Na minha reflexão sob o título “Autoridade
de Saúde não pode impor quarentena, mas juiz pode”, de 17 de novembro, dava
conta de vários casos em que os tribunais, invocando a Constituição e a Lei,
desautorizavam a Autoridade de Saúde (AS) no atinente à imposição da quarentena a cidadãos no quadro da pandemia
de covid-19, pelo facto de o Governo não estar munido de autorização do
Parlamento para decretar tal medida (inconstitucionalidade orgânica) nem a mesma ter sido validada por um magistrado
judicial (desrespeito pelo art.º 27.º da CRP).
Entre outros casos, sobressai o de duas juízas
desembargadoras do RTL que afirmaram que que pessoa ou entidade que dê ordem de privação de
liberdade física, ambulatória, seja qual for a designação, que não se enquadre
nas previsões legais, nomeadamente o estabelecido no n.º 3 do art.º 27.º da
Constituição, e sem que lhe tenha sido conferido poder decisório, por força de
lei, provinda do Parlamento, no quadro do estado de emergência (EM) ou do estado de sítio (ES), procede a detenção ilegal por se tratar de
entidade incompetente e de facto que a lei não permite. Por outro lado, põem em
causa a fiabilidade dos testes PCR, incapazes de, por si, determinarem que a
positividade corresponde à infeção por vírus SARS-CoV-2, pois, segundo estudos
da Universidade de Oxford, a probabilidade de falsos resultados positivos é de
97% ou superior.
Entretanto, a comunicação social badalava que o CSM (Conselho
Superior da Magistratura) iria abrir inquérito à atuação das referidas
desembargadoras, por um lado, por terem rejeitado a admissão do recurso e,
mesmo assim, tecerem considerações sobre o mesmo e, por outro, por terem
ultrapassado as suas competências ao terem optado por uma das questões não
consensuais em matéria científica.
Porém, o Presidente do CSM veio a terreiro
esclarecer que abriu um “procedimento interno” para acompanhar o caso, mas que não se
trata de inquérito disciplinar, sendo que o plenário deste órgão, com 17
membros, terá o tema na agenda, no próximo dia 2 de dezembro.
Assim, o CSM abriu um
“procedimento interno” para acompanhar o caso do acórdão de duas juízas do TRL (Tribunal da
Relação de Lisboa) que puseram
em causa a fiabilidade de testes à covid-19 e consideraram ilegal o
confinamento imposto pela AS regional dos Açores a 4 turistas alemães, após um
deles ter, em agosto, sido diagnosticado com covid-19.
A este
respeito, Joaquim Piçarra, presidente do CSM, explicou que um
“procedimento interno” é “a preparação e recolha de elementos para apresentar
em plenário e formular a deliberação mais adequada”, ou seja, como referiu,
“não tem relevância”.
As
juízas desembargadoras Margarida Ramos de Almeida e Ana Paramés
confirmaram a ordem de libertação dada pelo tribunal de 1.ª instância, mas,
segundo alguns especialistas, fizeram uma leitura “errada” e
“irresponsável” de dois artigos científicos colocando em causa a
fiabilidade dos testes de PCR (“reação em cadeia da polimerase”), que têm sido usados para identificar a presença do
vírus SARS-CoV-2.
Na verdade,
as desembargadoras defenderam que não basta um teste PCR para se ter um
diagnóstico válido de covid-19 e que, “face à atual evidência científica, esse
teste mostra-se, só por si, incapaz de determinar, sem margem de dúvida
razoável, que tal positividade corresponde, de facto, à infeção de uma pessoa”
pelo novo coronavírus. E Vasco Barreto, investigador do CEDOC (Centro de
Estudos de Doenças Crónicas) da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, referindo que a
ideia veiculada no acórdão é “falsa”, considerou uma “irresponsabilidade” a
forma como duas magistradas dum tribunal superior põem em causa um instrumento
de diagnóstico cientificamente validado. Com efeito, “os testes de PCR têm uma
especificidade e sensibilidade superiores a 95%, ou seja, na esmagadora maioria
dos casos detetam o vírus que provoca a covid-19”.
Também
Germano de Sousa, antigo Bastonário da Ordem dos Médicos e dono de uma rede de
laboratórios, acusou as juízas de lerem de forma “completamente errada” um
artigo científico.
Sintetizando,
o órgão disciplinar dos juízes abriu o inquérito por dois motivos, a saber: se as
juízas entendiam que a recorrente não tinha legitimidade ou interesse em agir,
não deviam pronunciar-se sobre o objeto do recurso; e não deveriam ter tomado
partido, como alegadamente fizeram, sobre aspetos e divergências do mundo científico
relativamente à covid-19. Por outro lado, há quem sustente não
se poder equiparar quarentena ou confinamento a detenção ilegal.
