Um folheamento
do “Almanaque Boa Nova 2013” levou-me
à releitura dum texto de Lia Diskin, jornalista e filósofa, que, no Festival Mundial
da Paz de 2006, relatou o caso dum antropólogo que, ao terminar o estudo dos
costumes da tribo Ubuntu, em África, tendo de esperar pelo transporte para o aeroporto,
fez este jogo com as crianças que estavam no largo:
Colocou um
pacote de doces debaixo da sombra duma árvore; chamou as crianças e acertou com
elas que se deveriam pôr a uma certa distância do lugar que ele indicasse;
depois, à palavra de ordem “Já!”, todas deveriam correr para o pacote dos doces
para o alcançarem. As crianças, a postos no sítio indicado, esperaram a ordem
de partida, após a qual, correram de mãos dadas para o pacote de doces. E, como
chegaram todas ao mesmo tempo, pegaram no objeto da corrida e distribuíram entre
si os doces, que deglutiram em ambiente de franca alegria.
O propositor
do jogo questionou porque tinham ido em conjunto quando um só poderia ter
arrebatado para si todos os doces. E a resposta foi pronta e clara: “Ubuntu, senhor! Cada um de nós não podia
ficar feliz se todos os outros ficassem tristes.”.
Com isto
o antropólogo ficou desconcertado, pois andara meses a estudar a tribo e não
percebera a essência daquele povo cujo devir assenta, não na competitividade ou
concorrência, por vezes desleal, mas na cooperação solidária. Com efeito, numa tradução
para português, segundo uns, ubuntu significa “humanidade para com os outros” e, segundo outros, “eu sou porque nós somos”. São expressões,
no fundo equipolentes. Aliás, nós temo-las parecidas: “um por todos e todos por um” e o lema benfiquista “e pluribus unum”. Não sei se as levamos
a sério numa sociedade fortemente discriminatória, ainda com laivos de
xenofobia, racismo e homofobia, não confessados obviamente, em que a ideia é a
do “salve-se quem puder” na guerra
dos negócios, na avaliação do desempenho, no ingresso no ensino superior, na
progressão académica, no processo de evolução profissional, no mérito
desportivo, na promoção militar.
Ora,
segundo os estudiosos é da essência da filosofia ubuntu, que releva o papel das
alianças e do relacionamento das pessoas umas com as outras, a conceção duma sociedade
assente nos pilares do respeito e da solidariedade. Por isso, as pessoas
com ubuntu sentem-se afetadas face à diminuição, humilhação e opressão dos seus
semelhantes, sabendo que o mundo não é uma ilha nem composto de ilhas isoladas
umas das outras. Elas têm consciência de que são humanas e de que a natureza
humana postula respeito, compaixão, empatia e partilha.
Dirk
Louw, doutor em Filosofia Africana pela Universidade de Stellenbosch, na
África do Sul, e membro-fundador da South African Philosopher Consultants
Association, refere que não se conhece a origem exata da palavra “ubuntu”.
Os estudiosos têm-na como expressão duma ética que vem de tempos perdidos na
memória dos povos por força das brumas do tempo; e alguns apontam o Egito
Antigo – enquanto parte dum complexo de civilizações de que faziam parte as regiões
ao sul do Egito, nomeadamente o Sudão, a Eritreia, a Etiópia e a
Somália – como o local de origem do ubuntu como ética profundamente humana e humanista.
Porém, o seu fundamento é associado à África Subsaariana e às línguas bantu (grupo
etnolinguístico localizado principalmente na África Subsaariana).
Este
fundamento tradicional de respeito pelos outros pode ser interpretado como uma
regra de conduta ou uma ética social, pois entende e exige o ser humano como
“ser-com-os-outros”. Assim, o ubuntu alia um sabor marcadamente africano a
uma avaliação descolonizada.
Na política, o
conceito é assumido para encarecer a necessidade da união e do consenso nas
tomadas de decisão, bem como na ética humanitária. E Dirk sublinha o lado
religioso, assente na máxima zulu (uma das 11 línguas
oficiais da África do Sul)
“umuntu ngumuntu ngabantu” (uma pessoa é uma pessoa através de
outras pessoas) que parece
não ter conotação religiosa no Ocidente, mas está ligada à ancestralidade. “Ubuntu”,
implicando o respeito pela religiosidade, individualidade e particularidade dos
outros, enfatiza a importância do acordo ou consenso e da reconciliação, já que
o homem é fundamentalmente o ser em relação.
Embora
haja uma hierarquia de importância entre os oradores, cada pessoa recebe igual ensejo
de falar até que seja atingido algum tipo de acordo, consenso ou coesão do
grupo. Tal objetivo é expresso por palavras como “Simunye” (“nós somos um”, ou seja, “a união faz a força”) e slogans como “uma lesão é uma
lesão para todos”.
Esta filosofia
tornou-se relevante na África do Sul, em que, perto de 5 décadas de segregação
racial apoiada pela legislação, o seu processo de construção no pós-apartheid
exigia igualdade universal, respeito pelos direitos humanos, liberdades e
garantias, valores e diferenças. Assim, a ideia de ubuntu está associada à
história da luta contra o regime que excluía a cidadania e os direitos dos
negros, como se torna pertinente em contextos de repressão e colonialismo.
