quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Foi celebrado acordo salarial entre o Ministério da Saúde e o SIM

 

O acordo aplica-se a todos os médicos e privilegia as renumerações mais baixas, prevendo-se um aumento de 14,6%, já em janeiro, para os assistentes hospitalares.

Após 19 meses de negociação, o governo chegou, a 28 de novembro, a acordo com o Sindicato Independente dos Médicos (SIM). O acordo, segundo o comunicado o Ministério da Saúde (MS) enviado aos jornalistas, se aplicará a todos os médicos e privilegia as renumerações mais baixas, prevendo-se um aumento de 14,6%, já em janeiro, para os assistentes hospitalares (a primeira categoria da carreira). “O aumento salarial agora acordado vai aplicar-se a todos os médicos, privilegiando as remunerações mais baixas. Assim, os assistentes hospitalares com horário de 40 horas terão um aumento de 14,6%, os assistentes graduados [a segunda posição da carreira] de 12,9% e os assistentes graduados sénior de 10,9% [a terceira e última categoria da carreira]. Modelo similar será aplicado a cada uma das carreiras médicas”, revela a tutela.

Numa atualização ao comunicado inicial, o governo pormenorizou que, no caso dos internos – os que se estão a formar para a especialidade – do quarto ano e seguintes, o aumento será de 15,7% e,  para os internos do ano comum, será de “6,1%”. Já para os médicos que frequentam o primeiro, segundo e terceiro anos da especialidade, o aumento será de 7,9%. De notar que os médicos demoram, pelo menos, seis anos a tirar a especialidade e a  entrar, efetivamente, na carreira.

O MS recorda as regras para jovens aprovadas e com impacto nos jovens médicos, como a “isenção total de IRS [imposto sobre o rendimento das pessoas singulares] no primeiro ano de atividade, de 75%, no segundo ano, de 50%, nos terceiro e quarto anos, e de 25%, no quinto ano”. 

O governo assinala que o acordo se soma a todas medidas já aprovadas, nomeadamente a generalização das Unidades de Saúde Familiar (USF) modelo B (que permite a remuneração em função de critérios de desempenho) e à dedicação plena, em regulamentação, pelo que “os cerca de 2000 médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar que transitam para as USF modelo B” terão um aumento salarial “de cerca de 60%”, já a partir do próximo ano, enquanto os médicos dos centros de saúde e dos hospitais que adiram ao regime de dedicação plena “terão um aumento salarial, em janeiro de 2024, superior a 43%“, lê-se na nota de imprensa.

“É um acordo possível”, reagiu o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, após a reunião, em declarações transmitidas pela RTP3. O MS aproxima-se do que tinha sido proposto, na reta final, pelo sindicato liderado por Jorge Roque da Cunha, que defendia um aumento de 15% transversal a todos os médicos, em 2024. “Este acordo intercalar permite a todos os médicos ter uma valorização salarial, algo que já não acontecia há vários anos, desde há mais de 10 anos, de cerca de 400 euros mensais, para todas as carreiras, se fazem urgência, se não fazem urgência, de uma forma transversal”, disse o secretário-geral do SIM. A crise no SNS e a crise política, que se lhe juntou, obrigava o SIM “a ter um sentido de responsabilidade”, acrescentou.

De fora do acordo ficou a Federação Nacional dos Médicos (FNAM), que reivindicava um aumento de 30% para todos os médicos (proposta inicialmente defendida pelo SIM), mas que, na reunião do dia 28, chegou a baixar para 22%. “A FNAM não aceita o acordo, a proposta que foi feita pelo Ministério da Saúde, uma vez que isto é um mau acordo para os médicos, é um mau acordo para o Serviço Nacional de Saúde, isto não vai permitir fixar médicos no SNS”, disse a presidente da federação, Joana Bordalo e Sá, à saída da reunião no Ministério da Saúde.

Quanto à redução faseada do horário de trabalho das 40 horas para as 35 horas e a redução progressiva do horário em serviço de urgência das atuais 18 horas para as 12 horas, que tinha vindo a ser discutida antes da crise política, o governo adianta que, nas “atuais circunstâncias políticas e não tendo havido atempadamente consenso sobre todas as matérias negociadas”, não foi possível chegar a um compromisso sobre essas matérias.

A tutela “saúda a capacidade de diálogo e compromisso, em prol de melhores condições de trabalho e de resposta aos utentes” e garante que “realizou um enorme esforço para ir ao encontro das reivindicações das estruturas sindicais”, de modo a reforçar o SNS e não descurando “um quadro de responsabilidade orçamental e equilíbrio entre as carreiras da administração pública”.

