O 1.º domingo do Advento inaugura o Ano Litúrgico, ou
seja, um quadro de 365 dias dividido em ciclos
litúrgicos (Natal, Páscoa, Tempo Comum e Santoral) em que se celebra o
mistério de Cristo, a Virgem Maria, os Anjos e os Santos através das
celebrações litúrgicas do Povo de Deus (solenidades, festas e memórias), sobretudo
pelo Sacrifício/Banquete Eucarístico e Liturgia das Horas.
Sobre o sentido do Advento (latim: adventus) –
Vinda (de Deus até nós) –, a CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) produziu, a 22 de novembro, uma
mensagem em que valoriza o Deus que vem, saúda desejando-nos a paz e o bom dia,
fala, escuta, chama, responde, ordena e envia. Por outro lado, constitui o
apelo a que respondamos Àquele que vem e chama, saindo da nossa zona de
conforto para irmos ao seu encontro e declarar que aceitamos a vinda daquele
que Se confunde com os pequeninos e está entre nós, que sofremos de anemia e
estamos assolados pela pandemia. E nós acalentamos a esperança de que Ele,
tendo compaixão (éleos) de nós, como teve do povo oprimido no Egito, nos
acompanhará e ajudará a sair do beco que parece não ter saída.
E, se o Advento com odor de Natal começa
liturgicamente com a prece do Salmo 25, “Para
Ti, Senhor, elevo a minha alma” (da antífona de entrada da Missa), apontando a atitude de oblação
permanente e oração constante a assumir pela assembleia fiel e orante, a
Liturgia da Palavra deste 1.º domingo do Advento no Ano B irrompe com a oração
do Profeta Isaías (Is 63,16b-17.19b; 64,2b-7), inserida no Tritoisaías (caps. 56-66), isto é, num conjunto de textos pós-exílicos redigidos ao longo dum arco de tempo
relativamente longo (provavelmente, entre os séculos VI e V a.C.).
O profeta dirige efetivamente ao
Senhor uma oração em que invoca Deus como pai (patêr)
e como redentor
(lytrôtês). O título “pai” (herdado das culturas
cananeias, cujo deus principal é pai porque exerce a função de proteção e de
senhorio)
resulta da ação protetora e salvadora de Deus em prol do seu Povo ao longo da
história. O título “redentor” era, no direito israelita, reservado ao parente
próximo, a quem incumbe o dever de defender os seus e manter o património
familiar (cf
Lv 25,23-25), de libertar o familiar caído na escravidão (cf Lv 25,26-49), de proteger viúva (cf Rt 4,5) e de vingar o
parente assassinado (cf Nm 25,18-19). Com estes títulos, lembra-se a Deus a sua
responsabilidade de protetor, defensor e salvador do Povo.
Assim, o profeta pretende que Deus, pai e redentor, não deixe que o Povo endureça o coração e se a
afaste dos caminhos da Aliança. E, porque aquela geração, não reconhecendo
culpa alguma, vive instalada no pecado, na infidelidade, na injustiça, na
indiferença face a Deus o profeta como que força a intervenção libertadora de
Deus, de modo que se altere esta lógica geracional e Israel se volte
decisivamente para Deus e trilhe as rotas de salvação e de vida.
Apesar de convicto da possibilidade
dessa dinâmica, o profeta tem a noção de que o Povo é incapaz de sair, por si
só, da rotina de rebeldia e infidelidade em que tem vivido. Por isso, urge que
Deus, assumindo o múnus de Pai e redentor, Se digne “descer” para transformar o
coração do Povo. É a memória histórica que fundamenta a esperança: se Deus
sempre foi o pai e o redentor de Israel, há de voltar a sê-lo de novo, na atual
situação dramática, que assim o exige.
