quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Humanidade para com os outros ou “Eu sou porque nós somos”

 

Um folheamento do “Almanaque Boa Nova 2013” levou-me à releitura dum texto de Lia Diskin, jornalista e filósofa, que, no Festival Mundial da Paz de 2006, relatou o caso dum antropólogo que, ao terminar o estudo dos costumes da tribo Ubuntu, em África, tendo de esperar pelo transporte para o aeroporto, fez este jogo com as crianças que estavam no largo:

Colocou um pacote de doces debaixo da sombra duma árvore; chamou as crianças e acertou com elas que se deveriam pôr a uma certa distância do lugar que ele indicasse; depois, à palavra de ordem “Já!”, todas deveriam correr para o pacote dos doces para o alcançarem. As crianças, a postos no sítio indicado, esperaram a ordem de partida, após a qual, correram de mãos dadas para o pacote de doces. E, como chegaram todas ao mesmo tempo, pegaram no objeto da corrida e distribuíram entre si os doces, que deglutiram em ambiente de franca alegria.

O propositor do jogo questionou porque tinham ido em conjunto quando um só poderia ter arrebatado para si todos os doces. E a resposta foi pronta e clara: “Ubuntu, senhor! Cada um de nós não podia ficar feliz se todos os outros ficassem tristes.”.

Com isto o antropólogo ficou desconcertado, pois andara meses a estudar a tribo e não percebera a essência daquele povo cujo devir assenta, não na competitividade ou concorrência, por vezes desleal, mas na cooperação solidária. Com efeito, numa tradução para português, segundo uns, ubuntu significa “humanidade para com os outros” e, segundo outros, “eu sou porque nós somos”. São expressões, no fundo equipolentes. Aliás, nós temo-las parecidas: “um por todos e todos por um” e o lema benfiquista “e pluribus unum”. Não sei se as levamos a sério numa sociedade fortemente discriminatória, ainda com laivos de xenofobia, racismo e homofobia, não confessados obviamente, em que a ideia é a do “salve-se quem puder” na guerra dos negócios, na avaliação do desempenho, no ingresso no ensino superior, na progressão académica, no processo de evolução profissional, no mérito desportivo, na promoção militar.

Ora, segundo os estudiosos é da essência da filosofia ubuntu, que releva o papel das alianças e do relacionamento das pessoas umas com as outras, a conceção duma sociedade assente nos pilares do respeito e da solidariedade. Por isso, as pessoas com ubuntu sentem-se afetadas face à diminuição, humilhação e opressão dos seus semelhantes, sabendo que o mundo não é uma ilha nem composto de ilhas isoladas umas das outras. Elas têm consciência de que são humanas e de que a natureza humana postula respeito, compaixão, empatia e partilha.  

Dirk Louw, doutor em Filosofia Africana pela Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, e membro-fundador da South African Philosopher Consultants Association, refere que  não se conhece a origem exata da palavra “ubuntu”. Os estudiosos têm-na como expressão duma ética que vem de tempos perdidos na memória dos povos por força das brumas do tempo; e alguns apontam o Egito Antigo – enquanto parte dum complexo de civilizações de que faziam parte as regiões ao sul do Egito, nomeadamente o Sudão, a Eritreia, a Etiópia e a Somália – como o local de origem do ubuntu como ética profundamente humana e humanista. Porém, o seu fundamento é associado à África Subsaariana e às línguas bantu (grupo etnolinguístico localizado principalmente na África Subsaariana).

Este fundamento tradicional de respeito pelos outros pode ser interpretado como uma regra de conduta ou uma ética social, pois entende e exige o ser humano como “ser-com-os-outros”. Assim, o ubuntu alia um sabor marcadamente africano a uma avaliação descolonizada.

Na política, o conceito é assumido para encarecer a necessidade da união e do consenso nas tomadas de decisão, bem como na ética humanitária. E Dirk sublinha o  lado religioso, assente na máxima zulu (uma das 11 línguas oficiais da África do Sul) “umuntu ngumuntu ngabantu” (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas) que parece não ter conotação religiosa no Ocidente, mas está ligada à ancestralidade. “Ubuntu”, implicando o respeito pela religiosidade, individualidade e particularidade dos outros, enfatiza a importância do acordo ou consenso e da reconciliação, já que o homem é fundamentalmente o ser em relação.  

Embora haja uma hierarquia de importância entre os oradores, cada pessoa recebe igual ensejo de falar até que seja atingido algum tipo de acordo, consenso ou coesão do grupo. Tal objetivo é expresso por palavras como “Simunye” (“nós somos um”, ou seja, “a união faz a força”) e slogans como “uma lesão é uma lesão para todos”.

Esta filosofia tornou-se relevante na África do Sul, em que, perto de 5 décadas de segregação racial apoiada pela legislação, o seu processo de construção no pós-apartheid exigia igualdade universal, respeito pelos direitos humanos, liberdades e garantias, valores e diferenças. Assim, a ideia de ubuntu está associada à história da luta contra o regime que excluía a cidadania e os direitos dos negros, como se torna pertinente em contextos de repressão e colonialismo.

