terça-feira, 3 de novembro de 2020

Em vez de dias de luto, dias de esperança alicerçada na fé

 

 

Logo a seguir à abertura do mês de novembro, a liturgia católica faz a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos. E tradicionalmente o mês de novembro não se circunscreve ao mês das castanhas ou da intensa queda outonal da folha, mas assume-o o povo cristão como o Mês das Almas, marcado pela oração mais intensa e alargada pelas almas daqueles que nos precederam na fé, o jubileu em alguns lugares (celebração do sacramento da Reconciliação, canto do ofício de defuntos e missa solene com a comunhão do povo), o canto das almas pelas ruas, a que chamam, nalgumas terras, grito, clamores ou cramóis.

Numa perspetiva terrífica, o dia 2 de novembro e todo o mês serão de luto, tristeza. E, este ano, por maioria de razão, dado que houve tantas pessoas que foram vítimas letais da pandemia de covid-19 e tantas outras que morreram porque as circunstâncias de acesso aos cuidados de saúde, nomeadamente hospitalares, as deixaram para trás. Acresce a isto que, por força das regras sanitárias, muitos faleceram e foram sepultados sem que às famílias tivesse sido oferecida a oportunidade duma despedida condigna, o que impediu a forma de luto a que era justo proceder em termos humanos. Por este motivo, o Governo decretou para o passado dia 2 um dia de luto nacional pelas vítimas letais da covid-19. E a Conferência Episcopal  celebrará, às 11 horas do dia 14, na Basílica da Santíssima Trindade do Santuário de Fátima uma Eucaristia de sufrágio pelas vítimas da pandemia em Portugal.

À partida, o mês de novembro fica marcado pelo luto nacional, embora se diga, com justeza, que a vida não para e que sem economia não há saúde ou bem-estar. Aliás, recordo que uma das melhores afirmações de Cavaco Silva, no âmbito da sua corrida para a reeleição presencial, ao ser-lhe apontada a preocupação pela economia, foi que “economia é bem-estar”.

Ora, sucede que o Secretariado Nacional da Liturgia, em nota de introdução à celebração da Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, explica o sentido do dia.   

Assegura que é continuação lógica da Solenidade de Todos os Santos, em que ninguém pensa participar com rosto de luto, mas de júbilo por Deus que junta à sua volta os sues filhos e filhas que O Contemplam na glória (digo eu), ou seja, “gozam em Deus a serenidade da vida imortal”. Com efeito, “se nos limitássemos a lembrar os nossos irmãos Santos, a Comunhão de todos os crentes em Cristo não seria perfeita”, pois tanto os fiéis que vivem na glória como os que vivem na purificação, preparando-se para a visão de Deus, são todos membros de Cristo pelo Batismo e continuam todos unidos a nós. Por isso, esta Igreja que peregrina e milita não podia celebrar a Igreja da glória e esquecer a Igreja que se purifica no Purgatório.

Se é verdade que “a Igreja, todos os dias, na Missa, ao tornar sacramentalmente presente o Mistério Pascal, lembra “aqueles que nos precederam com o sinal da fé e dormem agora o sono da paz(Oração Eucarística I) – ou utiliza formulas semelhantes como “os nossos irmãos que adormeceram na paz de Cristo e de todos os defuntos cuja fé só Vós conhecestes (Oração Eucarística IV) –, neste dia, essa recordação é mais profunda e viva. Assim, o dia dos Fiéis Defuntos não é dia de luto e tristeza, mas dia de mais íntima comunhão com aqueles que “não perdemos, porque simplesmente os mandámos à frente” (São Cipriano). É dia de esperança, porque estamos certos de que os nossos irmãos ressurgirão em Cristo para uma vida nova. É, sobretudo, dia de oração, que se revestirá da maior eficácia, se a unirmos à Missa, Banquete e Sacrifício de reconciliação. Na Missa, com efeito, o Sangue de Cristo lavará as culpas e alcançará a misericórdia de Deus para os nossos irmãos que adormeceram na paz com Ele, de modo que, acabada a Sua purificação, sejam admitidos no Seu Reino.

Há, pois, que mudar de perspetiva. Se o pranto é humano e se a saudade é salutar, nem por isso, hão de anular ou eclipsar a esperança. Em vez do espectro da trombeta divina a anunciar o terrível “dia de ira, aquele dia(dies irae, dies illa – hino do século XIII), é saudável que nos confortemos com a promessa de Jesus: “O teu irmão ressuscitará(Jo 11,23). Na verdade, Jesus estava a falar a sério quando disse a Marta: Eu sou a ressurreição e a vida; quem acredita em mim, ainda que morra, viverá; e todo aquele que vive e acredita em mim jamais morrerá para sempre(Jo 11,25-26). Por isso, a desafiou: “Acreditas nisto?(Jo 11,26). Ora, importa que saibamos que este desafio se dirige hoje a nós, os que choramos, os que temos saudade, mas que nos sentimos unidos aos nossos familiares defuntos, que nos precederam na fé e na partida.

Assim, devemos professar a nossa fé como Marta: “Sim, Senhor, eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, que vem ao mundo(Jo 11,27). E, nesta fé pessoal, cimentada pela fé comunitária do “nós cremos”, alicerçaremos a esperança que nos faz peregrinar de cabeça levantada, mas com os pés assentes na terra, conscientes do passado donde vimos, mas almejando o futuro para onde caminhamos. Evitaremos, segundo as nossas possibilidades, a morte prematura, causada pela negligência na saúde e na minoração do acidente ou do cataclismo, pelo crime, ódio, conflito e guerra. “Vemos, ouvimos e lemos: não podemos ignorar” (Sophia), mas andaremos sem deixar ninguém para trás, porque a esperança e os bens têm de ser património de todos.

Precisamos da conversão por que passaram os Padres conciliares (do Vaticano II). Queriam eles, à revelia do otimismo do Papa São João XXIII, dar ao célebre esquema XIII o título “Clangor et Luctus(som estridente de trombeta e o luto), impressionados com as desgraças, atropelos à dignidade e aos direitos humanos, conflitos, guerras, enfim, tantas formas de morte e destruição. Todavia, a visão dos sinais dos tempos, que faz intuir no mundo os sinais da presença de Deus, levou os Padres a mudar o título do predito esquema XIII para “Gaudium et Spes(alegria e a esperança).

Não que viessem a ignorar os males da humanidade ou o enigma do homem, mas quiseram que sobressaíssem as alegrias e esperanças em detrimento da convocação do som terrífico da trombeta final para o juízo exterminador. E o esquema XIII, com o novo título, deu a Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo atual, cujo n.º 1 é do teor seguinte:

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai e receberam a mensagem da salvação para a comunicarem a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história.”.       

Seja o mês de novembro, como toda a memória pelos defuntos, reflexo da nossa vida de fé orante, de esperança operosa e de caridade afetiva e efetiva com as pessoas e estruturas sociais.  

2020.11.03 – Louro de Carvalho

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