Tribunais, beliscando o n.º 7 em parte. E não vi constitucionalistas a pronunciar-se então. O plenário do Parlamento poderia funcionar em espaço mais avantajado, bem como as audiências nos tribunais!

Nos termos da alínea d) do art.º 134.º da CRP, compete ao Presidente da República “declarar o estado de sítio ou o estado de emergência”, mas com a observância do estabelecido no art,º 138.º, que faz depender tal declaração de “audição do Governo e de autorização da Assembleia da República ou, quando esta não estiver reunida nem for possível a sua reunião imediata, da respetiva Comissão Permanente”, tendo de ser, neste caso, “confirmada pelo Plenário logo que seja possível reuni-lo”.

A declaração do estado de emergência confere ao Chefe de Estado um poder legislativo excecional – ainda que de limitada duração e sob audição do Governo e autorização parlamentar – que, por derrogar o princípio da separação de poderes, só pode ser utilizado para os fins estritamente previstos constitucionalmente e não fazer do Presidente compartícipe de poderes e responsabilidades próprias do Executivo. Com efeito, ao invés do Governo, que responde politicamente perante o Parlamento e tem o dever de informar regularmente o Presidente da República, este não é politicamente responsável pelo exercício do seu poder, a não ser face ao eleitorado. Assim, não se percebe a declaração de Marcelo a assumir-se como o “o maior responsável pelos erros da luta à covid-19”. Agrada ao Governo, mas não é credível. Toda a gestão do combate à pandemia tem sido da competência e responsabilidade do Governo, sem que o Presidente devesse interferir. Não obstante e apesar de não poder existir responsabilidade sem “poder”, o Presidente, sente-se responsável, mercê das intervenções que tem a tempo e fora de tempo sobre a gestão da crise, sobrepondo-se comunicacionalmente tanto aos especialistas como aos membros do Governo. Além disso, ele sabe que as solidariedades se pagam com solidariedades e o Governo sempre tem acabado em solidariedade com Marcelo.  

Quanto à índole preventiva do estado de emergência, sigo a leitura da CRP de Vital Moreira, mas pergunto-me se, quando se verificarem as condições gravosas em mais um concelho e mais outro, será sempre preciso novo decreto presidencial com os trâmites constitucionais. Não estaremos, antes, já na iminência de perigo comunitário a alastrar?

2020.11.04 – Louro de Carvalho

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