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Porém, um dia depois de o MS ter assinado um acordo de valorização salarial com o SIM, a confusão voltou. Com efeito, o acordo pode não ser automático para todos os profissionais, segundo a tutela, que está a estudar o instrumento legislativo para o aplicar. Para o SIM, o acordo é só para os seus associados. Para a FNAM, “tal não é possível”. E especialistas na área do Trabalho dizem que a questão “é complexa” e que pode ter as duas leituras.

Afinal, das 36 reuniões que, durante 19 meses, juntaram à mesa e no mesmo processo negocial o MS, a FNAM e o SIM, fica um processo marcado por alguma confusão, desde logo porque, poucas horas depois de o MS ter assinado um acordo com o SIM, surgiu a dúvida se este compromisso abrangerá, de forma automática, todos os médicos ou não.

Não era claro, para a tutela, como é que os médicos que não são sindicalizados ou os que são sindicalizados na FNAM terão acesso ao acordo. Em resposta à questão do Diário de Notícias (DN) sobre o tema, foi referido que, de momento, “o Ministério da Saúde ainda está a ultimar os termos concretos da sua operacionalização, que será concretizada em 1 de janeiro de 2024”.

A mesma fonte explicou que o que poderá acontecer é não ser automático para todos os médicos, podendo os profissionais ter de dizer se querem ser abrangidos pelo acordo ou não. Dependerá do “instrumento legislativo que venha a ser fechado pelo governo para a aplicação do acordo”.

No comunicado lançado no dia anterior, o MS assinalava o acordo com o SIM como “uma solução que garante a estabilidade do funcionamento do SNS, pilar do acesso à saúde em Portugal, tendo a mesma sido aceite por um dos sindicatos”, e que, “sem prejuízo do aumento salarial agora acordado, vai aplicar-se a todos os médicos, privilegiando as remunerações mais baixas”.

Todavia, o secretário-geral do SIM anunciou que o acordo abrangerá os sócios do seu sindicato, ou seja, “irá abranger os médicos com contratos em funções públicas, que são a esmagadora maioria dos que estão nos cuidados primários, e os que têm contratos de trabalho individual sindicalizados no SIM”. E a presidente da FNAM reagiu, dizendo que tal “não é possível” e garantiu ter base jurídica para fundamentar que “os novos valores remuneratórios que se vão aplicar aos médicos a partir de 1 de janeiro, aplicam-se a todos os médicos especialistas e até aos médicos internos, sindicalizados ou não, que trabalham no SNS”.

O advogado Filipe Lamelas considera que “a questão é complexa, a sua discussão não é de todo clara e a sua aplicação pode ter as duas leituras”. Aliás, segundo ele, “os próprios tribunais não são unânimes nesta matéria, havendo decisões que confirmam as duas perspetivas, ou se quisermos os dois argumentos jurídicos”. Está em causa o confronto de dois direitos ou de dois princípios: o princípio da filiação sindical, porque, numa negociação coletiva, de um sindicato com um empregador, esta só abrange os filiados desse sindicato; e o do “salário igual para trabalho igual”. Porém, “tanto um como outro são argumentos falíveis”.

Questionado sobre se esta questão seria constitucional, pois nenhum trabalhador é obrigado a ser sindicalizado, confirmou que “nada obriga a um trabalhador a filiar-se, mas o princípio da filiação também é um princípio constitucional”. Assim, do seu ponto de vista, “o que se tem de fazer aqui é medir […] este conflito e ver o que deve prevalecer”. ​​​Na verdade, “o que o Estado, que não é um empregador normal, é um empregador público, pode definir é um mecanismo de extensão a todos os médicos para garantir igualdade”.

A classe médica, depois de um acordo que foi só assinado por um sindicato – cujo secretário-geral reconhece não ser “um acordo que satisfaz por completo, mas foi o acordo possível e sempre é mais do que os 3% para toda a função pública” – vai ter de esperar mais tempo para saber quem será abrangido ou o que terá de fazer para ter também tais aumentos salariais. Pelo menos, 24 mil médicos vão ter de esperar pelo mecanismo legislativo que está a ser definido pela tutela. Isto tendo em conta que o SIM diz contar hoje com cerca de sete mil sócios e a FNAM com quase dez mil (3895 no sindicato do Sul, 3114 no do Norte e 2700 no do Centro, o que dá um total de 9704 sócios", dos 31 mil médicos que trabalham no SNS, 21 mil especialistas e 10 mil internos.

