É a
verificação veiculada por artigo de Tiago Soares na “Revista” do “Expresso” do
passado dia 13 deste mês de novembro, ancorado em dados da Direção-Geral da
Política de Justiça e em afirmações de várias personalidades ligadas à
administração da justiça.
Assim, a
grande novidade é que os tribunais judiciais estão a acelerar, ao passo que os
tribunais administrativos e fiscais estão a ficar cada vez mais para trás.
A
reforma da justiça é um desiderato que figura nos programas dos diversos
partidos políticos e nos sucessivos programas de governo, sem que os resultados
sejam de se lhes tirar o chapéu.
Em junho
de 2019, o Presidente da República português, falando aos jornalistas após uma
reunião com Linos-Alexandre Sicilianos, presidente do Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem, em Estrasburgo (França), considerando que “uma justiça lenta não é uma
justiça justa”, dizia que era imperioso “acelerar a justiça”, tanto em Portugal
como na Europa. E, já em janeiro de 2016, Marcelo Rebelo de Sousa tinha
desenvolvido o tema ao declarar, em Coimbra, no discurso que fez no Fórum Anual
de Graduados no Estrangeiro, que a questão “fundamental” da nossa justiça “é a
sua lentidão, sobretudo nas áreas muito especializadas” e que “uma justiça
lenta é uma justiça que é um travão enorme em termos culturais, económicos e
sociais”.
Porém,
revestiu-se de cautela referindo que o problema não está nos profissionais,
cuja qualidade é “muito elevada”, mas resulta de “questões organizativas”.
Evidentemente,
é notória a necessidade da reorganização da justiça e dos tribunais, o que as
sucessivas reformas não têm resolvido de forma eficaz circulando num cenário de
avanços recuos, bem como a falta de meios para o sistema judiciário poder
funcionar a contento.
Além
disso, o parque judiciário está em supina degradação. E tudo isto parece passar
ao lado dos operadores da justiça imputando-se as responsabilidades aos
“políticos”, como sói dizer-se. Resta saber se a sujeição a trabalho em
condições de degradação da justiça sem uma concertada tomada de posição perante
o órgão de soberania que deve dotar de recursos o sistema, limitando-se a
emitir para a opinião pública uns quantos intermitentes queixumes, virá a desresponsabilizar
os atores da justiça. É, ainda, de saber se a elaboração de leis confusas e
ambivalentes não poderia embater com o travão crítico do poder judicial ou ser
acautelada a montante. Ao invés, as leis são mimadas com uma série de dados da
dita jurisprudência e dos pareceres de peritos judiciais, sobretudo
procuradores, que mais confusão lançam no panorama judiciário. E, se juntarmos
os casos de comentários levianos e decisões pouco fundamentadas, ou servidas
por uma fundamentação labiríntica, bem como situações de corrupção no sistema,
não poderemos ilibar dos vícios da administração da justiça os seus
profissionais.
É
verdade que “Portugal continua a investir menos na justiça do que muitos dos
países europeus”, mas a culpa não é só dos governos: é também dos profissionais
do sistema judiciário, que não puxam pelo poder executivo, se acomodam,
parecendo que lhes basta a justa remuneração, apenas almejando melhores
condições de trabalho (quando não, vem a greve), mas não prescindindo da sua
afirmação de poderio, nem sempre contida.
Apesar
de tudo, como afirma Tiago Soares, “a justiça nacional tornou-se mesmo mais
rápida”. E, se “continua mais tartaruga do que lebre”, por outro lado, “os
números mostram que, pelo menos, os tribunais judiciais ligaram o turbo nos
últimos anos – os tribunais administrativos e fiscais nem tanto”. Talvez seja
interessante saber como e porquê.
Segundo os dados da predita Direção-Geral da Política de
Justiça, o número de processos pendentes nos tribunais judiciais diminuiu 11,1%
de 2018 para 2019 (cerca
de 94 mil processos a menos), sendo esse já o sétimo ano consecutivo em que se registou uma redução
deste tipo. Todavia, o número de casos parados continua a ser assustador, mais
de 756 mil, ainda que o saldo entre processos novos e terminados seja positivo
em toda a linha: penal, cível e laboral.
Manuel Soares, presidente da ASJP (Associação Sindical dos Juízes
Portugueses), considera
que “os números da redução de pendências – de quase metade em meia dúzia de
anos – e de aumento da rapidez são indesmentíveis” e “não vê como os números
positivos possam ser postos em causa”. E justifica “a maior rapidez e
eficiência” com “uma conjugação de fatores”: “medidas legislativas de
simplificação processual e melhor organização do sistema e gestão de meios, com
a concentração dos tribunais em comarcas maiores; mais especialização dos
juízes; informatização e desmaterialização dos processos; mecanismos mais
eficientes de gestão dos recursos humanos; e uma atuação mais profissional dos
conselhos superiores e dos órgãos de gestão das comarcas”.
Por sua vez, António Ventinhas, presidente do SMMP (Sindicato dos Magistrados do
Ministério Público), concordando
com os juízes, observa que há o contributo de dois momentos cruciais, nos
últimos anos, para a maior velocidade do sistema: as alterações de 2013 ao
Código Civil, que “agilizaram” e “desbloquearam” processos no quotidiano; e a
reforma do mapa judiciário de 2014, que “especializou tribunais por todo o
país” e os concentrou onde eram necessários à população. Mesmo assim, “existem
muitos constrangimentos por resolver”, sobretudo em áreas como a criminalidade
económica e financeira, pois o trabalho de tribunal depende de diligências
prévias que não dizem respeito diretamente à sala de audiência. E, não havendo
os recursos para a investigação criminal, o processo ressente-se e atrasa-se. E
o magistrado aponta:
“Faltam quadros na Polícia Judiciária.
Pessoas para realizar perícias, por exemplo. Os processos ficam parados na
polícia muito tempo antes de chegarem aos tribunais.”.
Porém, Luís Menezes Leitão, bastonário da OA (Ordem dos Advogados), dizendo que as melhorias não são
“significativas”, não se impressiona com os recentes indicadores europeus.
Reconhece melhorias na eficiência dos tribunais judiciais nas decisões de 1.ª
instância, mas “nada de extraordinário que deixe as pessoas convictas de que
vão ter o assunto resolvido num curto prazo”, pois “continua a haver muitos
atrasos”. E refere que “os prazos de decisão dos recursos [após a primeira instância] foram de facto muito reduzidos, mas
porque os recursos foram fortemente restringidos”, sendo “muito difícil
recorrer, designadamente ao Supremo Tribunal de Justiça.”
Também António Marçal, presidente do SFJ (Sindicato dos Funcionários Judiciais), olha para as estatísticas com
desconfiança por não se contabilizarem “fatores como o afastamento dos cidadãos”
[no recurso à justiça], os custos processuais ou o apoio judiciário
desadequado. E elenca os problemas que, não estando na letra da lei, contribuem
para a lentidão e para ineficiência da justiça: “falta de funcionários,
equipamentos informáticos obsoletos, edifícios degradados” – pelo que pede à
tutela maior “simplificação dos processos de trabalho, com novos meios
tecnológicos eficientes”.
Com a celeridade dos processos judiciais contrasta o atraso dos
processos administrativos e fiscais – o parente atrasado do sistema. Com
efeito, Portugal é o segundo país a nível europeu que mais tempo demora a decidir
um caso deste tipo na 1.ª instância (928 dias, quando a média é de 323), tendo apenas acima Malta – o que o presidente
da ASJP considera “problema gravíssimo que tem mais de 25 anos e é conhecido de
toda a gente”. Se agora “a capacidade instalada é suficiente para tratar os
processos que entram todos os anos”, não o é para lidar com “os atrasados que
se acumularam”. Efetivamente os dados do Ministério da Justiça mostram que, a
este ritmo, o sistema iria precisar de 745 dias para concluir todos os
processos administrativos que estão pendentes e de 904 dias para fechar os
processos fiscais. Mais: de 2018 para 2019, a duração média dos processos
findos de 1.ª instância passou de 25 para 30 meses nos tribunais
administrativos e de 37 para 40 meses em relação a matérias fiscais.
Frisando que o problema é crónico, António Ventinhas, afirma
que os tribunais administrativos e fiscais “sempre tiveram menos atenção e
recursos”, o que se complicou com o acréscimo de competências em várias
matérias. Assim, Menezes Leitão, vincando que a situação continua “dramática”,
diz que “os cidadãos estão desprotegidos de abusos de poder por parte do
Estado.”
