Di-lo Manuel Antunes – o criador do Departamento de Cirurgia
Cardiotorácica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, que dirigiu
durante 30 anos e onde não havia listas de espera – em entrevista à Renascença
e à Ecclesia, publicada no passado dia 15 de novembro, IV Dia Mundial
dos Pobres.
De médico com “o coração nas
mãos” passou a presidente da Cáritas Diocesana de Coimbra, “uma forma diferente
de cuidar do coração de quem precisa”, fórmula encontrada pelos entrevistadores
e que o entrevistado corrobora verificando a existência de “muita gente com muitas necessidades, sobretudo nesta
época em que vivemos”, mas observando que a instituição a que preside “já cá
estava muito antes da pandemia” e que encara este seu modo de servir como “uma
missão de cidadania”, havendo muita gente que “precisa de nós”, para o que se
precisa de tempo e capacidade.
Confessa ter havido algumas dúvidas, mas que Dom Virgílio Antunes o
convencera a assumir a liderança da enorme equipa que serve na Cáritas de
Coimbra, a maior Cáritas Diocesana do país: mais de 1000 pessoas a trabalhar diretamente
para ela, mais os voluntários; 140 serviços de assistência, de vários tipos (creches,
ATL, lares, clínicas) e um orçamento
de 20 milhões de euros. Dará trabalho, mas que “não se faz sozinho” e a
instituição “está estruturada, a funcionar bem”.
O prelado conimbricense
aduziu que era algo a que o médico estava habituado porque “geria uma equipa” e era conhecido, para lá da parte
médico-cirúrgica, pelo “estilo de gestão de unidades de saúde”. E, admitindo tratar-se
de “uma experiência interessante”, diz que, ao invés do que insinuou Dom
Virgílio, é realmente nova, pois implica “chefiar uma equipa maior”.
Por outro lado, revela que se vai alterar o modelo de gestão: dum
presidente que era a cabeça, o tronco e os membros da Cáritas, passar-se-á uma
equipa que inclui um gestor profissional, que será o coordenador-geral, fazendo
a comunicação entre as bases, os serviços na periferia, a prestação de cuidados
sociais e a Direção, a qual define os objetivos e os caminhos que a instituição
tem de seguir.
O mandato é de 4 anos e o novel presidente espera que a pandemia não se
prolongue. Todavia, crê que, mesmo depois de passar, pelo desastre económico
que gerou, haverá muita gente com dificuldades que não sentia antes: mais
desemprego; evidência de despesas que tiveram de se fazer e que os
contribuintes têm de pagar; dificuldades, mesmo que as pessoas voltem ao seu
emprego; desestruturação de personalidades, famílias, serviços, empresas. Ora,
se, já antes da pandemia, a Cáritas de Coimbra e instituições idênticas tinham
um campo muito alargado, porque o país é económica e socialmente débil, com as
consequências da crise pandémica tudo se tornará mais difícil. E o Estado não
pode acorrer a tudo (e pensa que nem é conveniente que o faça).
E, comparando com o SNS (Serviço Nacional de Saúde), diz:
“Enquanto continuo a pensar que o pilar da
prestação de cuidados tem de ser o Serviço Nacional de Saúde, aqui,
talvez, o pilar da prestação de cuidados sociais devem ser as Instituições
Particulares de Solidariedade Social”.
Dos vários projetos inovadores
da Cáritas de Coimbra que usam tecnologias para acompanhar idosos, destaca um “departamento muito ativo, de inovação e
comunicação, com muitos projetos, em cooperação europeia”, em que o robô
acompanha os idosos, “os cumprimenta e sorri, fala com eles”. E refere que
esta Cáritas diocesana, a nível nacional, neste tipo de atividade, se tem
salientado acima de outras instituições idênticas. A este respeito e
porque ainda não conhece bem todo o funcionamento da instituição, remete para a
página na Internet, onde se encontra uma impressionante lista de projetos
interinstitucionais, europeus.