Para o SIM, que, tinha manifestado, a 23 de novembro, disponibilidade para discutir só a questão salarial, como o governo pretendia, e para chegar a um compromisso, este “foi o acordo intercalar possível que dará aos médicos um aumento de 400 euros mensais (valor bruto, sem descontos)”, mas, “não esconde a incompetência deste ministério e deste governo na dificuldade de fixar médicos no SNS”. E, para a FNAM, que sempre intentou negociar “um acordo global, que envolvesse condições de trabalho e valorização salarial”, e que rejeitou a ideia de um acordo intercalar, este “não permite garantir o que vem a seguir, [por isso] é um mau acordo”.

Do lado do MS, este “longo do processo negocial” exigiu “um enorme esforço para ir ao encontro das reivindicações das estruturas sindicais, tendo como princípio uma solução que reforce o SNS e um quadro de responsabilidade orçamental e equilíbrio entre as carreiras da administração pública”.

A FNAM não aceitou o acordo, porque foi para a última reunião com a mesma estratégia do início, que era chegar a um acordo global, pois não interessa apenas a grelha salarial. Queria discutir os pontos fundamentais da proposta conjunta dos dois sindicatos, como a reposição das 35 horas semanais, das 12 horas de urgência e dos cinco dias suplementares de férias para gozar em época baixa, que foram retirados (no tempo da troika) e que são importantes para os médicos e para a organização dos serviços. Ao invés, a tutela “apenas quis discutir a grelha salarial”.

Porém, a FNAM apresentou a sua proposta assente no valor-hora da tabela do regime de dedicação plena, aprovada pelo governo e publicada em Diário da República, a 7 de novembro, até porque “não foram colocados limites à entrada de médicos naquele regime”, pelo que “haveria orçamento para negociar o mesmo valor-hora para todos os médicos”. Assim, começou por um valor hora de 50 euros para todos os médicos, pois o MS tinha admitido que poderia chegar a ele, o que permitia um aumento da ordem dos 30%. Como a tutela não aceitou, houve o recuo para 48 euros, o valor da tabela da dedicação plena e que ainda dava a todos médicos um aumento de 22%, o que a tutela rejeitou, apresentando uma proposta que, para os médicos que aquela estrutura sindical representa, não faz sentido.

A negociação que agora termina começou na primavera de 2022, em conjunto com FNAM e SIM, e passou à negociação em separado, devido às divergências entre as duas estruturas sindicais sobre a forma como a tutela a estava a conduzir. No final, a negociação voltou a juntar as duas estruturas à mesma mesa com proposta conjunta, mas terminou sem consenso total.

O SIM prepara o reinício das negociações, ao passo que a FNAM espera pelos novos interlocutores, mas manterá a “estratégia de acordo global”. Por agora, na semana em curso, o SNS tem mais de 30 serviços de urgência com constrangimentos por falta de médicos.

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É abstruso o mesmo empregador, neste caso o Estado, dispor de trabalhadores da mesma área de atividade em dois regimes laborais diferentes: contrato individual de trabalho e contrato em funções públicas. É anedótico que o trabalhador deva dizer se quer ou não aderir a um aumento salarial. Ora, como “pacta sunt servanda”, o Estado, que prometeu pagar a todos o aumento, deve produzir instrumento legislativo que o leve a cumprir o prometido.

E ainda fica por resolver o problema de outros trabalhadores do Estado, que também são gente.

2023.11.30 – Louro de Carvalho

Nova lei só mantém equiparação do cigarro eletrónico ao convencional

 

A 29 de setembro, foi aprovada, a pós discussão na generalidade, a proposta de lei do governo para restrição do tabaco, pelo que baixou à Comissão de Saúde, para o debate e a aprovação na especialidade. O texto mereceu só os votos favoráveis do Partido Socialista (PS), mas com duas manifestações contra e 14 abstenções socialistas. O Chega, a Iniciativa Liberal (IL) e o Bloco de Esquerda (BE) votaram contra, enquanto o Partido Social Democrata (PSD), o Partido Comunista Português (PCP), o partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN) e o Livre se abstiveram.

A proposta do governo equipara o tabaco tradicional ao aquecido, aperta o cerco à venda em máquinas automáticas e interdita o fumo ao ar livre junto de escolas, faculdades ou hospitais.

Na véspera, perante os jornalistas, na Assembleia da República (AR), o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, assegurou a aprovação na generalidade, apesar de haver liberdade de voto na sua bancada e alguns deputados socialistas se manifestarem contra.

Os partidos acusaram o executivo de tentar condicionar a liberdade dos Portugueses, através da nova lei do tabaco, com a deputada socialista Maria Antónia Almeida Santos a considerar que “não há razão para ir mais longe”. No debate parlamentar, as forças partidárias reconheceram os malefícios do tabaco para a saúde, mas criticaram as alterações propostas.

