quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Não podemos agastar-nos por outrem insistir em exercer seus direitos

 

O arrazoado a que vou dar largas tem a ver com um caso concreto patente nas pantalhas da comunicação social nos últimos dias sobre a decisão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de revogar a decisão da perda de mandato de dois autarcas por parte dum Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF), confirmada pelo competente tribunal central administrativo.

Na origem do processo, está uma ação intentada no respetivo TAF por um grupo político da oposição ao presidente e a um vereador dum executivo municipal alegadamente com base no facto de, segundo o Tribunal de Contas (TdC), uma dívida duma determinada empresa municipal já extinta, imputada às referidas personalidades e a personalidades do executivo anterior ter sido saldada pela própria câmara municipal.

Insatisfeito com a decisão daquele tribunal superior, o aludido grupo que intentou a predita ação suscitou o “incidente de suspeição” requerendo que a juíza conselheira relatora do acórdão seja afastada do processo por “desconfiança sobre a imparcialidade”, tendo o requerimento dado entrada no STA, bem como no Ministério Público (MP) e na Procuradoria-Geral da República.

Segundo o que se lia no site do “Porto Canal”, a 16 de novembro, o requerimento subscrito pelo(s) advogado(s) do grupo contestante da decisão do STA referia:

A verdade é que, na presente data, o recorrido tem fundada desconfiança sobre a imparcialidade da senhora juíz[a] conselheira relatora, apresentando a presente suspeição/recusa, não só pela clara deficiência da aludida decisão, que per se não seriam motivo para o presente incidente, mas cujos vícios e contradições são notórios, bem como os erros crassos e grosseiros, o que terá motivado o recorrido a perceber da existência de laços familiares e políticos aos recorrentes”.

O certo é que, depois de decisões judiciais anteriores terem excluído de responsabilidade o anterior presidente e condenado o atual e o vereador, o STA não viu matéria suficiente para responsabilizar os eleitos, pois considerou que “a questão da responsabilidade do Município pelas dívidas fiscais dessa empresa municipal é discutível atendendo a que o Município era acionista, com posição dominante, na empresa municipal em causa, responsável pelo seu equilíbrio financeiro”.

O predito grupo opositor recorreu desta última decisão, falando em “argumentos que não passam de patentes, crassos, manifestos, grosseiros, erros de direito em que incorreu o acórdão” do STA. E, no incidente de suspeição, estão descritas relações pessoais da conselheira relatora do acórdão do STA que anula a perda de mandato, nomeadamente a relação de parentesco com políticos da esfera dos partidos que lideram o referido executivo municipal.

E o grupo recorrente argumenta que, “concordando-se ou não com a gravidade de um eleito local utilizar mais de dois milhões de euros do erário público para proveito pessoal e a ressonância ético-social que daí decorre, o STA é claramente livre de decidir conforme entender que deve ser feita justiça”. Porém, terá de o fazer “partindo das premissas corretas e com uma fundamentação sólida e coerente”, o que manifestamente se entende não se ter verificado.

É óbvio que não se pode imputar ao relator de acórdão dum tribunal superior a responsabilidade exclusiva duma decisão, já que esta é coletiva e tomada à pluralidade dos votos, se não por unanimidade, ao menos por maioria. Mesmo nos processos de recurso por crime nos tribunais da relação em que, regra geral, intervêm apenas dois desembargadores, se houver empate na votação, é chamado ao desempate o presidente da respetiva secção. Por outro lado, não pode, à partida, suscitar-se do juiz por suspeita de parcialidade ou de favor só porque – e admitindo que isso seja verdade – se dá bem com familiares ou amigos de uma das partes. Em princípio, deve acreditar-se na imparcialidade do juiz tal como o Estado acredita na independência dos tribunais, pelo que, só quando há evidências inequívocas de parcialidade, é que o incidente de suspeição se deve suscitar.

Não me julgo com capacidade para aferir da bondade da decisão do STA no caso vertente. Contudo, é estranho que, tendo o TAF e o respetivo tribunal administrativo central sido concordes em decisão condenatória, pré-abonada pelo TdC, venha o STA revogar tais decisões.

Não conheço pessoalmente a aludida juíza conselheira em causa, pelo que nada tenho que lhe apontar, quer no âmbito da política, quer no âmbito da administração da justiça. Percebo o seu incómodo e aceito o seu direito a defender-se, nos lugares adequados, das acusações ou insinuações que ponham em causa a sua probidade. Não obstante, não parece que as suas declarações – de “profundamente ofendida com as insinuações suscitadas” – na comunicação social tenham relevância para lá dos ruídos que produzem, tal como a passagem dos requerimentos de “incidente de suspeição” para as pantalhas do debate público.    

Na verdade, Constituição, a lei processual e a prática vêm consagrando aos cidadãos e aos grupos sociais, mormente quando estão perante a justiça, o direito à iniciativa, à contestação, à reclamação, ao recurso, à aclaração. Tudo se joga com a argumentação e o sistema de contrapesos. Somente será mau se alguém negar a alguém o direito à réplica ou à junção de documentos suplementares que possam ter interesse.

Com efeito, como a Constituição estabelece, “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei” (cf art.º 203), na administração da justiça incumbe-lhes “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” (art.º 202.º/2), as suas decisões “são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (art.º 205.º/2). Porém, não estão imunes do escrutínio e da crítica e a separação dos poderes não os dispensa de observar a lei (não de a refazer por excesso de jurisprudência) e de julgar os atos à luz da lei e tendo em conta a existência ou não da responsabilidade pela sua prática e o grau de tal responsabilidade. Por seu turno, os juízes são inamovíveis e não responsáveis pelas suas decisões, a não ser nos casos previstos na lei (cf art.º 216.º). Contudo, não são infalíveis e intocáveis. E, tal como podem e devem, em caso de impedimento e suspeita de conflito de interesses, declarar-se impedidos de intervir num determinado processo, também devem aceitar que outrem entenda poder ou dever pedir o seu afastamento, não devendo tal pretensão ser considerada ofensa pessoal (sucede em órgãos do poder que a argumentação é tida como ataque pessoal). Direitos não se tolhem. E, se há razões infundadas, há que as esclarecer no lugar adequado e sem agastamento. Obviamente não se obsta à intervenção de alguém por motivos de ordem positiva, mas por desconfiança, receio ou dúvida sobre a capacidade de decidir sem errar, o que é tão humano como acertar e querer outrem para tratar dos nossos assuntos.    

Ademais, quando se abraça uma profissão ou um cargo, tem que se ir preparado para dar o peito às balas, desde que nos devidos termos e com a necessária razoabilidade.  

Nunca poderemos sentir-nos e confessar-nos agastados quando os cidadãos querem exercer os seus direitos, quando o MP se serve das suas prerrogativas de autonomia e os advogados da sua liberdade de ação e de contestação. Julgará quem deve: o juiz natural, desde que não impedido. E são os estudos, as contestações, os argumentos, a suscitação de incidentes, as reclamações, os recursos, as aclarações e as votações que garantem a democracia nos tribunais.   

2020.11.25 – Louro de Carvalho

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