Ora, vindo estas tecnologias a marcar o futuro, Manuel
Antunes entende que se pode avançar ainda mais, “com modos diferentes de
melhorar a vida das pessoas, utilizados pela Cáritas e que possam,
eventualmente, ser adaptados por outras instituições com as mesmas finalidades”.
Questionado se aceitaria um
cargo destes se não fosse crente, garantiu: a importância da fé nestas coisas;
e a eventual aceitação do cargo, mesmo que não fosse crente. Isto, porque “não podemos diabolizar os não crentes”, pois muitos até
“se comportam melhor do que alguns crentes. Não obstante, revela que “a fé teve
um impacto muito grande”, pois Dom Virgílio conhece-o pelas atividades que tem
desempenhado na paróquia e, sendo esta instituição da Igreja, “faz todo o
sentido que esteja à frente dela alguém que não venha dizer ‘eu até sou ateu,
mas estou aqui para prestar este serviço cívico’.”.
Aponta o doutor Carlos João, uma pessoa talvez ainda mais intensamente
ligada às atividades da Igreja, como sendo quem vai assumir o papel de administrador
executivo, estando mais no campo, a estabelecer a ligação entre as diversas
atividades – “que são muito extensas, cobrindo todo o distrito de Coimbra e um
bocadinho mais além”. E, pensando que o trabalho resultará, não sabe se a obra
pode crescer muito mais, mas, pelo menos, acontecer-lhe-á como a um corpo, que,
“a partir de certa altura, não pode crescer mais”, mas “precisa de ser fortalecido”.
***
Tendo o seu método de trabalho
sido inspirado num modelo da África do Sul, onde estudou e começou a exercer,
os entrevistados colocaram-lhe a questão se o ser católico influencia a forma
como exerce medicina, como se relaciona com os doentes. E o entrevistado diz
que influencia sempre. Com efeito, “temos essa
obrigação, é um dever, a fé que nos move, também”.
E, depois de relatar a pergunta que lhe fizeram no concurso para professor,
o equivalente catedrático: “O senhor diz
que é católico e está num país que é eminentemente protestante. Acha que isso
vai interferir na sua atividade?” – a que respondeu que “não”, explica:
“A Cáritas de Coimbra é regida por
princípios próprios, há um elemento do clero, o capelão, que vai verificar se a
instituição também obedece, além de tudo o resto, aos princípios que norteiam a
doutrina da Igreja Católica na condução do ‘negócio’ que é esta prestação
de cuidados sociais a quem necessita, muitos deles não serão crentes. Não lhes
vamos prestar os cuidados de maneira diferente.”.
Ou seja, fica subentendido que a fé não leva a distinguir os destinatários
da ação, mas a colocar maior e melhor atenção no trabalho e na intenção e no
espírito com que este se faz.
Sendo a entrevista divulgada
no domingo em que se assinala o IV Dia Mundial dos Pobres, instituído
pelo Papa com vista à tomada de consciência da necessidade do compromisso
social das comunidades católicas, Antunes foi interpelado em que medida como
presidente da Cáritas de Coimbra se sente inspirado pela figura de Francisco na
relação com os mais necessitados e na atitude de misericórdia. A isto referiu:
“O Papa, numa recente encíclica, referiu a
caridade como sendo um dos três princípios importantes da atividade da Igreja. Normalmente
as pessoas veem a atividade da Igreja como sendo celebrar umas Missas, uns
casamentos e uns batizados de vez em quando, e o Papa Francisco tem realmente
despertado em todos nós – os católicos, os cristãos em geral e até os não
crentes – um respeito muito grande pela maneira como tem feito uma abordagem
muito menos clássica, muito menos rígida.”.
Assim, este Papa, que tem impressionado o mundo, será lembrado por muito
tempo, pelo resto da história, não só pelos católicos, mas por todos os cristãos,
pela sua influência em todos nós.