A AR rejeitou ainda os projetos de lei de PAN e do Chega sobre a alteração à rotulagem nos produtos de tabaco e à “Lei das Beatas”, com a maioria socialista a reprovar as duas iniciativas. Já o projeto de resolução do PAN, que recomenda a adoção de incentivos ao correto descarte e ao reaproveitamento das pontas de produtos de tabaco, foi aprovado com a abstenção do PS.

Da esquerda à direita, no debate parlamentar, foram várias as críticas à nova lei do tabaco, sobre a proposta de lei. Todos os partidos da oposição concordaram que a lei é “proibicionista” e que atenta contra a liberdade dos cidadãos. Também acusaram o governo de não garantir tratamento a quem pretende deixar de fumar. O PSD, a IL e o Chega mostraram-se preocupados com o “aumento do comércio ilícito” do tabaco, enquanto o governo garantia que a proposta “não é proibicionista”, mas “progressista”.

Com menor ou maior atenção ao tom do discurso e às palavras utilizadas, os vários partidos da oposição concordaram que a nova legislação é “proibicionista” e que está em causa uma cuzada ou “perseguição aos fumadores”, típica de um “Estado paternalista”. Também apontaram, de forma praticamente unânime, a ausência de medidas, na proposta de lei, ligadas ao tratamento da dependência de tabaco, salientando o número reduzido de consultas de cessação tabágica e de medicamentos comparticipados pelo Estado para quem pretende deixar de fumar.

“A nova lei tem um espírito proibicionista e vai além do que estava previsto na diretiva europeia”, afirmou Miguel Santos, do PSD, referindo-se à diretiva europeia de 29 de junho de 2022, que equipara o tabaco aquecido a outros produtos do tabaco e que Portugal pretende transpor para o território nacional. “A Europa quer regular, o PS quer proibir”, concordou André Ventura.

Na intervenção da IL, a cargo de Joana Cordeiro, a palavra que ressaltou foi “paternalismo”. “Esta proposta de lei prova que o governo encara os cidadãos portugueses como crianças irresponsáveis, sem capacidade para tomar decisões sem o paternalismo do Estado”. A proposta “não tem a ver com saúde pública”, mas com um “complexo sanitário feito com o paternalismo do Estado”. “Há aqui um proibicionismo excessivo. Todas as pessoas sabem que fumar tem consequências nefastas. Quem, ainda assim, fuma, é porque escolheu fazê-lo. Chama-se liberdade.” Por sua vez, Inês Sousa Real do PAN, pedindo “bom senso e proporcionalidade, sem soluções excessivas e abusivas”, salientou os impactos ambientais do tabaco. 

Também à esquerda, sobressaiu o “caminho proibicionista”, que “pode ter efeitos contrários ao que se pretende”, disse Isabel Pires, deputada do BE, e a “atitude de perseguição, estigmatização e culpabilização dos fumadores”, quando o importante é adotar “medidas robustas e eficazes”, nomeadamente na área da prevenção, defendeu João Dias, deputado do PCP. A deputada Isabel Pires sublinhou que as exigências, previstas na proposta de lei, a que têm de corresponder determinados estabelecimentos, como as prisões, para continuarem a ter espaços onde se pode fumar, “não são razoáveis”.

Por seu turno, Rui Tavares, do Livre, acusou o governo de estar a tentar criar uma sociedade “asséptica e sem dependências”, quando “todos temos o direito de gerir, em consciência, as nossas dependências”. E preconizou que não se menorize e não se infantilize o fumador.

Margarida Tavares, secretária de Estado da Promoção da Saúde, a quem coube apresentar a proposta de lei, com o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, sentado ao seu lado, e responder aos pedidos de esclarecimento dos deputados, garantiu que a proposta “não é proibicionista”, mas sim “progressista”. “O que pretendemos é regular. Ao diminuir os locais onde se pode fumar e os postos de venda e ao equiparar os produtos de tabaco aquecido, mais aliciantes e aditivos, aos restantes produtos de tabaco, estamos a regular, a proteger as pessoas, sobretudo as crianças e jovens, e a tentar evitar que comecem a fumar.”

A oposição voltou a alinhar, quase a uma só voz, noutro tema, a inexistência de medidas na proposta de lei para reforçar o tratamento da dependência do tabaco. As consultas de cessação tabágica são insuficientes para as necessidades, o tempo de espera para consultas pode chegar a um ano e o tratamento é dificultado pela falta de medicamentos comparticipados pelo Estado.