Já Manuel Soares considera que a solução do problema “é
facílima e barata” e que, se ainda não foi posta em prática, é porque “a força
do lóbi das arbitragens privadas” transformou essa prática “num negócio de
milhões que floresce à custa da ineficiência dos tribunais”. E, António
Ventinhas, embora mais contido nas críticas à justiça privada, admite:
“Poderá ser um campo de atuação em matérias
muito específicas, que envolvam grandes contratos internacionais em que se
apliquem várias legislações de vários países em matérias muito técnicas. Mas a
generalização das arbitragens pode levar a um desinvestimento geral na justiça.”.
Em suma, se os tribunais administrativos e fiscais não são
alvo de investimento para se irem aliviando, recorre-se mais à arbitragem
privada. E, se Ventinhas pensa que o investimento público não acontece porque,
“se o Estado aumentar a capacidade, pode ver as suas próprias decisões contestadas
e impugnadas mais rapidamente”, Soares opina que está em causa o “interesse
duplo” estatal e “a vantagem de controlo que a ineficiência do sistema lhe
garante”.
Há outrossim mais problemas na nossa justiça: a dificuldade
de acesso por excessivamente cara e pela dificuldade que passa para a perceção
dos cidadãos sobre a sua eficácia e imparcialidade.
Há consenso sobre o custo excessivo da justiça. E Menezes
Leitão lembra que a “perceção das pessoas” quanto ao bom funcionamento dos
tribunais é de “extrema importância” – ou seja, as melhorias dos números não
substituem a confiança dos cidadãos no Estado de Direito.
O Eurobarómetro coloca Portugal como o 7.º país da UE onde
mais se duvida da independência do poder judicial. Mais de 40% das pessoas atribuem-no
à influência dos poderes políticos e económicos e mais de 35% adicionam a isso
a ideia de que “o status e
a posição dos juízes não lhes garante suficiente independência”. E o “custo
excessivo” é comprovado pela Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça,
que mostra que a justiça em Portugal é paga a peso de ouro: preço demasiado
caro para as garantias que dá e para a velocidade com que atua. Assim, o valor
das custas judiciais (montante
obrigatório para iniciar um processo) é dos mais altos da Europa: por exemplo, para recuperar uma
dívida de 3 mil euros, há que pagar a taxa de 200 euros (só na Turquia, Estónia, Letónia,
Suécia e Alemanha se paga mais). Por outro lado, faltam assessorias técnicas para juízes e procuradores,
apesar de previstas na lei desde 2014, altura em que o CSM (Conselho Superior da Magistratura) ficou de iniciar um concurso público
para funcionários com essas funções, concurso que ainda decorre. Seis anos é
demasiado tempo!
Ainda é cedo para avaliar o impacto da pandemia no quotidiano
dos nossos tribunais. Os dados do 1.º semestre deste ano mostram que diminuiu o
número de casos pendentes, mas que também foi anormalmente baixo o número de
processos a entrar, sendo que, neste aspeto, há divergência de apreciação.
Enquanto Ventinhas garante que, “ao contrário do que se diz, os tribunais não
estiveram parados” e que o confinamento serviu para “arrumar a casa” no
atinente a muita burocracia antiga, tendo o sistema “sabido adaptar-se”, “apesar
das restrições, Menezes Leitão adverte: “A
pandemia suspendeu imensos processos, por isso acredito que a rapidez média na
decisão dos processos tenha sido afetada”.
Com tudo isto e se acrescentarmos que há a perceção de que a
justiça funciona para os pequenos, mas não para os grandes e poderosos, está diluída
nos megaprocessos e ávida de espetáculo e protagonismos, como é que a badalada
crença na justiça não pode deixar de soar a oco e inútil? Com efeito, justiça
sem recursos humanos e logísticos suficientes, justiça lenta, quase inacessível,
cara, sujeita a lóbis privados, certa para uns e ineficaz para outros, perdida
na complexidade e no espetáculo ou na arrogância e não imune à corrupção não é
autêntica Justiça!
Bem pode o supremo magistrado da nação clamar que se
investigue tudo até às últimas consequências, custe o que custar, doa a quem
doer. O sistema é refratário e não sei se interessa mesmo alterá-lo
substancialmente. É que era precisa outra política de justiça que levasse a que
a justiça fosse universal, eficaz, imparcial, segura, célere e administrada
exclusivamente pelos poderes públicos, pois é um dado relevante da soberania,
que é o âmago do poder político que “pertence
ao povo e é exercido nos termos da Constituição” (art.º 108.º da CRP).
2020.11.16 – Louro
de Carvalho
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