sábado, 21 de novembro de 2020

Retornar “à mística do bem comum”

 

Encerrou-se neste sábado, dia 21 de novembro, com uma videomensagem do Papa, o evento “Economia de Francisco” – “um evento de três dias, inspirado no exemplo de São Francisco de Assis para “fazer um ‘pacto’ para mudar a economia atual e dar alma à economia de amanhã” –, dirigido a jovens empreendedores de todo o mundo, tendo o Sumo Pontífice, num longo discurso, encorajado a juventude mundial a não ter medo de sujar as mãos, sem atalhos, para transformar a economia e, consequentemente, toda a sociedade. Com efeito, depois da crise, não podemos voltar a um consumismo febril, mas devemos aproveitar a oportunidade para nos colocarmos ao serviço do bem comum.

Na mensagem aos muitos participantes, Francisco agradeceu a participação numerosa e proferiu palavras de encorajamento aos jovens citando as encíclicas “Laudato si” e “Fratelli tutti” e fazendo referência aos predecessores São Paulo VI, São João Paulo II e Bento XVI. Depois, recordou a primeira vez que, impressionado, viu um condomínio fechado, na Argentina, na década de 1970, pediu que não se deixe os corações tornarem-se insensíveis ao sofrimento dos outros e interpelou cada um: “O teu coração é como um bairro fechado?”. E explicitou:

Tive que visitar alguns noviços da Companhia de Jesus e cheguei a uma cidade e, depois, andando por lá, alguém me disse: Não, ali não se pode ir, é um bairro fechado. Dentro havia muros e dentro havia casas, ruas, mas fechado: ou seja, um bairro que vivia na indiferença. Impressionou-me muito ver aquilo…Mas depois isto cresceu, cresceu, cresceu… e estava em todos os lugares. Mas eu pergunto-me: o seu coração é como um condomínio fechado?”.

Querendo que o mundo encontre soluções económicas “com os pobres e não apenas para os pobres” e apelando à solidariedade em moldes diferentes do mero assistencialismo, que por mais bem-intencionado que seja, corre o risco de perpetuar sistemas de injustiça, considerou:

Existem os pobres, os excluídos ... (...) É hora de eles se tornarem protagonistas da sua vida e de todo o tecido social. Não pensemos por eles, pensemos com eles. Lembrai-vos da herança do iluminismo, das elites iluminadas. ‘Tudo para o povo, nada com o povo’. Isto não está certo. Não pensemos por eles, pensemos com eles. E com eles aprendamos a desenvolver modelos económicos que irão beneficiar a todos, porque a abordagem estrutural e decisória será determinada pelo desenvolvimento humano integral, tão bem elaborado pela doutrina social da Igreja.”.

O Santo Padre, preconizando que o encontro não marca o fim dum processo, mas o início duma caminhada, e que os pobres e excluídos têm de passar a ter lugar à mesa das decisões, vincou:

É preciso aceitar estruturalmente que os pobres têm a dignidade suficiente para se sentarem nos nossos encontros, participarem nas nossas discussões e levarem pão para suas casas. E isso é muito mais do que assistencialismo: estamos a falar duma conversão e transformação das nossas prioridades e do lugar do outro nas nossas políticas e na ordem social.”.

Aos cerca de 115 participantes no encontro, de diversos países, pediu que tenham noção da importância do seu papel, concretizando:

A gravidade da situação atual, que a pandemia de covid-19 tornou ainda mais visível, exige uma tomada de consciência responsável de todos os atores sociais, de todos nós, entre os quais vós tendes um papel primordial. As consequências das nossas ações e decisões vão afetar-vos na primeira pessoa, portanto não podeis ficar fora dos lugares onde é gerado, não digo o vosso futuro, mas o vosso presente. Não podeis ficar fora de onde se gera o presente e o futuro. Ou vós vos envolveis, ou a história passar-vos-á por cima.”.

Para ter sucesso esta caminhada de busca de novos modelos económicos, é preciso abandonar a cultura do descarte e abraçar um novo paradigma, pois “não estamos condenados a modelos económicos cujo interesse imediato se limita ao lucro e à promoção de políticas públicas favoráveis, sem preocupação com os custos humanos, sociais e ambientais”. E, declarando que “não é fácil caminhar rumo a reais soluções quando aqueles que não pensam como nós são desacreditados, caluniados e mal citados” (“desacreditar, caluniar e citar mal são formas cobardes de recusar tomar decisões necessárias para resolver muitos problemas”), o Papa Bergoglio observou a partir da experiência vivida por todos:

Vós experienciastes a cultura do encontro de que tanto precisamos, que é o oposto da cultura do descarte que está na moda. Esta cultura do encontro torna possível que sejam escutadas muitas vozes em torno da mesma mesa, para que se dialogue, considere, discute e formule, numa perspetiva poliédrica, diferentes aspetos e possíveis respostas para problemas globais envolvendo os nossos povos e as nossas democracias.”.

Francisco terminou o seu discurso com um apelo direto aos jovens que participaram nos trabalhos, cujo formato foi alterado por causa da pandemia, e aos mais de dois mil participantes, (na sua maioria jovens com menos de 35 anos), que passaram os últimos meses a trabalhar em conjunto com o desejo de mudar a economia atual para lhe dar um novo rosto, mais humano e solidário.

Frisou o Pontífice que a perspetiva do desenvolvimento humano integral é uma boa notícia a profetizar e aplicar, sem atalhos, mas sujando as mãos, sendo fermento. Com efeito, passada esta crise sanitária que estamos vivendo, a pior reação seria cair ainda num febril consumismo e em novas formas de autoproteção egoísta. Por isso, temos de nos colocar todos ao serviço do bem comum, de modo que, no final, não existam mais ‘os outros’, mas um grande nós’.” 

É esta a exortação final de Francisco:

Não tenhais medo de vos envolverdes e tocardes a alma das cidades com o olhar de Jesus. Não tenhais medo, porque ninguém se salva sozinho. Ninguém se salva sozinho. A vós, jovens, provenientes de 115 países, dirijo o convite a reconhecerdes que necessitamos uns dos outros para dar vida a esta cultura económica, capaz de fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florescer esperanças, enfaixar feridas e criar relações.”.

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Está visto que, para Francisco, o encontro virtual de Assis não é um ponto de chegada, mas o impulso inicial dum processo que somos convidados a viver como vocação, como cultura e como pacto”. Para tanto, o Bispo de Roma deu voz à juventude que, tal como ele, é concorde em afirmar que “precisamos da mudança e a queremos”, sem nos deixarmos levar pela lógica do “sempre foi assim”.

Na verdade, hoje, quando as injustiças, as desigualdades, a exclusão não são mais toleradas, a cultura do descarte tem de ter os seus dias contados, pois ninguém tem o direito de se sentir “mais humano do que outro”. E, se urge encontrar respostas, é indispensável fazer crescer e apoiar grupos dirigentes capazes de elaborar cultura, iniciar processos – não esquecendo a palavra de ordem: “iniciar processos” – traçar percursos, alargar horizontes e criar pertenças. 

Para isso, é imprescindível mudar os estilos de vida e os modelos de produção e consumo e retornar “à mística do bem comum”, pois, como já dizia o Papa emérito, “a fome não depende tanto da escassez material, mas da escassez de recursos sociais”. É, pois “tempo de ousar o risco de favorecer e estimular modelos de desenvolvimento, progresso e sustentabilidade em que as pessoas, e especialmente os excluídos, entre os quais a irmã Terra, deixem de ser uma presença meramente funcional, para se tornarem protagonistas da sua vida, assim como de todo o tecido social”. Ou seja, não devemos pensar “por eles, mas com eles”.

Enfim, política e economia devem estar a serviço da vida, especialmente da vida humana e a medida do desenvolvimento é a humanidade, sob pena de, sem esta centralidade e orientação, ficarmos prisioneiros dum círculo alienante que somente perpetuará dinâmicas de degradação, exclusão, violência e polarização.

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E a questão que se levanta é que tipo de (novo) paradigma enforma a Economia de Francisco.

Para responder à questão, é de recordar que o Papa encarregou o Professor Luigino Bruni de organizar este encontro, motivando-o a pôr os jovens no centro. Bruni, com a sua equipa, convocou 25 jovens do mundo inteiro para serem os principais organizadores do encontro. Assim, em vez de o Pontífice preparar um documento programático que parta de estudos, emita opiniões, apresente propostas e profira sentenças ou apresente novo modelo acabado, convocou os jovens para um encontro de compromisso. Por isso, a Economia de Francisco é compromisso desenhado pelos jovens e para jovens. A diferença começa logo na génese do modelo.

Em setembro passado, a revista The Economist fazia uma manchete com o título Popenomics. E o texto focava-se no encontro de Assis que o Papa organizara para março de 2020 com economistas, jovens líderes e empreendedores sociais, expressando vagamente o que poderia ser esperado do pensamento económico papal e como ele pode ser considerado particularmente desafiador de diversas correntes económicas contemporâneas.

Assim, o texto mostrava a surpresa dos economistas em relação à falta de teoria económica expressa por um Papa que invade o espaço social e económico com facilidade e que tem como foco trazer a mensagem da Igreja para a família e para a casa de cada um.

Não obstante, em 20 de outubro, Ricardo Zózimo (blogue: ver.pt), analisando a problemática, afirmava que o Papa Francisco tem uma forma muito própria de se expressar sobre as questões que afetam a vida das famílias. Fala do mundo e ao mundo através da sua experiência, das suas visitas e, sobretudo, do que vai observando através da rede que é a Igreja – “rede que congrega ricos e pobres, afortunados e desafortunados, jovens e não tão jovens”. É uma “visão muito alicerçada na realidade”, que “tem um potencial enorme de entrar em choque com o pensamento de muitos economistas que tentam explicar o que acontece no mundo de uma perspetiva teórica sem nunca terem experienciado parte do mundo e as dificuldades a que o Papa se refere”.

E, ao invés do The Economist, nota que o pensamento económico de Francisco está bem articulado desde 2015 na encíclica “Laudato Si – “uma das maiores alguma vez escrita durante um pontificado” – que tem um foco particular na ecologia integral e no modo como todos devemos olhar para a missão de cuidar da casa comum. Porém, o Papa vai mais longe ao ligar, de forma direta e articulada, o cuidado da casa comum a conceitos económicos. Tanto assim é que a palavra ‘economia’ é usada 22 vezes na encíclica em contextos distintos. Por exemplo, como adverte o blogger, no n.º 16, que resume os eixos fundamentais da mensagem do Papa, “a economia é vista como central para que se pense o progresso de toda a sociedade”, o que mostra que, a partir desta forma de estar tão caraterística, Francisco “vem, mais uma vez, mudar o paradigma e, desta vez, olhar com fé para as questões da economia”.

Tais eixos ou “temas nunca se dão por encerrados nem se abandonam, mas são constantemente retomados e enriquecidos, são: a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta; a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo; a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia; o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso; o valor próprio de cada criatura; o sentido humano da ecologia; a necessidade de debates sinceros e honestos; a grave responsabilidade da política internacional e local; a cultura do descarte; e a proposta dum novo estilo de vida.

Contudo, o mais surpreendente da proposta de Assis é a forma e, por ora, não o conteúdo.

Ao mudar a forma, o Papa pede para colocar os jovens no centro da mudança e que esta nova economia seja revisitada a partir do pensamento dos jovens, seguindo o rumo irreverente de São Francisco de Assis, cujo nome tomou, que norteia este encontro e cuja história mostra que se pode fazer “a combinação de força interior, ingenuidade e sonho”. É claramente no espaço e tempo de Assis que este compromisso de jovens e para jovens vai ser desenhado, conversado e aceite, no contexto dum mundo que impõe tantas vezes aos jovens o que eles devem ser, pensar e agir. É o gosto da manipulação disfarçado de paternalismo tutelar.

Porém, os jovens não o fazem com as suas opiniões, pois o encontro foi sendo desenhado com base na motivação expressa nos milhares de candidaturas recebidas pela organização. E, bebendo deste espírito, bastantes atividades aconteceram em vários países do mundo.

E, em Portugal, em particular a ACEGE, através do seu braço ACEGE NEXT e em parceria com a Universidade Católica Portuguesa, a AESE e a NOVA SBE, propuseram e organizaram um curso de preparação para a Economia de Francisco. Assim, através de sessões e experiências desenhadas nestas Universidades, os mais de 50 jovens entre 25-40 anos iniciaram uma viagem que levou a voz de Portugal ao encontro de Assis – viagem desenhada nos pilares da proposta da Economia de Francisco: o desenvolvimento dum modelo económico que gere uma economia inclusiva, que seja centrada nos jovens e que cuide do ambiente de uma forma sustentada.

Apesar de ser difícil prever a transformação que o encontro de Assis pode operar nos sistemas económicos globais, até os economistas do The Economist podem estar descansados ao nível da mudança dos conteúdos teóricos subscritos e defendidos pelo Papa Francisco. O que não se pode antecipar é a transformação que 50 jovens portugueses, em partilha com mais de 1500 jovens de todo o mundo, trarão para as suas empresas, organizações e vidas pessoais após o encontro. Seja como for, o encontro vai transformar – assegura Ricardo Zózimo.

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Torçamos para que a mudança surja e se consolide; e acalentemos ativamente esta esperança!

2020.11.21 – Louro de Carvalho

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