“Não há medidas concretas efetivas de apoio a pessoas que fumam e querem deixar de fumar”, apontou Rui Cristina, do PSD. Isabel Pires, do BE, concordou: “Não há nada, nesta proposta, que garanta efetivamente a comparticipação de medicamentos e a realização de consultas de acordo com as necessidades. Sem isso, a proposta não passa de propaganda. Falha em demasiadas coisas. Não acompanhamos esta proposta de lei.”

Margarida Tavares contrapôs, lembrando que a quebra no número de consultas de cessação tabágica e no de locais de consultas se deveu à pandemia, e garantiu que a “recuperação” já começou. Quanto à comparticipação de medicamentos, é verdade que não existem atualmente no mercado fármacos comparticipados pelo Estado. “O governo está a fazer tudo para garantir a comparticipação, mas a própria indústria pode não estar disponível para negociar os preços”, admitiu, mas anunciou que vão ser realizadas mais campanhas de informação sobre os riscos do tabaco. “Fá-lo-emos, como é óbvio.”

Partidos como o PSD, o Chega e o PAN mostraram-se preocupados com o impacto económico da nova lei. Miguel Santos, do PSD, acusou o governo de ter desvalorizado “a pequena, mas relevante, indústria tabaqueira dos Açores e da Madeira”. André Ventura questionou sobre se o governo pretende indemnizar “as centenas de empresários que gastaram fortunas para garantir que se pudesse fumar nos seus espaços” e que, agora, com as medidas previstas na nova lei, terão de desfazer esse trabalho. A IL e o PAN vincaram que a proposta coloca em causa o investimento exigido aos comerciantes no passado.

Contudo, há um aspeto que apenas parece preocupar os partidos da direita: a possibilidade de a nova lei poder incentivar a venda ilegal de cigarros. Segundo Rui Cristina, do PSD, o fenómeno pode vir a verificar-se, sobretudo, nas regiões autónomas e no interior de Portugal, onde há menos locais de venda de tabaco comparativamente a outras regiões. “Temo que a redução de canais de compra legítimos possa levar ao desenvolvimento do comércio ilícito destes produtos e ao aumento do contrabando.” Joana Cordeiro, da IL, referiu não ter dúvidas de que tal vai acontecer, criando-se um “mercado negro promovido pelo próprio Estado, em que a saúde das pessoas não estará minimamente assegurada”. E André Ventura atirou: “O PS será o maior produtor do contrabando do tabaco na História do país.”

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Já tinha caído, em maio, a proibição de venda de tabaco nas gasolineiras, segundo o ministro da Saúde, por falta de alternativa fora dos grandes centros. E a aprovação na especialidade deixou cair a proibição de venda nos cafés. Contudo, agendada que estava, para 30 de novembro, a aprovação final no plenário da AR, o governo ainda colocava a hipótese de proibir que se fumasse em esplanadas e que os restaurantes vendessem tabaco. Não obstante, propostas como a proibição do consumo de tabaco em todas as esplanadas e da venda em restaurantes e bares foram eliminadas, mantendo-se apenas a equiparação dos cigarros eletrónicos ao tabaco convencional.

A proposta do governo para a nova lei do tabaco apresentava várias alterações à legislação em vigor, mas só as medidas relativas à equiparação dos cigarros eletrónicos ao tabaco convencional foram aprovadas pelos deputados do grupo de trabalho da Comissão de Saúde responsável por discutir a proposta de lei na especialidade. Esta equiparação foi justificada, desde o início, com a necessidade de transpor para o território nacional uma diretiva europeia, processo que devia ter ficado concluído em outubro. “Transcrevemos a diretiva e tudo o que extravasava a diretiva caiu”, explicou a deputada Maria Antónia Almeida Santos, que integra o grupo de trabalho.

Estas medidas relacionadas com a equiparação dos cigarros eletrónicos com o tabaco tradicional foram aprovadas com os votos a favor do PS, do PSD e do PCP. A IL e o BE abstiveram-se e o Chega votou contra. Assim, os cigarros eletrónicos ficam submetidos às regras dos convencionais, no atinente à venda, publicidade, apresentação do produto e consumo. Assim, passa a ser proibida a venda de produtos de tabaco aquecido que contenham aromatizantes nos seus componentes, bem como a de produtos ou acessórios vendidos separadamente que “permitam modificar o odor ou o sabor dos produtos do tabaco em causa ou a intensidade do seu fumo”.

As embalagens de tabaco aquecido vão passar a apresentar advertências de saúde semelhantes às das embalagens de tabaco convencional.