***
Mais
recentemente veio a lume que o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) considerou ilegal o crime de desobediência patente na primeira
declaração de estado de emergência (EM), que o Governo decretou a 20 de março, pois, supostamente, o executivo criou, à luz do Decreto
Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, e subsequentes
congéneres, um novo crime pelo Decreto n.º 2-A/ 2020, de 20 de março, e
subsequentes congéneres, apesar de o Parlamento ser a única entidade com
competência para o fazer, o que põe em causa as detenções feitas. Já o atual
EM, que não define o crime de desobediência, não terá o mesmo “vício”.
O que se passou foi que duas desembargadoras do TRG foram
chamadas a pronunciar-se sobre o caso dum emigrante condenado pelo Tribunal de
Chaves a 1800 euros de multa, por crime de desobediência, pois chegara da
Bélgica, com três pessoas, quando a AS tinha decretado o isolamento profilático
de 15 dias para todos os recém-chegados a Portugal.
Os 4 arrendaram uma casa no concelho de Ribeira de Pena, onde
foram notificados, pela GNR, para cumprirem o confinamento imposto pela AS.
Entretanto, foram apanhados, numa operação de fiscalização da PSP, a furar o
isolamento em Chaves. O caso seguiu para o Tribunal de Chaves e cada um foi condenado
a 1500 euros de multa, por crime de desobediência, punido pelo art.º 348.º do
Código Penal e pelo decreto do EM. Ou seja, a definição da desobediência
patente na declaração de EM serviu para o tribunal aplicar a pena.
Um dos condenados recorreu para o TRG, que decidiu que o EM, “ao definir um novo tipo de crime, invade a
competência legislativa que lhe não compete e que só competiria se tivesse sido
prevista por uma lei de autorização legislativa”. E invocou o princípio do
Estado do direito democrático estabelecido no art.º 2.º da CRP para concluir
que “o Governo não se mostrava habilitado a definir matéria criminal”.
As desembargadoras Maria Teresa Coimbra e Cândida Martinho
consideraram a norma ferida de inconstitucionalidade orgânica, pelo que é
inválida e “nela não pode sustentar-se a condenação do recorrente”, pois a resolução
do Parlamento que autorizou Marcelo a declarar o EM não contemplou legitimidade
ou deu poder ao Governo para criar um novo tipo de crime.
***
Na susodita
reflexão questionava-me se em 44 anos de vigência da CRP, que já passou por 7
revisões, os deputados não vislumbraram o ensejo de a colocar mais apta a
responder a este tipo de pandemia que nos assola. E agora encontro-me a questionar
onde estavam as entidades que podem solicitar a fiscalização abstrata (preventiva
ou sucessiva) da
constitucionalidade dos diplomas legais? Efetivamente, “o Presidente da República pode
requerer ao Tribunal Constitucional (TC) a apreciação preventiva da
constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que
lhe tenha sido submetido para ratificação, de decreto que lhe tenha sido
enviado para promulgação como lei ou como decreto-lei ou de acordo
internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura”.
E podem requerer ao TC “a apreciação preventiva da constitucionalidade de
qualquer norma constante de decreto que tenha sido enviado ao Presidente da
República para promulgação como lei orgânica, além deste, o Primeiro-Ministro
ou um quinto dos Deputados à Assembleia da República em efetividade de funções”
(vd
CRP, art.º 278.º, n.º 1 e n.º 4).
Mais, no âmbito da fiscalidade sucessiva, podem requer ao TC “a declaração de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força obrigatória geral: o
Presidente da República; o Presidente da Assembleia da República; o
Primeiro-Ministro; o Provedor de Justiça; o Procurador-Geral da República; e um
décimo dos Deputados à Assembleia da República (vd CRP, art.º
281.º, n.º 2). Tanta
gente, não?!
Quero dizer que, se entendo a
urgente publicação dos referidos diplomas para vigência imediata, nada
justifica que, mal os especialistas levantaram o problema, o TC não fosse
estimulado.
Assim, o princípio da igualdade
foi por água abaixo, porque a maioria dos cidadãos cumpriu estoicamente e de
boa-fé as determinações dos órgãos de soberania eleitos pelo Povo e os espertos
– e com dinheiro (emigrantes e/ou turistas) – foram absolvidos das supostas
transgressões.
Não estará aqui em jogo a
segurança jurídica? Com efeito, não há segurança jurídica se: não há leis
suficientes e retamente elaboradas para responder às necessidades da
comunidade; há leis em excesso, contraditórias e confusas; não preveem sanções
adequadas; e são torpedeadas por jurisprudência excessiva ou caprichosa e
decisões que atingem só as partes (litigantes).
O Direito em sentido amplo tem três finalidades
principais, que prossegue com a integralidade dos instrumentos que possui, possibilitando
a cada um o que é justo, fazendo respeitar a dignidade do ser humano e promovendo
a segurança jurídica. Esta dispõe de várias subdivisões sintetizadas em:
“Estado de Ordem e Paz”, “Certeza Jurídica” e a “Proteção dos Cidadãos perante
o Estado”.
A norma jurídica disciplina as relações nos grupos
sociais e a resolução de conflitos. Para tanto, existem regras de conduta
obrigatórias e com caráter vinculativo (coercibilidade) e autoridades públicas que as criam e aplicam (“ius
imperii”). Ao invés, não é possível viver
socialmente à mercê da discricionariedade originada pela lei do mais forte,
onde prevalece a sobrevivência e o uso da força. Assim, primordialmente, o
Direito permite viver pacífica e estavelmente, com respeito pelos direitos e
cumprimento dos deveres (Estado de Ordem e Paz). E, se as obrigações não forem acatadas, o violador deverá será penalizado,
sofrendo a respetiva sanção.
Porém, o homem, enquanto ser livre, deve poder optar
pelos atos que lhe deem maior felicidade só sendo admissível ser condenado por
algum ato sabendo que este é prejudicial ao próximo e que a sua prática, não
sendo correta, é alvo de punição tipificada na norma (Certeza
Jurídica).
De outra forma, não estaríamos num Estado de Direito
democrático e voltaríamos à lei do mais forte, onde se manipulariam os factos e
punições conforme fosse mais adequado por razões políticas, morais ou até
rancorosas e lúdicas.
Tais putativos atropelos podem provir de particulares,
em busca de desejos que não podem usufruir e da autoridade pública vocacionada
para nos reger. E, como a lei se destina a regular as relações entre pessoas e
entre grupos, também deve regular as relações entre a administração e os
cidadãos, ou seja, deve promover a Proteção
dos Cidadãos perante o Estado, não se lhes podendo este, com fundamentos falsos
ou irrelevantes, diminuir arbitrariamente as garantias de que se dispõe
relativamente à salvaguarda dos direitos dos cidadãos.
Tais garantias encontram-se estipuladas art.º 266.º da
Constituição, “no respeito pelos direitos e interesses protegidos dos cidadãos”
(n.º 1) e “com
respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça,
da imparcialidade e da boa-fé” (n.º 2). E vêm desenvolvidas no seu art.º 268.º, com a epígrafe “direitos e garantias dos administrados”.
Neste
aspeto, um acórdão do STA (Supremo Tribunal Aministrativo), de 13 de novembro de 2007, recorda que o princípio
do Estado de Direito se concretiza “através de elementos retirados de outros
princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da proteção da confiança
dos cidadãos”; que tal princípio se encontra “expressamente consagrado no art.º
2.º da CRP e deve ser tido como um princípio politicamente conformado que
explicita as valorações fundamentadas do legislador constituinte”; que os princípios
da segurança jurídica e da proteção da confiança se assumem “como princípios
classificadores do Estado de Direito Democrático”, implicando “um mínimo de
certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente
criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e
da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado”; e que, no n.º 1 do
artigo 161.º do CPTA, que “não viola os citados princípios constitucionais, nem
o princípio da igualdade”, a situação que o legislador pretendeu tutelar se prende,
“de alguma maneira, com razões de justiça material, visando obviar a possíveis
disparidades, consubstanciadas em status
diferenciados resultantes, em relação a alguns particulares, da não impugnação
atempada de atos, com conteúdo decisório perfeitamente igual e que tenham
definido a mesma situação jurídica, assim também fazendo valer o princípio da
igualdade de tratamento das mesmas situações jurídicas”.
Por isso, como não podemos chocar-nos com ações
espetaculares no âmbito da administração da justiça, por exemplo quando assistimos
a imagens chocantes de polícias ou militares a abusarem de inocentes e a
provocarem-lhes inclusivamente a morte, violando os princípios mais
importantes, os do direito à vida e do direito à integridade? E com a detenção de
suspeitos com cobertura televisiva e enxovalhados na comunicação social? É que
há um princípio prevalente nos ramos de direito público, o da legalidade,
estabelecendo que o Estado só pode atuar consoante o estipulado
legislativamente, ao contrário do privado, onde tudo é permitido, desde que em
consonância com a lei, nos termos do princípio da autonomia da vontade.
E, nos casos
vertentes, como se entendem tratamentos de exceção a alguns em detrimento de
todos quantos vivem perpassados pelo estado de exceção comunitária em que nos
prostrou a pandemia? Não bastava o ambiente de medo que se criou e se aumentou,
o sofrimento de enclausuramento, a perda de emprego e de rendimento e a
exigência de se trabalhar em condições de perigo permanente. Teve que, às
espreitadelas de sucesso demasiado por parte de alguns que aproveitaram o ensejo
para enriquecerem, suceder em cascata o tratamento legal e judicial
diferenciado a uns em detrimento de outros e tudo em nome da Constituição e da
Lei!
Organizem-se
e entendam-se os nossos decisores para nosso bem e tranquilidade deles.
2020.11.20 – Louro de Carvalho
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