domingo, 22 de novembro de 2020

No fim dos tempos, tudo se decide entre os imperativos “Vinde” e “Ide”

 

No XXXIV domingo do Tempo Comum e último do Ano Litúrgico, celebra-se a “Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo”, na sequência da reforma litúrgica pós-conciliar, que procedeu à alteração da designação da “Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei”, instituída pelo Papa Pio XI, a 11 de dezembro de 1925, pela Carta Encíclica “Quas Primas”, e à sua transferência do último domingo de outubro para este dia para coroar o Ano Litúrgico.

Pio XI, que fundara a Ação Católica em 1922 (pela Encíclica “Ubi Arcano Dei) para que o fermento do Evangelho chegasse, pela voz e mão dos leigos, às pessoas e lugares aonde a Hierarquia não conseguia chegar, instituiu a festa, naquele tempo de sombra e turbulência, com o objetivo de incrementar a militância católica e levar a sociedade a imbuir-se dos valores do cristianismo. Era a grande festa da Igreja militante, em que os apóstolos leigos recebiam o mandato da Hierarquia para trabalharem no apostolado – estava longe, mas já no horizonte, a autonomia da ação laical que a Constituição “Lumen Gentium” e o Decreto “Apostolicam Actuositatem” viriam a consagrar – antecedendo a Festa de Todos os Santos, grande celebração da Igreja triunfante, e o Dia os Fiéis Defuntos, a grande Comemoração orante da Igreja purgante. Era uma compartimentação demasiado estanque, visto que toda a Igreja peregrina já se assume triunfante por força da Ressurreição de Cristo e na esperança certa e jubilosa da ressurreição de cada um dos seus membros no fim dos tempos, tal como se sente purgante, já que necessita, por causa do erro e do pecado, de permanente contrição e consequente reforma de vida. Por outro lado, tal como entre nós há uma esplêndida forma de apostolado e militância, a da Oração, também os santos do Céu e as almas do Purgatório (e estas estão na esperança, ainda que sofrida, do triunfo celeste), por sua poderosa intercessão prestam um militante auxílio à militância da Igreja peregrina na Terra. Só os santos é que não precisam de purgação penitente, mas a sua intercessão confere um auxílio à nossa ânsia de mudança de vida.       

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No Ano A, a perícopa evangélica assumida na celebração litúrgica (Mt 25,31-46), impressionante descrição do juízo final no termo do discurso escatológico, é o corolário das três parábolas precedentes: a do mordomo fiel e do mordomo infiel (cf Mt 24,45-51); a das virgens previdentes e das virgens néscias (cf Mt 25,1-13); e a dos talentos (cf Mt 25,14-30). Nos quatro segmentos textuais, surgem dois grupos de pessoas que tiveram comportamentos diversos enquanto esperavam a vinda do Senhor, mas agora o hagiógrafo mostra qual será o fim definitivo dos e das que se mantiveram e dos e das que não se mantiveram vigilantes e preparados/as para a vinda do Filho do Homem “na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos”.

Mateus mostra à comunidade dos crentes – com a linguagem veemente dos pregadores epocais – o que espera, no final da caminhada, tanto quem se manteve vigilante e viveu de acordo com os ensinamentos de Jesus, como quem se esqueceu dos valores do Evangelho e conduziu a vida de acordo com outros interesses e preocupações.

A descrição parabólica do juízo final começa com uma introdução (vv. 31-33) que apresenta o quadro: o “Filho do Homem” sentado no seu trono, a separar as pessoas umas das outras “como o pastor separa as ovelhas dos cabritos”. É a figura do Rei-pastor, muito longe da figura do Rei tirano, déspota ou mero senhor temporal das nossas monarquias imperiais ou régias. Seguem-se dois diálogos, um, entre o Rei e as ovelhas, à sua direita (vv. 34-40); e outro, entre o Rei e os cabritos, à sua esquerda (vv. 41-46). No primeiro, o Rei, com o imperativo “Vinde(deûte), acolhe as ovelhas (os eleitos) e convida-as a tomar posse da herança do Reino, ao passo que, no segundo, o Rei, como imperativo “Ide(poreúesthe), afasta os cabritos (os réprobos) e impede-lhes a tomada de posse da herança do Reino. Por fim, vem um cenário descritivo conclusivo (v. 46):

Estes irão para o suplício eterno e os justos para a vida eterna”.

Entre os preditos diálogos, como sugere Dom António Couto (vd Jornal da Madeira, de hoje), Bispo de Lamego, surge a ação da “Palavra”, o dizer (v. 34-45), distribuível em duas vagas: um dizer positivo, “sim” (vv. 34-40); e um dizer negativo, “não” (vv. 41-45). De igual modo, as duas vagas da ação de dizer “sim” e de dizer “não” são consonantes com a ação de “Fazer” (v. 40) ou de “Não fazer” (v. 45). Com efeito, a declaração afirmativa de Jesus: “Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era estrangeiro e recolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estive doente e visitastes-me, estava na prisão e viestes ter comigo(vv. 35-36), “tem um alcance quase incontornável e insuperável, que não se confina neste pequeno imenso texto de Mateus, mas se insinua nas pregas da Bíblia inteira, linhas e entrelinhas”.