Propostas como a proibição do consumo de tabaco em todas as esplanadas (bem como à porta de cafés e restaurantes) e da venda em restaurantes, bares, festivais de música e outros locais foram eliminadas. Também caiu a proibição de fumar ao ar livre, no perímetro de locais de acesso ao público em geral ou de uso coletivo, tais como hospitais e outros estabelecimentos de saúde, escolas, faculdades e transportes públicos também caiu, assim como a proibição da venda de tabaco em estabelecimentos localizados a menos de 300 metros das escolas e infantários.

A nova lei do tabaco não foi bem recebida pela AR, muito pelo contrário. Da esquerda à direita, foram vários os deputados que criticaram o diploma e, mesmo dentro do PS, o assunto não era consensual. E, na votação da generalidade, 16 deputados do PS não acompanhara a proposta de lei; o Chega, a IL e o BE votaram contra; o PSD, o PCP, o PAN e o Livre abstiveram-se.

Neste contexto de mal-estar, era de antever que o governo enfrentaria obstáculos na aprovação do diploma. Por isso, o grupo de trabalho focou-se nas alterações menos polémicas e, sobretudo, nas mais urgentes. A preocupação foi a de Portugal não ter processo por infração por ainda não ter transposto a diretiva. A aprovação pode evitar a multa. Não houve tempo para mais!

E uma lei audaz, que iria garantir uma geração sem vícios, a partir de 2040, e um trunfo para a saúde pública, cedeu aos interesses instalados (mal) e à liberdade (bem).

2023.11.29 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

O Italiano, ponte de paz e de fé, e o Português, língua cristã

 

A 27 de novembro, no Palazzo Firenze (piazza di Firenze n.º 27), em Roma, decorreu a assinatura do acordo entre a Sociedade Dante Alighieri e a Secretaria de Estado da Santa Sé, para o lançamento de um ciclo de cursos de língua italiana destinados ao pessoal do Vaticano.

São cursos de formação linguística com vista à satisfação das necessidades linguísticas e comunicativas dos estudantes e religiosos, nomeadamente daqueles que, tendo chegado à Itália vindos do estrangeiro, necessitam de estudar ou de aperfeiçoar o Italiano, para o utilizarem, depois, nos seus próprios estudos e misteres.

Embora a língua eclesiástica seja o Latim, o Italiano é a língua veicular da Igreja Católica e da Santa Sé. Religiosas e religiosos, seminaristas, diáconos e sacerdotes de todo o Mundo falam-no todos os dias, na sua ação pastoral, nas dioceses de toda a Itália, estudam-no em profundidade para estudar nas Universidades Pontifícias e utilizam-no nos seus papéis de representação e nas interações formais entre a Santa Sé e o Estado italiano. O mesmo se diga dos jornalistas acreditados no Vaticano e nas diversas instituições italianas.

O estudo da língua italiana é essencial para os religiosos que interagem com os fiéis sobre questões, culturas e atitudes que exigem um alto nível de compreensão. O próprio Santo Padre escolhe, frequentemente, o Italiano para comunicar, mesmo nas suas viagens ao estrangeiro.

O processo de criação dos cursos foi lançado, em cerimónia protocolar, pelo Presidente da Sociedade Dante Alighieri (instituição centenária), Professor Andrea Riccardi, e pelo Substituto para Assuntos Gerais da Secretaria de Estado do Vaticano, o arcebispo Monsenhor Edgar Peña Parra, que assinaram um acordo cujo objetivo é garantir uma formação linguístico-cultural adequada aos alunos de todo o Mundo. A cerimónia de assinatura foi precedida pela conferência de estudos intitulada “L’Italiano della Chiesa” (“O Italiano da Igreja”) e que, além dos relatórios de Andrea Riccardi e Edgar Peña Parra, acolheu o de Rita Librandi, Professora Emérita da Universidade Orientale de Nápoles e estudiosa de temas linguísticos eclesiásticos, bem como a saudação inicial do embaixador italiano junto à Santa Sé, Francesco Di Nitto.

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Sociedade Dante Alighieri é uma instituição fundada em 1889 e que, hoje, conecta 134 mil pessoas em todo o Mundo. A sua rede de formação estende-se por mais de 80 países e é animada por italianos e estrangeiros que amam a Itália e as suas expressões, da língua à cultura, da história à arte, da culinária à moda, de projetos a estilos de vida. A instituição oferece cursos de idiomas para estudantes e professores seguindo o método Dante.global, oferece exames para certificar a competência linguística em Italiano, realiza atividades de formação e de desenvolvimento profissional contínuo para professores e promove milhares de iniciativas culturais. Além de disponibilizar milhares de títulos em Italiano para leitores dos cinco continentes, apoia uma rede de mais de 500 locais por meio da diplomacia cultural e de atividades de digitalização. Como instituto cultural e de língua italiana, a Sociedade Dante Alighieri é membro da EUNIC (European Union National Institutes for Culture) e da ALTE (Association of Language Testers in Europe) e preside a CLIQ (Certificazione Lingua Italiana di Qualità).