Leonhard Praeg, filósofo político, observa que, pela pergunta “O que é Ubuntu?”, o africano procura autenticidade cultural e liberdade de um passado e presente, representada pela opressão ocidental e pelo neocolonialismo, sendo que o surgimento da democracia na África do Sul, em 1994, pode ter servido como um catalisador neste sentido, inspirando o ubuntu a  justiça para os povos indígenas conquistados nas guerras do colonialismo. Por outro lado, tem de reconhecer-se a diversidade de línguas, histórias, valores e costumes constitutivos da sociedade sul-africana. Com efeito, os sul-africanos brancos tendem a denominar de bruxaria as práticas da medicina tradicional africana e a rotular de curandeiros os seus praticantes. Não obstante, há, pelo menos, cinco tipos de médicos nas sociedades tradicionais africanas e os curandeiros já são apontados como algo de ruim pelos africanos. Porém, a cooperação dos curandeiros é vital em iniciativas de cuidados de saúde primários, como planeamento familiar e programas de imunização.

No entanto, a sociedade que se sente ubuntu não está imune ao individualismo, que ressalta em aspetos solitários da existência humana, em detrimento dos aspetos comuns, sobretudo por contaminação dos coletivistas para quem a sociedade nada mais é que um grupo ou uma coleção de solitários indivíduos. Na verdade, o individualismo ocidental, muitas vezes, traduz-se em competitividade impetuosa, em contraste com a preferência africana para a cooperação, o trabalho em grupo, a laboração em jeito de família alargada. Efetivamente é importante criar e aumentar o lucro, mas não pode envolver a exploração de outros. E o conceito de ubuntu inspira, para lá das fronteiras africanas, uma forma de tratar o semelhante como o melhor caminho para a humanidade. O ubuntu não significa que as pessoas não devem enriquecer, mas implica que, ao fazê-lo, se leve a comunidade a melhorar.

Na verdade, a humanidade de cada um está presa e está indissoluvelmente ligada à do outro. Cada um pensa e sente: “Eu sou humano, porque eu pertenço”. Por isso, a pessoa com ubuntu pensa na totalidade, na compaixão (capacidade de sofrer em conjunto); é acolhedora, hospitaleira, generosa, disposta a compartilhar; é resiliente, sobrevive e emerge humana, apesar de todos os esforços para a desumanizar, porque tem e cultiva o sentido da pertença. A proposta de família alargada, que abarca toda a comunidade fortalecida a partir da ajuda mútua e da cooperação como modo de vida, sanando o sofrimento alheio, traz consigo a ideia da superação de diferentes tipos de discriminação, relacionados, por exemplo, com o credo político, a cor da pele, o género, a orientação sexual e a religião.

Talvez esta ideia do trabalho conjunto, fertilizada pela força do profundo humanismo, possa constituir um forte antídoto conta o individualismo, o egotismo, a competitividade que não olha a meios – inspiradora para a sociedade e para a escola que a serve e a deve modular.

A par deste desiderato, vem a talho de foice uma outra historieta edificante plantada no aludido almanaque.

Dois meninos brincavam despreocupadamente sobre um lago gelado. Eis quando o gelo quebrou e um deles caiu e ficou na iminência de se afogar sob o gelo. O outro pegou numa pedra e foi golpeando o gelo até chegar ao amigo a quem tirou do lago. Quando chegaram os salvadores profissionais e viram o sucedido, perguntaram-lhe como conseguira tal proeza.

O menino não respondeu, mas um senhor de idade que chegara entretanto e ouviu a pergunta respondeu: “Eu sei como conseguiu… não havia aqui ninguém para dizer que ele não conseguiria”.

Aí está. Quando a atitude é concorrencial ou competitiva no pior sentido e quando está presente o objetivo da afirmação pessoal acima de tudo e de todos, não olhando a meios, o pré-juízo sobre os outros é que não são capazes, não têm competência, não chegam lá, não prestam.

Porém, quando a perspetiva é a da cooperação e crescimento solidário ou a construção da comunidade em que se realizam as pessoas, há o torcer pelo outro, o reforço positivo, o incentivo, a motivação, o apoio, acompanhamento.  

Quantos não viram o seu futuro comprometido pelos prejuízos de apoucamento, quantos não morreram pela putativa incapacidade dos outros! E quantos não viram horizontes de vida abertos pela fé dos outros neles e foram pessoas de sucesso!

Tudo vai da perspetiva e da conceção de vida: pelo ser humano em comunidade ou contra o ser humano pelo hiperindividualismo narcisista; a vida na totalidade ou a soberba da vida de uns a espezinhar todos os outros poupando os amigos enquanto der jeito.

Talvez a sociedade e a escola mereçam repensar-se à luz da filosofia e da ética ubuntu.

2020.11.12 – Louro de Carvalho

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