Mais: diz-se que as ovelhas são benditas do Pai do Filho do Homem, mas não se diz quem é o agente da maldição dos cabritos, o que sugere que a bênção vem de Deus, enquanto a maldição vem do ser humano que se deixa atrair pelos interesses daqueles para quem foi criado o fogo eterno – o demónio e os seus anjos. Isto pode muito bem significar que Deus, como autor da bênção, reina e salva, mas não é Ele que define ou gera a condenação. Esta é latae sententiae, não é preciso ato condenatório, apenas a declaração do estado a que os malditos se autovotaram.      

Por outro lado, o evangelista põe nos lábios de Jesus a asserção de que o Reino eterno, o Céu, foi preparado para nós, enquanto o fogo eterno não foi preparado para os homens, mas para o demónio e seus anjos (i diabólôi kaì toîs angélois autoû). Ou seja, até depois da morte, os pecadores impenitentes usurparão um lugar que não foi pensado para eles, um espaço que não é seu.  

O critério definido pelo Rei para a inclusão e para a exclusão é, respetivamente, a atitude de amor (compaixão, dedicação entrega) aos irmãos, em que Jesus Se revê, que estão em situações dramáticas de necessidade, ou o desprezo, a indiferença e a desatenção para como eles. Não é preciso chegar à exploração, à marginalização ou ao descarte – que serão bem piores. Na verdade, Jesus identifica-Se com os pequenos, os pobres, os débeis, os marginalizados, pelo que manifestar amor e solidariedade para com estes é fazê-lo ao próprio Jesus; e manifestar egoísmo e indiferença para com eles é fazê-lo ao próprio Jesus.

Em sentido genérico, a palavra “irmão” designa qualquer homem, caso em que a exortação de Jesus se dirige aos que querem entrar no Reino para que vão ao encontro de qualquer homem que tenha fome ou sede, que seja peregrino, que esteja nu, doente ou na prisão, para lhe manifestar amor e solidariedade; e, em sentido restrito, a palavra “irmão” designa os membros da comunidade cristã. Porém, os dois sentidos não se excluem e Mateus tem em mente as duas realidades, já que “a caridade bem ordenada começa por casa” (charity begins at home).

Com os dados que este passo do Evangelho nos apresenta, fica evidente que “estar vigilantes e preparados” (o grande tema do discurso escatológico dos capítulos 24 e 25) consiste, principalmente, em viver o amor e a solidariedade para com os pobres, os pequenos, os desprotegidos, os marginalizados. É esse o critério que decide a entrada ou a não entrada no Reino de Deus.
A cena do juízo final não é uma descrição exalta e fotográfica do que acontecerá no fim. Mateus não é repórter, mas o catequista a instruir a comunidade sobre os critérios e as lógicas de Deus, para deixar claro que Deus não aprova uma vida guiada por critérios de egoísmo, onde não haja lugar para o amor a todos os irmãos, particularmente aos mais abandonados, famintos, desprotegidos, pobres, pequenos e débeis. E, como Cristo Se identifica com estes todos, que são membros de Cristo, dizer que se ama Cristo e não viver do jeito de Cristo, no amor a todos os homens, é mentira e incoerência.

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Surge o Filho do Homem, o Pastor-Rei, que é Jesus, o Senhor, que reúne e cria, separando (Mt 25,31-33), como no texto da Criação (vd Gn 1,1-2,4a), e cuja nota maior é a mansidão, mas que domina os animais, separando os mansos (ovelhas) dos violentos e orgulhosos (cabritos). Mas, como sustenta o prelado lamecense, esta ação de separação só ocorre no entardecer da vida e da história, tal como no caso do trigo e da cizânia da parábola (Mt 13,29-30-31.36-43), sendo certo que João Batista anunciara um Messias que vinha aí, já e em força, com o machado e a pá de joeirar (cf Mt 3,10.12) para proceder ao ajuste de contas com aquela geração má e perversa.

Com efeito, a parábola do juízo final, que difere para o final do Evangelho e da história a separação “já e em força” proclamada por João, mostra em Jesus um Messias, Rei e Senhor, que não comunga da nossa apetência pela vingança, mas que vem circundado da poderosa mansidão do Servo do Senhor (vd Is 42,1-4), a mais longa citação do Antigo Testamento (AT) que o Evangelho de Mateus faz em 12,18-21, retratando com ela Jesus, o Rei manso e novo que desconcerta João Batista. O texto de Isaías diz que o Servo do Senhor “não fará ouvir desde fora a sua voz”, fazendo-a ouvir desde dentro, “aproximando-se das pessoas”, descendo ao nível delas, amando-as, salvando-as, ou seja, assumindo por inteiro a identidade deste Servo e cumprindo a sua missão.

Sendo a figura do Rei-Pastor recorrente na Bíblia, é de ter em conta que é preciso ter cuidado com a interpretação desta asserção como da declaração de Jesus de que o seu Reino não é deste mundo. De facto, a soldadesca brincou com este enunciado tecendo para Jesus uma coroa de espinhos e colocando-Lha na cabeça, oferecendo-Lhe uma cana como cetro, dando-Lhe um faldistório como trono e um pano velho a servir de manto. Era o rei faz-de-conta, que foi açoitado e escarnecido pelos soldados e cujo letreiro a indicar a causa de morte no topo da cruz “Rei dos Judeus” foi ali aposto para despachar. Na verdade, o seu Reino não é de cá, porque é um reino de verdade, contra a mentira, de justiça, contra a vingança, de misericórdia, contra a indiferença, de proximidade, contra a distância, o mando e a arrogância. Porém, não sendo de cá, já está entre nós a fazer o efeito indicado pelas parábolas do Reino e instando ao arrependimento e à conversão.

Por outro lado, Jesus não é o Rei-Pastor do simples cajado, da manta, da funda, da cesta ou do cantil. Com efeito, há muitos pastores que não chegaram a ser reis, embora haja outros que chegaram a grandes chefes como Viriato. Ora, se Jesus faz questão de Se apresentar como Belo Pastor, o que apascenta as suas ovelhas e dá a vida por elas, já tem por antecipação uma figura no verdadeiro rei-pastor do AT: o rei David, que começou por ser pastor e é apresentado como o pastor a quem Deus, o grande Pastor de Israel, confiou o encargo da pastoreação das ovelhas (cf 34, 23-24). É o próprio Senhor quem diz no texto assumido como 1.ª leitura (Ez 34,11-12.15-17) como quer que sejam apascentadas as ovelhas (ao contrário do que faziam os pastores em Israel):        

Eu apascentarei as minhas ovelhas, eu as levarei a repousar, diz o Senhor. Hei de procurar a que anda tresmalhada. Tratarei a que estiver ferida, darei vigor à que andar enfraquecida e velarei pela gorda e vigorosa. Hei de apascentá-las com justiça. Quanto a vós, meu rebanho, assim fala o Senhor Deus: ‘Hei de fazer justiça entre ovelhas e ovelhas, entre carneiros e cabritos’.”.

O cenário mostra-nos Deus como Pastor amoroso, companheiro de viagem dos seus filhos e retratado com os verbos ‘procurar’, ‘curar’, ‘reunir’, ‘conduzir’, ‘fazer repousar’, ‘apascentar’. Porém, fará justiça entre ovelhas e ovelhas, carneiros e cabritos, antecipando a cena de Mateus (Mt 25,31-46). Assim, Jesus – Pastor e Rei – passou pelo meio de nós, tratando-nos as feridas e lavando-nos os pés e a alma, e o seu Reino novo não é inaugurado com vistosa parada militar, mas com a sua prisão e entronização no trono da Cruz. Ou seja, o Senhor reina salvando, justificando, perdoando, criando. Com efeito, justificar e perdoar são ações que só Deus pode fazer, dado que transformar o pecador em justo é criar ou recriar um homem novo.

Por tudo isto, tem razão o salmista quando entoa o salmo 23, sentindo-se bem com o pastoreio do Senhor, nada lhe faltando, e sendo levado a descansar deleitado em verdes prados e conduzido às refrescantes águas de felicidade, o grande reconforto da alma. Guiado por sendas direitas por amor do nome de Deus, o salmista e nós como ele sabemos e sentimos que, mesmo que tenhamos de andar por vales tenebrosos não temeremos nenhum mal, porque Ele está connosco. E David sabe, como Jesus o soube e nós sabemos, se unidos a Cristo, que tem a cabeça perfumada com o óleo e que o seu cálice transborda. Com Jesus somos reis e pastores.

Sim, porque Jesus é Sacerdote à maneira de Melquisedeque, mas Rei à maneira de David. E, nós, enxertados em Cristo pelo Batismo, reinamos com Ele, somos sacerdotes com Ele. Por isso, queiramos, desde já, aceitar o convite “Vinde”, qual prenúncio e antecipação do “Vinde” final. E acautelemo-nos para que não venha a recair sobre nós o terrível “Ide”.

Tudo depende de nós: se soubermos pedir e cultivar o dom de Deus em ordem à proximidade com os irmãos, ingressaremos, benditos do Pai, no Reino Eterno preparado para nós desde o princípio do mundo (apò katabolês kósmou).

2020.11.22 – Louro de Carvalho  

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