O método Dante.Global baseia-se na experiência compartilhada pela grande rede internacional da Sociedade Dante Alighieri e tira partido dos estudos mais recentes sobre a aprendizagem e o sobre ensino do Italiano como língua estrangeira, em percursos de estudo síncronos e assíncronos para o meio ambiente e para a aprendizagem, em sala de aula híbrida e em aulas presenciais.

Inclusivo e intuitivo, o método Dante.global é orientado para o know-how. Feitos à medida do aluno e das suas necessidades, os cursos têm um forte cunho comunicativo: com a orientação de professores especializados, é assegurado o desenvolvimento harmonioso das quatro competências fundamentais: ler, ouvir, falar e escrever. Estudar Italiano pelo método Dante.global também permite desenvolver competências culturais e interculturais e entrar em contacto direto com o Italiano contemporâneo.

As atividades são projetadas especificamente para desenvolver competência pragmática, alternando materiais educacionais e materiais autênticos, como músicas, revistas, filmes, séries de TV e muito mais. A qualquer momento da aula, o aluno poderá praticar o idioma em situações reais de estudo, de trabalho e de lazer, num ambiente interativo e divertido.

As competências linguísticas adquiridas graças a estes cursos permitirão a quem deseja realizar o exame PLIDA (Projeto de Língua Italiana Dante Alighieri) e obter uma certificação válida e reconhecida em todo o Mundo.

A certificação PLIDA destina-se a candidatos de língua materna não italiana. Em caso de dupla nacionalidade, deve ser preenchida uma declaração em que o candidato declara que o Italiano não é a sua língua materna e que não completou o curso secundário em Italiano.

Com o certificado PLIDA pode-se indicar oficialmente o nível de conhecimento do Italiano no curriculum vitae; inscrever-se na universidade italiana sem fazer o exame de italiano (nível B2 ou C1); e obter a autorização de residência de longa duração da Comunidade Europeia (nível A2).

Quem pretende aprender Italiano para estudar, para trabalhar no campo da arte, da moda ou da música, para aprimorar sua profissão ou apenas por amor ao belo país, com a Sociedade Dante Alighieri encontrará o curso certo para alcançar as suas metas.

Os cursos ministrados nas escolas italianas da Sociedade Dante Alighieri diferem em duração, número de horas, frequência semanal e objetivos. Visam dotar os alunos das ferramentas necessárias para a integração eficaz no contexto social, profissional ou académico. Baseiam-se num método integrado que visa construir conhecimentos com os alunos e desenvolver habilidades para o uso correto, eficaz e adequado da língua. A partir de equipamentos selecionados (materiais didáticos enriquecidos com mídia digital e conteúdo multimédia), os alunos exploram e descobrem o idioma com a orientação especializada do professor.

As horas em sala de aula são acompanhadas de atividades culturais de acompanhamento, como passeios educativos, trabalhos de projeto (atividades cooperativas a realizar em grupo, fora da sala de aula, com determinadas “tarefas” negociadas com os alunos), visualização de filmes, leitura orientada do jornal para compreender os principais conteúdos da atualidade italiana, leituras avaliadas e muito mais.

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No seu discurso, dom Peña Parra citou o falecido Franco Frattini que, no L’italiano nella Chiesa fra passato e presente – uma publicação promovida pela Embaixada da Itália junto da Santa Sé – escreveu que, “como italianos, não podemos deixar de reconhecer o papel que a Igreja desempenhou na difusão da nossa língua, que [...] agora assumiu o status de ‘língua franca’ da Igreja”. Isso, afirmou o prelado, é ainda mais verdadeiro hoje, já que, em todas as Nunciaturas, mesmo nas Conferências Episcopais, em numerosos Institutos de Vida Consagrada, nos Movimentos Eclesiais e nas Comunidades mais recentemente fundadas, o Italiano é a língua veicular. De facto, sugere ainda o substituto, “numa Igreja cada vez mais internacional e sinodal, onde já está em andamento um processo que visa uma inclusão mais participativa, o Italiano desempenha um papel essencial: ele é, gostaria de dizer, língua de comunhão”.

