sexta-feira, 20 de novembro de 2020

É bom que os nossos dirigentes se entendam em prol da equidade

 

Na minha reflexão sob o título “Autoridade de Saúde não pode impor quarentena, mas juiz pode”, de 17 de novembro, dava conta de vários casos em que os tribunais, invocando a Constituição e a Lei, desautorizavam a Autoridade de Saúde (AS) no atinente à imposição da quarentena a cidadãos no quadro da pandemia de covid-19, pelo facto de o Governo não estar munido de autorização do Parlamento para decretar tal medida (inconstitucionalidade orgânica) nem a mesma ter sido validada por um magistrado judicial (desrespeito pelo art.º 27.º da CRP).

Entre outros casos, sobressai o de duas juízas desembargadoras do RTL que afirmaram que que pessoa ou entidade que dê ordem de privação de liberdade física, ambulatória, seja qual for a designação, que não se enquadre nas previsões legais, nomeadamente o estabelecido no n.º 3 do art.º 27.º da Constituição, e sem que lhe tenha sido conferido poder decisório, por força de lei, provinda do Parlamento, no quadro do estado de emergência (EM) ou do estado de sítio (ES), procede a detenção ilegal por se tratar de entidade incompetente e de facto que a lei não permite. Por outro lado, põem em causa a fiabilidade dos testes PCR, incapazes de, por si, determinarem que a positividade corresponde à infeção por vírus SARS-CoV-2, pois, segundo estudos da Universidade de Oxford, a probabilidade de falsos resultados positivos é de 97% ou superior.

Entretanto, a comunicação social badalava que o CSM (Conselho Superior da Magistratura) iria abrir inquérito à atuação das referidas desembargadoras, por um lado, por terem rejeitado a admissão do recurso e, mesmo assim, tecerem considerações sobre o mesmo e, por outro, por terem ultrapassado as suas competências ao terem optado por uma das questões não consensuais em matéria científica.

Porém, o Presidente do CSM veio a terreiro esclarecer que abriu um “procedimento interno” para acompanhar o caso, mas que não se trata de inquérito disciplinar, sendo que o plenário deste órgão, com 17 membros, terá o tema na agenda, no próximo dia 2 de dezembro.

Assim, o CSM abriu um “procedimento interno” para acompanhar o caso do acórdão de duas juízas do TRL (Tribunal da Relação de Lisboa) que puseram em causa a fiabilidade de testes à covid-19 e consideraram ilegal o confinamento imposto pela AS regional dos Açores a 4 turistas alemães, após um deles ter, em agosto, sido diagnosticado com covid-19.

A este respeito, Joaquim Piçarra, presidente do CSM, explicou que um “procedimento interno” é “a preparação e recolha de elementos para apresentar em plenário e formular a deliberação mais adequada”, ou seja, como referiu, “não tem relevância”.

As juízas desembargadoras Margarida Ramos de Almeida e Ana Paramés  confirmaram a ordem de libertação dada pelo tribunal de 1.ª instância, mas, segundo alguns especialistas, fizeram uma leitura “errada” e “irresponsável” de dois artigos científicos colocando em causa a fiabilidade dos testes de PCR (“reação em cadeia da polimerase”), que têm sido usados para identificar a presença do vírus SARS-CoV-2.

Na verdade, as desembargadoras defenderam que não basta um teste PCR para se ter um diagnóstico válido de covid-19 e que, “face à atual evidência científica, esse teste mostra-se, só por si, incapaz de determinar, sem margem de dúvida razoável, que tal positividade corresponde, de facto, à infeção de uma pessoa” pelo novo coronavírus. E Vasco Barreto, investigador do CEDOC (Centro de Estudos de Doenças Crónicas) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, referindo que a ideia veiculada no acórdão é “falsa”, considerou uma “irresponsabilidade” a forma como duas magistradas dum tribunal superior põem em causa um instrumento de diagnóstico cientificamente validado. Com efeito, “os testes de PCR têm uma especificidade e sensibilidade superiores a 95%, ou seja, na esmagadora maioria dos casos detetam o vírus que provoca a covid-19”.

Também Germano de Sousa, antigo Bastonário da Ordem dos Médicos e dono de uma rede de laboratórios, acusou as juízas de lerem de forma “completamente errada” um artigo científico.

Sintetizando, o órgão disciplinar dos juízes abriu o inquérito por dois motivos, a saber: se as juízas entendiam que a recorrente não tinha legitimidade ou interesse em agir, não deviam pronunciar-se sobre o objeto do recurso; e não deveriam ter tomado partido, como alegadamente fizeram, sobre aspetos e divergências do mundo científico relativamente à covid-19. Por outro lado, há quem sustente não se poder equiparar quarentena ou confinamento a detenção ilegal.

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Mais recentemente veio a lume que o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) considerou ilegal o crime de desobediência patente na primeira declaração de estado de emergência (EM), que o Governo decretou a 20 de março, pois, supostamente, o executivo criou, à luz do Decreto Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, e subsequentes congéneres, um novo crime pelo Decreto n.º 2-A/ 2020, de 20 de março, e subsequentes congéneres, apesar de o Parlamento ser a única entidade com competência para o fazer, o que põe em causa as detenções feitas. Já o atual EM, que não define o crime de desobediência, não terá o mesmo “vício”.

O que se passou foi que duas desembargadoras do TRG foram chamadas a pronunciar-se sobre o caso dum emigrante condenado pelo Tribunal de Chaves a 1800 euros de multa, por crime de desobediência, pois chegara da Bélgica, com três pessoas, quando a AS tinha decretado o isolamento profilático de 15 dias para todos os recém-chegados a Portugal.

Os 4 arrendaram uma casa no concelho de Ribeira de Pena, onde foram notificados, pela GNR, para cumprirem o confinamento imposto pela AS. Entretanto, foram apanhados, numa operação de fiscalização da PSP, a furar o isolamento em Chaves. O caso seguiu para o Tribunal de Chaves e cada um foi condenado a 1500 euros de multa, por crime de desobediência, punido pelo art.º 348.º do Código Penal e pelo decreto do EM. Ou seja, a definição da desobediência patente na declaração de EM serviu para o tribunal aplicar a pena.

Um dos condenados recorreu para o TRG, que decidiu que o EM, “ao definir um novo tipo de crime, invade a competência legislativa que lhe não compete e que só competiria se tivesse sido prevista por uma lei de autorização legislativa”. E invocou o princípio do Estado do direito democrático estabelecido no art.º 2.º da CRP para concluir que “o Governo não se mostrava habilitado a definir matéria criminal”.

As desembargadoras Maria Teresa Coimbra e Cândida Martinho consideraram a norma ferida de inconstitucionalidade orgânica, pelo que é inválida e “nela não pode sustentar-se a condenação do recorrente”, pois a resolução do Parlamento que autorizou Marcelo a declarar o EM não contemplou legitimidade ou deu poder ao Governo para criar um novo tipo de crime.

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Na susodita reflexão questionava-me se em 44 anos de vigência da CRP, que já passou por 7 revisões, os deputados não vislumbraram o ensejo de a colocar mais apta a responder a este tipo de pandemia que nos assola. E agora encontro-me a questionar onde estavam as entidades que podem solicitar a fiscalização abstrata (preventiva ou sucessiva) da constitucionalidade dos diplomas legais? Efetivamente, “o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional (TC) a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que lhe tenha sido submetido para ratificação, de decreto que lhe tenha sido enviado para promulgação como lei ou como decreto-lei ou de acordo internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura”. E podem requerer ao TC “a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de decreto que tenha sido enviado ao Presidente da República para promulgação como lei orgânica, além deste, o Primeiro-Ministro ou um quinto dos Deputados à Assembleia da República em efetividade de funções” (vd CRP, art.º 278.º, n.º 1 e n.º 4). Mais, no âmbito da fiscalidade sucessiva, podem requer ao TC “a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força obrigatória geral: o Presidente da República; o Presidente da Assembleia da República; o Primeiro-Ministro; o Provedor de Justiça; o Procurador-Geral da República; e um décimo dos Deputados à Assembleia da República (vd CRP, art.º 281.º, n.º 2). Tanta gente, não?!

Quero dizer que, se entendo a urgente publicação dos referidos diplomas para vigência imediata, nada justifica que, mal os especialistas levantaram o problema, o TC não fosse estimulado.

Assim, o princípio da igualdade foi por água abaixo, porque a maioria dos cidadãos cumpriu estoicamente e de boa-fé as determinações dos órgãos de soberania eleitos pelo Povo e os espertos – e com dinheiro (emigrantes e/ou turistas) – foram absolvidos das supostas transgressões.

Não estará aqui em jogo a segurança jurídica? Com efeito, não há segurança jurídica se: não há leis suficientes e retamente elaboradas para responder às necessidades da comunidade; há leis em excesso, contraditórias e confusas; não preveem sanções adequadas; e são torpedeadas por jurisprudência excessiva ou caprichosa e decisões que atingem só as partes (litigantes).     

O Direito em sentido amplo tem três finalidades principais, que prossegue com a integralidade dos instrumentos que possui, possibilitando a cada um o que é justo, fazendo respeitar a dignidade do ser humano e promovendo a segurança jurídica. Esta dispõe de várias subdivisões sintetizadas em: “Estado de Ordem e Paz”, “Certeza Jurídica” e a “Proteção dos Cidadãos perante o Estado”.

A norma jurídica disciplina as relações nos grupos sociais e a resolução de conflitos. Para tanto, existem regras de conduta obrigatórias e com caráter vinculativo (coercibilidade) e autoridades públicas que as criam e aplicam (“ius imperii”). Ao invés, não é possível viver socialmente à mercê da discricionariedade originada pela lei do mais forte, onde prevalece a sobrevivência e o uso da força. Assim, primordialmente, o Direito permite viver pacífica e estavelmente, com respeito pelos direitos e cumprimento dos deveres (Estado de Ordem e Paz). E, se as obrigações não forem acatadas, o violador deverá será penalizado, sofrendo a respetiva sanção.

Porém, o homem, enquanto ser livre, deve poder optar pelos atos que lhe deem maior felicidade só sendo admissível ser condenado por algum ato sabendo que este é prejudicial ao próximo e que a sua prática, não sendo correta, é alvo de punição tipificada na norma (Certeza Jurídica).

De outra forma, não estaríamos num Estado de Direito democrático e voltaríamos à lei do mais forte, onde se manipulariam os factos e punições conforme fosse mais adequado por razões políticas, morais ou até rancorosas e lúdicas.

Tais putativos atropelos podem provir de particulares, em busca de desejos que não podem usufruir e da autoridade pública vocacionada para nos reger. E, como a lei se destina a regular as relações entre pessoas e entre grupos, também deve regular as relações entre a administração e os cidadãos, ou seja, deve promover a Proteção dos Cidadãos perante o Estado, não se lhes podendo este, com fundamentos falsos ou irrelevantes, diminuir arbitrariamente as garantias de que se dispõe relativamente à salvaguarda dos direitos dos cidadãos.

Tais garantias encontram-se estipuladas art.º 266.º da Constituição, “no respeito pelos direitos e interesses protegidos dos cidadãos” (n.º 1) e “com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé” (n.º 2). E vêm desenvolvidas no seu art.º 268.º, com a epígrafe “direitos e garantias dos administrados”.

Neste aspeto, um acórdão do STA (Supremo Tribunal Aministrativo), de 13 de novembro de 2007, recorda que o princípio do Estado de Direito se concretiza “através de elementos retirados de outros princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos”; que tal princípio se encontra “expressamente consagrado no art.º 2.º da CRP e deve ser tido como um princípio politicamente conformado que explicita as valorações fundamentadas do legislador constituinte”; que os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança se assumem “como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático”, implicando “um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado”; e que, no n.º 1 do artigo 161.º do CPTA, que “não viola os citados princípios constitucionais, nem o princípio da igualdade”, a situação que o legislador pretendeu tutelar se prende, “de alguma maneira, com razões de justiça material, visando obviar a possíveis disparidades, consubstanciadas em status diferenciados resultantes, em relação a alguns particulares, da não impugnação atempada de atos, com conteúdo decisório perfeitamente igual e que tenham definido a mesma situação jurídica, assim também fazendo valer o princípio da igualdade de tratamento das mesmas situações jurídicas”.

Por isso, como não podemos chocar-nos com ações espetaculares no âmbito da administração da justiça, por exemplo quando assistimos a imagens chocantes de polícias ou militares a abusarem de inocentes e a provocarem-lhes inclusivamente a morte, violando os princípios mais importantes, os do direito à vida e do direito à integridade? E com a detenção de suspeitos com cobertura televisiva e enxovalhados na comunicação social? É que há um princípio prevalente nos ramos de direito público, o da legalidade, estabelecendo que o Estado só pode atuar consoante o estipulado legislativamente, ao contrário do privado, onde tudo é permitido, desde que em consonância com a lei, nos termos do princípio da autonomia da vontade.

E, nos casos vertentes, como se entendem tratamentos de exceção a alguns em detrimento de todos quantos vivem perpassados pelo estado de exceção comunitária em que nos prostrou a pandemia? Não bastava o ambiente de medo que se criou e se aumentou, o sofrimento de enclausuramento, a perda de emprego e de rendimento e a exigência de se trabalhar em condições de perigo permanente. Teve que, às espreitadelas de sucesso demasiado por parte de alguns que aproveitaram o ensejo para enriquecerem, suceder em cascata o tratamento legal e judicial diferenciado a uns em detrimento de outros e tudo em nome da Constituição e da Lei!

Organizem-se e entendam-se os nossos decisores para nosso bem e tranquilidade deles. 

2020.11.20 – Louro de Carvalho

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