Mais afirma que, sendo pelo testemunho que se marca a diferença, “o Papa tem
testemunhado e marcado essa diferença”. Só que as pessoas que têm muitas
necessidades e têm de recorrer a estas instituições, pela forma como a vida as
destratou, “às vezes tendem a perder a fé”. Ora, não sendo fácil, mas necessário,
que as pessoas que assumam as atividades da Cáritas possam ajudar as pessoas
também nesta matéria, é possível que o capelão da Cáritas ajude a pôr também
nas nossas atividades este fator, para que as pessoas tendam a restaurar e a
recuperar a fé que possam ter perdido devido às dificuldades que a vida lhes
trouxe.
***
Chamado a pronunciar-se
sobre o SNS e a forma como tem respondido à pandemia, admite que “seria sempre possível fazer melhor”. Confessa que foi
crítico do funcionamento e da estrutura do SNS, residindo o problema na
deficiência de estruturação e de gestão. Porém, com as coisas completamente
diferentes neste momento, aponta que se fala da falta de camas, ventiladores,
médicos, enfermeiros, como se pudéssemos ter (nenhum país tem, muito menos um
país economicamente frágil como Portugal), tudo o que
é preciso, à espera de que venha um novo terramoto de Lisboa, para dar resposta
a tudo o que “uma desgraça acarreta”; e que “isto verdadeiramente para a
humanidade é uma desgraça”. Afirma que havia tanto desconhecimento nesta
pandemia e na forma como evolui que “por muito bem preparados que estivéssemos
havia sempre qualquer coisa que não podia correr bem”. Entende que o que não correu
bem no início foi não ter sido possível calcular “que não precisávamos naquela
altura de tantos ventiladores, que depois não funcionavam”. Da segunda vaga diz que, tendo-se
percebido que a primeira quase destruiu a economia do país, para “quem tem de
tomar decisões deve ser muito difícil”. Ora, apesar de muito crítico dos atuais
responsáveis noutras alturas, agora entende que “tem de se ter algum cuidado”. E
exemplifica com esta coisa muito sensível, que é saber se se proíbe a
circulação de pessoas ao sábado e ao domingo após as 13 horas ou após as 15, o que
permitia aos restaurantes venderem almoços àquela hora, mas que “é muito
difícil tomar uma decisão”.
Quanto à falta de assistência
aos doentes não covid, notória na primeira fase da pandemia e mais acentuada
agora, assinala como algo caricato que, ao fim duma semana da pandemia, “tínhamos os hospitais completamente
parados”, o que resultou naquele “número de mortos a mais do que o habitual na
média dos últimos cinco anos” e que terá a ver com o facto de que “houve muitas
outras doenças – tão mortíferas, ou talvez até mais mortíferas do que a
pandemia – e que não foram cuidadas”. Por isso, critica a relutância a concitar
o apoio dos privados e do setor social. É certo que as estruturas privadas não
foram preparadas para doentes covid, mas podiam fazer o tratamento das outras
doenças que não podiam ser tratadas nos hospitais, quando reservaram camas para
covid. E, neste aspeto, saúda a ligeira mudança na política, mas teme que seja
tardia, pois “as medidas que tomarmos agora só vão ter efeito daqui a um mês ou
dois”, em que estaremos novamente na fase descendente da pandemia e a vacina
ajudará a resolver. Contudo, os problemas sociais “vão ficar como sequelas,
como cicatrizes, desta crise enorme”.
Sobre a perda de vidas, diz que a morte duma pessoa é sempre complicada.
Operou 35 mil doentes e esteve envolvido em mais operações como diretor de
serviço. Assenta em que, mesmo que a mortalidade seja de 1% (e é uma das
mais baixas que pode encontrar, mesmo em centros de grande envergadura, no
estrangeiro), 1% de 50
mil ainda é qualquer coisa como 500 mortos. Por isso, se estava alguém prestes
a morrer, embora lhe apetecesse fugir, “fazia questão de estar lá ao pé”, pois
era a sua obrigação “esperar fazer mais qualquer coisa até ao último minuto”. E
vinca:
“É muito difícil para qualquer pessoa,
independentemente da fé, se acredita na vida que há de vir, se acredita em
Deus, ou não acredita em Deus, mesmo tendo em conta que todos havemos de morrer
(…) e alguns destes que eu disse também já estavam praticamente no fim de vida.
Mas também assisti à morte de crianças que ainda não tinham começado a sua
vida, e é muito difícil, porque nos altera psicologicamente muito. Naturalmente
tínhamos de ultrapassar isso, e eu dizia sempre ‘temos de nos lembrar que não
somos deuses e que não temos cura para todos’. Jesus Cristo também assistiu à
morte de alguns à volta dele, e não achou que devia intervir sempre, não é?”.
Por isso o que procurou sempre foi que o momento fosse de silêncio, de
sagrado, para quem achava que podia rezar; e ele próprio rezava, mesmo que
apenas interiormente.
Relacionada com isto vem a
questão da eutanásia e o facto de o Parlamento ter entre mãos o projeto de lei
sobre o tema. O
entrevistado declara-se inequivocamente “contra a eutanásia, contra terminar
deliberadamente com a vida ou ajudar alguém a terminar com a sua vida”. E frisa
que, se formos numa ponte e “virmos alguém a tentar ou a fazer menção de se
atirar para baixo, para se suicidar, temos obrigação de fazer exatamente o
contrário, de tentar convencer aquela pessoa que há sempre uma solução para todos
os problemas e encaminhá-la depois”.
E, referindo que assume esta posição como um princípio de vida, adiciona
como abonatório o facto de a Ordem dos Médicos ter feito saber – e alguns não
são religiosos, não são crentes – que os médicos foram criados e ensinados a “fazer
tudo para preservar e melhorar a vida das pessoas, e não ao contrário”. Diz nunca
ter desligado uma máquina, porque a natureza “acaba sempre por seguir o seu
caminho” e “os desígnios de Deus acabam sempre por prosseguir”.
Esclarece que é uma coisa diferente dar a “um doente que está mesmo
terminal, que tem muitas dores”, “uma morfina que o põe a dormir e que
provavelmente até vai abreviar o momento da sua morte”. Com efeito,
frequentemente se confunde eutanásia com estes métodos que se destinam a
suavizar e a tirar o sofrimento no momento da morte. E vinca:
“Nós não queremos dar ou abreviar a morte ao
doente, estamos a torná-lo confortável para que possa morrer em paz, para
evitar que o último momento possa ser até de descrédito, pensar ‘meu Deus,
porque é que me deixas, porque me abandonaste?’.”.
Por conseguinte, acha incorreto o momento escolhido pelo Parlamento para
legislar sobre a matéria, “porque estamos preocupados em salvar vidas”. Apesar
de, a seu ver, não haver “nenhum momento politicamente correto para isso”,
considera que “este é ainda pior”. E, achando que a política não tem momentos
corretos, diz que, “às vezes, aproveitar os momentos politicamente incorretos
serve a política para alguns fins”, já que “muitos políticos querem ser
politicamente incorretos para, exatamente, servir os seus fins”.
***
É de refletir sobre a variedade e complexidade dos temas abordados na
entrevista – desde a ação social da Igreja, do Estado e da Sociedade à pandemia
e ao sentido da vida e da morte, passando pela crítica ao sistema de saúde e à
condução política do país. E vale a pena consultar a página da Internet da
Cáritas de Coimbra, surpreendente como já o era em 1974, quando lá estagiei sob
a direção do Padre António Sousa, hoje pároco de Santa Clara, e do então diácono
António Jesus Ramos, hoje pároco de São Bartolomeu, capelão do IPO de Coimbra e diretor do “Correio de Coimbra”, aos quais presto a
minha homenagem.
2020.11.18 –
Louro de Carvalho
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