E o texto termina com um discurso
genesíaco: Deus é o oleiro e o seu Povo é o barro que o artista modela com amor
e cuidado – imagem que define o poder amoroso de Deus que pode modelar o seu
Povo como Lhe aprouver e que alude ao que o profeta espera de Deus: uma nova criação. A imagem leva-nos à
criação do homem a partir do barro da terra (cf Gn 2,7), pelo que o profeta sugere que a
intervenção de Deus no sentido de mudar o coração do Povo, fazendo que ele
deixe os caminhos do egoísmo e da autossuficiência e volte para os caminhos de
Deus e da Aliança é uma nova criação, de que nascerá uma humanidade nova. É o
prenúncio do que Jesus, o Verbo incarnado há de fazer quando chegar a plenitude
dos tempos, que já chegou!
Para Dom António Couto, Bispo de Lamego, Isaías
serve-nos o mais poderoso Salmo de lamentação popular da Bíblia, nas palavras
de Claus Westermann, pois nele confessamos a nossa rebeldia e fugacidade e
invocamos o amor paternal, criador e redentor de Deus, para que venha em
auxílio da nossa fraqueza. Em resposta, Deus, nosso Pai, por nós, rasgou mesmo
os céus e veio ter connosco.
A passagem do Evangelho assumida na Liturgia da Palavras (Mc
13,33-37) põe-nos
em Jerusalém, pouco antes da Paixão e Morte de Jesus, no terceiro dia da estada
de Jesus em Jerusalém, o dia dos ensinamentos e das polémicas mais radicais com
os líderes judaicos. No final do dia, já no Jardim das Oliveiras, Jesus oferece
a um grupo de discípulos um ensinamento amplo e enigmático, que ficou conhecido
como o “discurso escatológico” – um discurso
em linguagem profético-apocalíptica, que descreve a missão da comunidade cristã
no período que vai da morte de Jesus até ao final da história, constituindo uma
leitura profética da história humana para dar aos discípulos indicações acerca
da atitude a tomar face às vicissitudes que marcarão a caminhada histórica da
comunidade até à vinda final de Jesus para instaurar, em definitivo, o novo céu
e a nova terra.
Os 4 discípulos referenciados no início do “discurso escatológico” (Pedro,
Tiago, João e André), representam a comunidade cristã de todos os tempos, são os primeiros
discípulos chamados por Jesus (cf Mc 1,16-20), que
se convertem em representantes de todos os futuros discípulos. Assim, o
discurso não será uma mensagem privada destinada a um grupo especial, mas uma
mensagem destinada a toda a comunidade crente, chamada a caminhar na história,
com esperança ativa e com os olhos postos no encontro final com Jesus e com o
Pai. A missão que Jesus, consciente de ter chegado a hora de partir ao encontro
do Pai, confia à sua comunidade não é fácil, pois os discípulos enfrentarão as
dificuldades, as perseguições e as tentações que o mundo vai colocar na sua
rota, precisando a comunidade em marcha de estímulo e alento. Por isso, vem o
apelo à fidelidade, à coragem, à vigilância, pois, no horizonte último da
caminhada da comunidade, Jesus coloca o final da história humana e o reencontro
definitivo dos discípulos com Jesus.
O “discurso
escatológico” divide-se em três partes, antecedidas duma introdução (cf Mc 13,1-4). Na 1.ª parte (cf Mc 13,5-23), anunciam-se vicissitudes que marcarão
a história e que requerem dos discípulos a atitude adequada da vigilância e
lucidez. Na 2.ª parte (cf.
Mc 13,24-27), anuncia-se
a vinda definitiva do Filho do Homem e o nascimento dum mundo novo a partir das
ruínas do mundo velho. E, na 3.ª parte (cf Mc 13,28-37), foca-se a incerteza quanto ao tempo histórico dos eventos
anunciados e insiste-se com os discípulos para que estejam sempre vigilantes e
preparados para acolher o Senhor que vem.
O trecho desta dominga, inserto na 3.ª parte, refere-se ao
final dos tempos e à atitude que os discípulos devem ter face a esse com Jesus,
não para informar do “como” e do “quando”, mas formar os discípulos e torná-los
capazes de enfrentar a história com determinação e esperança; e, tendo começado
com a parábola do homem que partiu em viagem, distribuiu tarefas aos servos e
mandou ao porteiro que vigiasse (cf Mc 13,33-34),
termina a admoestar os discípulos acerca da atitude correta de espera pelo
Senhor (cf Mc 13,35-37).