Leonhard Praeg,
filósofo político, observa que, pela pergunta “O que é Ubuntu?”, o africano procura autenticidade cultural e liberdade
de um passado e presente, representada pela opressão ocidental
e pelo neocolonialismo, sendo que o surgimento da democracia na África do
Sul, em 1994, pode ter servido como um catalisador neste sentido, inspirando o
ubuntu a justiça para os povos indígenas conquistados nas guerras do
colonialismo. Por outro lado, tem de reconhecer-se a diversidade de línguas,
histórias, valores e costumes constitutivos da sociedade sul-africana. Com
efeito, os sul-africanos brancos tendem a denominar de bruxaria as práticas da
medicina tradicional africana e a rotular de curandeiros os seus
praticantes. Não obstante, há, pelo menos, cinco tipos de médicos nas sociedades
tradicionais africanas e os curandeiros já são apontados como
algo de ruim pelos africanos. Porém, a cooperação dos curandeiros é vital em
iniciativas de cuidados de saúde primários, como planeamento familiar e
programas de imunização.
No entanto,
a sociedade que se sente ubuntu não está imune ao individualismo, que ressalta em
aspetos solitários da existência humana, em detrimento dos aspetos comuns, sobretudo
por contaminação dos coletivistas para quem a sociedade nada mais é que um
grupo ou uma coleção de solitários indivíduos. Na verdade, o individualismo
ocidental, muitas vezes, traduz-se em competitividade impetuosa, em contraste
com a preferência africana para a cooperação, o trabalho em grupo, a laboração em
jeito de família alargada. Efetivamente é importante criar e aumentar o lucro,
mas não pode envolver a exploração de outros. E o conceito de ubuntu
inspira, para lá das fronteiras africanas, uma forma de tratar o semelhante
como o melhor caminho para a humanidade. O ubuntu não significa que as pessoas
não devem enriquecer, mas implica que, ao fazê-lo, se leve a comunidade a
melhorar.
Na verdade,
a humanidade de cada um está presa e está indissoluvelmente ligada à do outro. Cada
um pensa e sente: “Eu sou humano, porque
eu pertenço”. Por isso, a pessoa com ubuntu pensa na totalidade, na
compaixão (capacidade de sofrer em conjunto); é acolhedora, hospitaleira,
generosa, disposta a compartilhar; é resiliente, sobrevive e emerge humana,
apesar de todos os esforços para a desumanizar, porque tem e cultiva o sentido
da pertença. A proposta de família alargada, que abarca toda a comunidade
fortalecida a partir da ajuda mútua e da cooperação como modo de vida, sanando
o sofrimento alheio, traz consigo a ideia da superação de diferentes tipos
de discriminação, relacionados, por exemplo, com o credo político, a
cor da pele, o género, a orientação sexual e a religião.
Talvez esta
ideia do trabalho conjunto, fertilizada pela força do profundo humanismo, possa
constituir um forte antídoto conta o individualismo, o egotismo, a competitividade
que não olha a meios – inspiradora para a sociedade e para a escola que a serve
e a deve modular.
A par
deste desiderato, vem a talho de foice uma outra historieta edificante plantada
no aludido almanaque.
Dois
meninos brincavam despreocupadamente sobre um lago gelado. Eis quando o gelo
quebrou e um deles caiu e ficou na iminência de se afogar sob o gelo. O outro
pegou numa pedra e foi golpeando o gelo até chegar ao amigo a quem tirou do
lago. Quando chegaram os salvadores profissionais e viram o sucedido,
perguntaram-lhe como conseguira tal proeza.
O menino
não respondeu, mas um senhor de idade que chegara entretanto e ouviu a pergunta
respondeu: “Eu sei como conseguiu… não havia aqui ninguém para dizer que ele não conseguiria”.
Aí está.
Quando a atitude é concorrencial ou competitiva no pior sentido e quando está
presente o objetivo da afirmação pessoal acima de tudo e de todos, não olhando
a meios, o pré-juízo sobre os outros é que não são capazes, não têm
competência, não chegam lá, não prestam.
Porém,
quando a perspetiva é a da cooperação e crescimento solidário ou a construção
da comunidade em que se realizam as pessoas, há o torcer pelo outro, o reforço
positivo, o incentivo, a motivação, o apoio, acompanhamento.
Quantos não
viram o seu futuro comprometido pelos prejuízos de apoucamento, quantos não
morreram pela putativa incapacidade dos outros! E quantos não viram horizontes de
vida abertos pela fé dos outros neles e foram pessoas de sucesso!
Tudo vai
da perspetiva e da conceção de vida: pelo ser humano em comunidade ou contra o
ser humano pelo hiperindividualismo narcisista; a vida na totalidade ou a
soberba da vida de uns a espezinhar todos os outros poupando os amigos enquanto
der jeito.
Talvez a
sociedade e a escola mereçam repensar-se à luz da filosofia e da ética ubuntu.
2020.11.12 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário