Logo a seguir à abertura do mês de novembro, a
liturgia católica faz a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos. E tradicionalmente o mês de novembro não se
circunscreve ao mês das castanhas ou da intensa queda outonal da folha, mas
assume-o o povo cristão como o Mês das
Almas, marcado pela oração mais intensa e alargada pelas almas daqueles que
nos precederam na fé, o jubileu em alguns lugares (celebração do sacramento da Reconciliação, canto do ofício de defuntos e
missa solene com a comunhão do povo), o canto das almas pelas ruas, a que chamam, nalgumas terras, grito, clamores
ou cramóis.
Numa perspetiva terrífica, o
dia 2 de novembro e todo o mês serão de luto, tristeza. E, este ano, por
maioria de razão, dado que houve tantas pessoas que foram vítimas letais da pandemia
de covid-19 e tantas outras que morreram porque as circunstâncias de acesso aos
cuidados de saúde, nomeadamente hospitalares, as deixaram para trás. Acresce a
isto que, por força das regras sanitárias, muitos faleceram e foram sepultados
sem que às famílias tivesse sido oferecida a oportunidade duma despedida
condigna, o que impediu a forma de luto a que era justo proceder em termos
humanos. Por este motivo, o Governo decretou para o passado dia 2 um dia de
luto nacional pelas vítimas letais da covid-19. E a Conferência Episcopal celebrará, às 11 horas do dia 14, na Basílica da Santíssima
Trindade do Santuário de Fátima uma Eucaristia de sufrágio pelas vítimas
da pandemia em Portugal.
À partida, o mês de novembro
fica marcado pelo luto nacional, embora se diga, com justeza, que a vida não
para e que sem economia não há saúde ou bem-estar. Aliás, recordo que uma das
melhores afirmações de Cavaco Silva, no âmbito da sua corrida para a reeleição presencial,
ao ser-lhe apontada a preocupação pela economia, foi que “economia é bem-estar”.
Ora, sucede que o Secretariado Nacional da Liturgia,
em nota de introdução à celebração da Comemoração
de Todos os Fiéis Defuntos, explica o sentido do dia.
Assegura que é continuação lógica da Solenidade de
Todos os Santos, em que ninguém pensa participar com rosto de luto, mas de júbilo
por Deus que junta à sua volta os sues filhos e filhas que O Contemplam na
glória (digo eu), ou seja, “gozam em Deus a serenidade da vida imortal”.
Com efeito, “se nos limitássemos a lembrar os nossos irmãos Santos, a Comunhão
de todos os crentes em Cristo não seria perfeita”, pois tanto os fiéis que
vivem na glória como os que vivem na purificação, preparando-se para a visão de
Deus, são todos membros de Cristo pelo Batismo e continuam todos unidos a nós. Por
isso, esta Igreja que peregrina e milita não podia celebrar a Igreja da glória
e esquecer a Igreja que se purifica no Purgatório.
Se é verdade que “a Igreja, todos os dias, na Missa,
ao tornar sacramentalmente presente o Mistério Pascal, lembra “aqueles que nos precederam com o sinal da fé
e dormem agora o sono da paz” (Oração Eucarística I) – ou utiliza formulas semelhantes como “os nossos irmãos que adormeceram na paz de Cristo e de todos os
defuntos cuja fé só Vós conhecestes (Oração
Eucarística IV) –, neste
dia, essa recordação é mais profunda e viva. Assim, o dia dos Fiéis Defuntos
não é dia de luto e tristeza, mas dia de mais íntima comunhão com aqueles que “não
perdemos, porque simplesmente os mandámos à frente” (São
Cipriano). É dia de esperança, porque estamos
certos de que os nossos irmãos ressurgirão em Cristo para uma vida nova. É,
sobretudo, dia de oração, que se revestirá da maior eficácia, se a unirmos à
Missa, Banquete e Sacrifício de reconciliação. Na Missa, com efeito, o Sangue
de Cristo lavará as culpas e alcançará a misericórdia de Deus para os nossos
irmãos que adormeceram na paz com Ele, de modo que, acabada a Sua purificação,
sejam admitidos no Seu Reino.
Há, pois, que mudar de perspetiva. Se o pranto é
humano e se a saudade é salutar, nem por isso, hão de anular ou eclipsar a esperança.
Em vez do espectro da trombeta divina a anunciar o terrível “dia de ira, aquele dia” (dies irae,
dies illa – hino do século XIII), é saudável
que nos confortemos com a promessa de Jesus: “O teu irmão ressuscitará” (Jo 11,23). Na verdade, Jesus estava a falar a sério quando
disse a Marta: “Eu sou a ressurreição
e a vida; quem acredita em mim, ainda que morra, viverá; e todo aquele que vive
e acredita em mim jamais morrerá para sempre” (Jo 11,25-26). Por isso, a desafiou: “Acreditas
nisto?” (Jo 11,26). Ora, importa
que saibamos que este desafio se dirige hoje a nós, os que choramos, os que
temos saudade, mas que nos sentimos unidos aos nossos familiares defuntos, que
nos precederam na fé e na partida.
Assim, devemos
professar a nossa fé como Marta: “Sim,
Senhor, eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, que vem ao mundo”
(Jo 11,27). E, nesta fé pessoal, cimentada pela fé comunitária do “nós
cremos”, alicerçaremos a esperança que nos faz peregrinar de cabeça levantada,
mas com os pés assentes na terra, conscientes do passado donde vimos, mas
almejando o futuro para onde caminhamos. Evitaremos, segundo as nossas possibilidades,
a morte prematura, causada pela negligência na saúde e na minoração do acidente
ou do cataclismo, pelo crime, ódio, conflito e guerra. “Vemos, ouvimos e lemos:
não podemos ignorar” (Sophia), mas andaremos
sem deixar ninguém para trás, porque a esperança e os bens têm de ser
património de todos.
Precisamos da
conversão por que passaram os Padres conciliares (do
Vaticano II). Queriam eles, à revelia do otimismo do Papa São João XXIII,
dar ao célebre esquema XIII o título “Clangor et Luctus” (som estridente de trombeta e o luto), impressionados
com as desgraças, atropelos à dignidade e aos direitos humanos, conflitos,
guerras, enfim, tantas formas de morte e destruição. Todavia, a visão dos
sinais dos tempos, que faz intuir no mundo os sinais da presença de Deus, levou
os Padres a mudar o título do predito esquema
XIII para “Gaudium et Spes” (alegria e a esperança).
Não que viessem
a ignorar os males da humanidade ou o enigma do homem, mas quiseram que sobressaíssem
as alegrias e esperanças em detrimento da convocação do som terrífico da
trombeta final para o juízo exterminador. E o esquema XIII, com o novo título, deu a Constituição Pastoral sobre
a Igreja no mundo atual, cujo n.º 1 é do teor seguinte:
“As alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma
verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua
comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo
Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai e receberam a
mensagem da salvação para a comunicarem a todos. Por este motivo, a Igreja
sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história.”.
Seja o mês de
novembro, como toda a memória pelos defuntos, reflexo da nossa vida de fé orante,
de esperança operosa e de caridade afetiva e efetiva com as pessoas e estruturas
sociais.
2020.11.03 – Louro de
Carvalho
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