O texto está atravessado pelo verbo “vigiar”, usado 4
vezes (Mc 13,33.34.35.37), em imperativo: uma vez agrypneîte (agr-, negação, e hypnóô, dormir) (v.
33), e 3 vezes grêgoreîte, vigiar (Mc 34.35.37). No Getsémani, Jesus clarificará em
que consiste esta “vigilância”, dizendo: “vigiai e orai” (Mc 14,28: grêgoreîte kaì proseúkhesthe). Na verdade, é preciso manter sempre o coração sintonizado com
o coração de Deus, pelo que as vigílias da noite são enunciadas no v. 35: ao
anoitecer, à meia-noite, ao cantar do galo (pelas 3 horas) e às matinas (6 horas). E a
frase imperativa “estai atentos” (blépete) emerge 4 vezes no capítulo 13 de
Marcos (Mc 13,5.9.23.33), em que Jesus fala aos discípulos
preditos 4 discípulos.
A parábola contada por Jesus era dirigida aos discípulos a
recordar-lhes o dever de guardar e fazer frutificar os tesouros do Reino que
lhes confiou antes de partir para o Pai.
O dono da casa da parábola é Jesus, que, ao voltar para junto
do Pai, confiou aos discípulos a tarefa de construir o Reino e de tornar
realidade um mundo construído de acordo com os valores do Reino. Por
conseguinte, os discípulos não podem cruzar os braços, à espera de que o Senhor
venha; têm, antes, de concretizar, mesmo em condições adversas, a missão que Jesus
lhes confiou. Assim, esta espera, vivida no tempo da história, não é a espera
passiva de quem deixa passar o tempo até que chegue um final anunciado, mas uma
espera ativa, radicada na fé que, implicando um compromisso efetivo com a
construção de um mundo mais humano, mais fraterno, mais justo, mais evangélico,
configura a esperança de quem peregrina na força da caridade interpessoal e
comunitária que o amor de Deus nos imprime.
O porteiro (thyrôrós) que tem a especial tarefa de
vigilância (v. 34) é, na ótica de Marcos, todo o que
tenha especial responsabilidade na comunidade cristã, a de impedir que a
comunidade seja invadida por valores estranhos ao Evangelho e à dinâmica do
Reino. É uma figura que se adequa, especialmente, aos responsáveis da
comunidade cristã, aos quais incumbe a vigilância e a animação da comunidade e
que devem ajudar a comunidade a discernir permanentemente, ante os valores do
mundo, o que a comunidade pode ou não aceitar para viver na fidelidade ativa a
Jesus e às suas propostas.
Obviamente, todos – porteiro e demais servos do Senhor –
devem estar vigilantes e ativos, a inspirar confiança e segurança, a dar paz, a
irradiar alegria. Sendo “vigilância” a palavra-chave do Evangelho desta
dominga, é de ter em conta que “vigilância” não significa viver à margem da
história, no angelismo alienante, sem o compromisso de não se sujar com as
realidades do mundo e procurando manter a alma pura e sem mancha para que o
Senhor, quando chegar, nos encontre sem pecados graves; será, antes viver o
quotidiano no compromisso com a construção do Reino, desempenhando fielmente as
tarefas que o Senhor nos confiou.
Como dizia João Paulo Silva, sacerdote passionista, “vigiar”
não significa apenas estar acordado e ver, mas estar ativo e cuidar daqueles
por quem estamos acordados, amá-los, prestar-lhes atenção, dar-lhes carinho,
acompanhá-los, apoiá-los.
O texto assegura aos discípulos, em caminhada pelo mundo, que
o objetivo final da história é o encontro com Jesus, encontro definitivo e
libertador. E, ainda que tudo pareça ruir, os discípulos são instados a não
perder a esperança e a ver, para lá das estruturas velhas que vão caindo, a
realidade do mundo novo a nascer. Por isso, enquanto esperam que irrompa o
mundo novo prometido, devem contribuir, corajosa e perseverantemente, para a
edificação do Reino, sendo testemunhas e arautos da paz, da justiça, do amor,
do perdão, da fraternidade, cumprindo deste modo a missão que Jesus lhes
confiou. Efetivamente, “vigiar”, em sentido evangélico, implica fazer da vida
oração, vida em ascensão permanente, sacrifício de suave odor, incenso puro
subindo para o nosso Deus.
E o Evangelho diz com a energia e alegria: “Estai atentos”, “vigiai”, pois “não sabeis quando virá o dono da casa” (Mc 13,33-37). Na verdade, é como um homem que
partiu de viagem (Mc 13,34); e tudo o que possuímos foi dele que
o recebemos (Mc 13,34). Então, cabeça erguida, rosto
volvido para Deus serão os gestos do justo justificado por Deus (cf Jb 22,26).
Com o vigor que lhe é reconhecido, diz-nos Paulo que “passa,
na verdade, a figura (tò schêma) deste mundo” (toû kósmou toútou) (1Cor 7,31). Por isso, ficamos a saber que a
realidade deste mundo é penúltima, não Última. Porém, há uma realidade que não passa:
a palavra de Jesus (Mc 13,31). Sobressai, pois, esta como a âncora
a que nos devemos agarrar. E o Evangelho de hoje termina com Jesus a dizer: “O que vos digo a vós, digo-o a todos!”.
Cá está: também é para nós!
Ora, Paulo, a abrir a 1.ª Carta aos Coríntios (1,3-9), assumido com 2.ª leitura desta
dominga, saúda-nos com a Graça para vós e
a Paz de Deus, nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo (kháris
hymîn kaì eirênê apò Theoû patròs kaì Kyríou Iêsoû Khristoû), e maravilhosamente clama: “Dou graças ao meu Deus por vós em todo o
tempo” (v. 4) pelas inumeráveis bênçãos com que
Deus nos tem enriquecido em Cristo Jesus, o único Senhor da vida. E o excerto
fecha com a indicação de que Deus nos chamou, não a uma coisa qualquer, nem só a
participar na alegria do Messias, como dizem de Abraão os rabinos, mas a
participar na comunhão pessoal com o seu Filho, Jesus Cristo (v. 9).
Nesta “ação de graças” (texto carregado de
densidade teológica), há dois elementos relevantes: os dons que a comunidade recebeu
de Deus; e a finalidade do chamamento dos coríntios.
É a primeira vez que, nos escritos
paulinos, aparece o termo “carisma” (v. 7: kharísma) – que define os
dons que resultam da generosidade divina, derramados sobre determinadas pessoas
para o bem da comunidade. Assim, é bom que a comunidade coríntia, amada por
Deus, tenha consciência da liberalidade divina e saiba dar graças.
Os carismas aqui referidos são a “palavra” (lógos) e o “conhecimento” (gnôsis) como principais
componentes da riqueza que Deus concedeu aos coríntios e temas muito
importantes na cultura grega, aqui apresentados como dons de Deus. Paulo
procura, pois, animar a intensa procura de “sabedoria” (sophía) dos coríntios, mas dando-lhe significado e um enquadramento
cristão. E vai desenvolver a questão nos capítulos seguintes avisando, contudo,
de que a “sabedoria” de Deus nem sempre coincide com a “sabedoria” dos homens.
Por outro lado, Paulo manifesta a convicção
de que os “carismas” com que Deus cumulou os coríntios são destinados a
construir uma comunidade orientada para Jesus Cristo, capaz de viver de forma
irrepreensível o compromisso com o Evangelho até ao dia do encontro final com
Cristo. É para esse encontro definitivo de total e eterna comunhão com Deus que
a comunidade deve caminhar, guiada pelo Espírito Santo, animada por Cristo e
sustentada com os dons do Pai.
***
Enfim, se
queremos que Deus Se volte para nós e venha ter connosco, devemos também
voltarmos para Ele e ir ao seu encontro; se queremos que Ele seja o nosso
oleiro-criador, teremos de O acolher na alegria de nos deixarmos moldar por
Ele.
2020.11.29 –
Louro de Carvalho
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