sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Empresas estão do lado da solução, não do problema

É a grande asserção de Rita Sacramento Monteiro, do grupo da ‘Economia de Francisco – Portugal’, em entrevista à Renascença e à Ecclesia, publicada a 22 de novembro, em que fala dos largos meses de experiência em que foi trabalhado o tema lançado pelo Papa Francisco e que veio a culminar com os três dias de debate, em encontro online, da parte de jovens de 120 países. Trata-se de jovens economistas, empresários e empresárias, professores, prémios Nobel, que responderam ao convite do Pontífice com vista à projeção de uma nova economia, que “faz viver e não mata”, economia inclusiva que pensa nas “pessoas” e na “casa comum”. E a entrevistada não só revisita, para o público, a experiência vivida, como aponta ao futuro, com uma larga rede que se mantém a trabalhar o tema fazendo ponte com outras organizações e lançando pistas de trabalho, ação e conceção dos caminhos da nova economia.

Sacramento Monteiro confessa ter recebido o convite “com muito entusiasmo” e sentindo-se perante “uma novidade” que trazia oxigénio, com “um horizonte mais largo”, de esperança, em contraste com discursos habituais – viciados ou pouco estimulantes ou tão complicados – que não se sabe como entrar neles e contribuir. E pensa que todos os que se sentiram movidos pelo evento se sentiram atraídos “porque têm vontade de fazer parte desta transformação do mundo”.

Os entrevistadores anotam que a entrevistada estudou na Universidade Católica Portuguesa (UCP), dirige, há 4 anos, os projetos de voluntariado e responsabilidade social de uma grande empresa portuguesa e está ligada ao movimento ‘iMissio’, que visa, no fundo, mudar através da digitalização a sociedade e a evangelização através da sociedade. E a questão que lhe levantam a partir desta experiência nova – um encontro que mistura gerações, ou seja, para jovens e de jovens, mas com uma espécie de tutoria dos mais velhos, dos que já são prémio Nobel, que também dão o seu contributo – é se é bom participarem todos digitalmente os 120 países com aquela maratona de 24h00, a entrarem todos sequencialmente.  

A isto Sacramento Monteiro responde com o sucesso de terem conseguido todos participar digitalmente e ter-se conseguido que o evento se organizasse e se terem todos preparado digitalmente. Com efeito, a pandemia reforçou a urgência da atenção a estes temas, olhando para a necessidade duma economia mais humana e que tem de encontrar outros possíveis caminhos, e acentuou alguns temas já identificados, mas que se tornaram “mais prementes”.

Depois, a pandemia trouxe muitas dificuldades atinentes à crise social e à emergência social de longa duração, mas também configura “uma grande oportunidade”, que já se desenhava anteriormente, com o discurso de que “o mundo precisava de mudar” e o discurso das “alterações climáticas”. Porém, o discurso papal vem colocar a questão noutros termos: “isto não é só uma crise ambiental”, “isto não é só um tema destes ou daqueles ou dos economistas ou dos ambientalistas ou dos ativistas”, mas um “tema de todos”, “uma crise socioambiental”.

Entre as 12 aldeias globais temáticas (onde houve dois temas que geraram perplexidade: ‘economia é mulher’ e ‘lucro e vocação’), a entrevistada diz ter escolhido o tema ‘Trabalho e cuidado’ tendo integrado a aldeia que olhou “o sagrado que é o trabalho e a importância do trabalho para a dignidade humana e que olhou para “todos os temas críticos desde o desemprego, às novas tecnologias, às novas formas de trabalhar”. E explicita que o que mais a atraiu foi “o olharmos para o cuidar como exercício” a fazer quando pensamos no trabalho, ou seja, como se cuida através do nosso trabalho, e para “todas as profissões ligadas ao cuidar”, que se tornaram críticas na pandemia.

Aponta a quase súbita atenção aos cuidadores informais, a que se dava pouco relevo, vindo a perceber-se que “são essenciais”.

No atinente aos dois temas ditos controversos – ‘economia é mulher’ e ‘lucro e vocação’ –, como a entrevista foi concedida antes do termo do evento, não soube dizer o que se iria encontrar nos aludidos três dias, mas sentia-se “muito entusiasmada e curiosa”, considerando tratar-se sobretudo do “marco de um caminho” e “princípio de muita coisa”. E mencionou: a rede internacional de colaboração de jovens, menos jovens e mais jovens ultrapassando a faixa etária para a ‘Economia de Francisco’; o canal para chegarem a Portugal, por exemplo, textos e trabalhos que estão a ser feitos noutras frentes; e a constituição do grupo da ‘Economia de Francisco – Portugal’. Isto, para lá da “Rede Cuidar da Casa Comum” e de “tantos movimentos que estão a trabalhar nestas frentes”, sendo que o novo grupo não quer ser “mais um, no sentido de criar entropia ou de grandes formalismos”, mas “uma rede que continua a trabalhar o tema, a fazer ponte com outras organizações e a lançar pistas”.

Questionada sobre a massificação do teletrabalho por via da pandemia, reconhece que se falou muito da “adaptação ao digital”, visto que as pessoas foram para casa, levadas pelo confinamento geral, e as que puderam continuaram a trabalhar. Porém, como muitos dos empregos se perderam, sem se contar, muitas pessoas “estão a atravessar uma fase difícil”. Ora, neste contexto, o grande contributo da ‘Economia de Francisco’ é trazer perguntas e “perguntas novas”. Por isso, Sacramento Monteiro entende que precisamos de mais tempo e de mais espaço para o tema do trabalho “para pensar com calma e colocar as perguntas certas”.

Observa que, por vezes, está muito extremado o discurso “entre trabalhadores e empregadores”, querendo uns “poder despedir com mais flexibilidade” e os outros querendo “condições mais dignas”, de modo que, às vezes, a tónica é vista só do lado das “exigências”. E, neste quadro, a grande novidade de se pensar “uma economia à luz de um santo que viveu há 800 anos, é ir à raiz dos temas, como São Francisco fazia e como este Papa tem proposto, e procurar as perguntas certas”, pois, na verdade, “o trabalho é essencial para a dignidade humana”, mas “não é o nosso absoluto”. E alguns, como lamenta, “absolutizaram o trabalho”.

Quanto ao facto de haver da parte das novas gerações uma atenção particular à vida familiar não querendo sacrificar a vida pessoal e familiar ao trabalho, à carreira e à ideia de que o trabalho está acima de tudo, a entrevistada adianta que, não querendo sacrificar tudo ao trabalho, “as pessoas veem-se em posições muito difíceis”, pois” cada um tem de descobrir onde é que traça o limite”, uma vez que é tanta a pressão sobre “o sucesso individual e profissional” que se vive com a marca desta expectativa. Por isso, a seu ver, a tónica tem de incidir no “sucesso coletivo”, na “excelência coletiva”, caso contrário não há “horários para nada” e anda-se “sempre dividido” a viver em tensão com a família e com as outras dimensões da própria vida. É por isso que, em relação ao trabalho, as pessoas “se sentem desgastadas, cansadas e divididas”, pelo que Jennifer Nedelsky, investigadora que acompanhou este percurso da ‘Economia de Francisco’, “é defensora de uma nova organização da sociedade” e propõe “o part-time para todos e 30 horas no máximo de trabalho e 22 horas para cuidar” – proposta desafiadora que põe em causa a organização da sociedade e se foca na pressão insustentável sobre as famílias, não estando os decisores muito sensibilizados para o que é “isto do cuidar das famílias, até porque muitas vezes não são eles que diretamente cuidam ou nunca fizeram voluntariado na vida”.

E Rita Sacramento Monteiro preconiza que precisamos de decisores mais atentos à dimensão do cuidar porque “só assim podem tomar melhores decisões e estar atentos a estas dinâmicas de equilíbrio e de uma vida mais feliz”, tal como precisamos – patrões e empregados – de olhar para a forma como gerimos o nosso trabalho e organizamos o nosso dia. Com efeito, como vinca, a ambição e o desejo de sucesso não trazem necessariamente felicidade e as outras dimensões do trabalho e da vida em sociedade ficam desequilibradas.

Há muitas pessoas que, ao contrário de outras que o podem fazer, não podem dizer “não” ao patrão, dado o ambiente de medo e de receio de retaliação que se criou em torno da precariedade e dos custos do trabalho, casa vez mais desvalorizado. Muitas delas têm mais que um trabalho e acumulam trabalho para poderem pagar as contas. Por isso, há que lembrar a muitos patrões “a importância do papel que lhes foi confiado de cuidar daquelas pessoas”, pois as suas atitudes “tem impacto na vida daquelas pessoas e na vida das famílias daquelas pessoas”.

Relativamente ao encontro cujo tema era ‘o amor como um critério de gestão’ de quando António Pinto Leite esteve à frente da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores, refere que “esse é um dos muitos sinais que houve no passado, nos últimos anos, que antecipam um evento como este”; observa que hoje “a palavra ‘amor’, padece de alguma banalização – “pobre palavra amor!” –, mas que é preciso recuperá-la na linha do que o Papa tem tentado fazer, pois o avanço da economia e da tecnologia “desumanizou-nos em muitas frentes, e hoje temos acesso a muitas coisas, a imensa informação, hoje conseguimos pensar temas e ter acesso a realidades de outros países, mas, em muitas dimensões, estamos mais pobres”; e, recordando que Santa Teresa de Calcutá dizia que “a pobreza que a assustava não era a material”, mas a dos países desenvolvidos (pobreza de relações afetivas, de pensamentos crítico, dum olhar ao outro), releva que o “amor como critério de gestão” é a base da reflexão da ‘Economia de Francisco’, explicitando:

É olharmos para a economia, que diz das relações de trabalho, das relações com os bens, olharmos para a ecologia integral, que diz das relações entre as pessoas e todos os seres vivos que há na terra e olharmos para isto tudo em conjunto, pensarmos isto em conjunto. De facto, a expressão ‘casa comum’ é a que melhor fala disto tudo e é muito simples para dizer, nós somos pessoas na terra a fazer um caminho, vivemos numa casa que é comum, percebemos que as alterações climáticas e até um vírus nos atinge a todos, só vamos conseguir fazer melhor e estaremos todos mais felizes trabalhando em conjunto.”.

Rejeita que seja utópica a visão centrada no amor e no cuidado, aduzindo que, apesar do ceticismo de muitos e más práticas de tantos em torno do lucro, muitas empresas, cristãs ou não (algumas são grandes multinacionais), já têm incluído “preocupações do cuidado com o ambiente, com as pessoas, com a forma como se contrata, como se paga, como se produz e que estão a dar lucro”. Com efeito, muito do setor privado – diz – tem feito muito também pela transformação do mundo, possibilitando o apoio a tantos projetos e dando empregos. Por isso, afirma que “as empresas não estão do lado do problema”, antes “estão do lado da solução”, havendo muitas que “incorporam as preocupações de cuidado” e “são empresas sustentáveis, rentáveis”.

Mais refere que a felicidade para os trabalhadores como critério de gestão empresarial será sempre fonte de maior produtividade e lucro, pelo que os administradores e gestores têm de passar a ocupar-se mais da felicidade dos seus colaboradores, ao contrário da pressão sobre trabalhadores e famílias que faz desembocar a empresa ou serviço num caminho perigoso.

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Oxalá que Rita Sacramento Monteiro se faça ouvir e as escolas de economia, gestão e direito se convertam ao ensino da boa economia e a consolidem! Que passe por aqui a cidadania!

2020.11.26 – Louro de Carvalho 

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