Como tantas pessoas de todo o Mundo fala este idioma todos os dias, no seu trabalho pastoral, nas dioceses de toda a Itália, o estudam, em profundidade, nas universidades pontifícias e o utilizam em seus cargos de representação, Peña Parra menciona o que chama de “dois momentos genéticos” do idioma italiano: o Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis e, é claro, o próprio Dante na Divina Comédia. No primeiro exemplo, o texto exalta uma fraternidade universal, na qual a língua se torna um canal de louvor e de esperança. No segundo, o Italiano é invocado pelo autor para expressar e transmitir a “centelha” da glória divina. E, de facto, conclui o prelado venezuelano, a língua italiana, “com o seu rico vocabulário, que vem tanto da poética quanto da vida quotidiana, parece testemunhar, com um sentido inato de naturalidade, a genuína adesão ao verdadeiro, ao bom e ao belo”.

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Este arrazoado a propósito do Italiano como língua da Igreja e língua de comunhão, faz-me lembrar o estatuto do Português – também língua novilatina – como língua de difusão do Cristianismo, apesar de o Latim ser a língua eclesiástica e científica do Ocidente, que Portugueses e Espanhóis levaram até ao Extremo Oriente. Em muitas regiões do Mundo, o Português passou a ser conhecido como língua cristã e falar português era falar cristão. Assim é que, ainda existe a língua cristãPortuguês de MalacaCrioulo de MalacaPapiá Kristáng ou simplesmente Papiá, um crioulo de base portuguesa com estrutura gramatical próxima do Malaio, falado na Malásia e em Singapura pelos descendentes dos descobridores portugueses e por suas famílias miscigenadas. “Papiá” é a pronúncia crioula de “papear”, i.e., falar, conversar, dizer. “Kristáng” é a pronúncia de “cristão”, posto que a maioria dos falantes do citado crioulo seguiam a religião cristã, que foi religião oficial em Portugal e nos seus domínios ultramarinos.

Ao chegarem a Malaca, os Portugueses depararam-se com a cultura Penang, fruto da mestiçagem entre comerciantes chineses e malaias. Paulatinamente, o Português mesclou-se com o Malaio e com palavras de origem chinesa, fusão de que resultou o “Papiá Kristáng”, de base portuguesa com influências fonéticas e morfossintáticas dos substratos chinês e malaio. A comunidade de falantes descende principalmente de casamentos entre navegadores portugueses e mulheres locais malaias, bem como de de migrantes idos de Goa, eles próprios de ascendência indo-portuguesa.

O “kristáng” teve influência substancial no Patuá macaense, o crioulo falado em Macau, dado à migração substancial de Malaca, após a região ser ocupada pelos Holandeses. Mesmo depois de Portugal perder Malaca e quase todo o contacto, em 1641, a comunidade “kristáng” largamente preservou a sua língua. Devido a melhores condições de vida e trabalho em Singapura, centenas de falantes de “Papiá kristáng” fixaram-se no país vizinho e levaram o crioulo consigo; porém, com os casamentos com singapurenses a tendência é para o desaparecimento do “Kristáng” em Singapura. Em Malaca, a comunidade crioulófona falante de “Papiá Kristáng” conta com escola e com uma associação. Foi publicado um dicionário de “Português-Papiá Kristáng”, e o crioulo e a sua comunidade foram tema de artigo da Revista de Cultura do Instituto da Cultura de Macau.

Veja-se o seguinte Poema de Malaca em Papiá Kristáng e em Português:

Keng teng fortuna ficah na Malaka,

Nang kereh partih bai otru tera.

Pra ki tudu jenti teng amizadi,

Kontu partih logo ficah saudadi.

Ó Malaka, tera di San Francisku,

Nten otru tera ki yo kereh.

Ó Malaka undi teng sempri fresku,

Yo kereh ficah atih moreh.

Quem tem fortuna fica em Malaca,

Não quer partir para outra terra.

Por aqui toda a gente tem amizade,

Quando partir logo fica a saudade.

Ó Malaca, terra de São Francisco,

Não há outra terra que eu quero.

Ó Malaca, onde tem sempre ar fresco,

Eu quero ficar até morrer.

Hoje, nenhum estrangeiro estuda Português para conhecer o Cristianismo, mas estuda-se Italiano também para isso, pois a sede da Igreja católica latina é o Vaticano, enclave na capital italiana. Todavia, Portugal devia imitar o exemplo de Itália e promover a aprendizagem da nossa língua, em vez de verter quase tudo para Inglês, nomeadamente em instituições do ensino superior.

2023.11.29 – Louro de Carvalho

O papel da Europa no Mundo e as condições do alargamento da UE

 

De 24 a 26 de novembro, no palácio presidencial de Cascais, decorreu a primeira edição do Conclave Europeu, nova estratégia de encontro anual, lançada pela EuropaNova e, neste ano, sob o alto patrocínio do Presidente da República de Portugal. Evento transpartidário e transdisciplinar, reúne, em nome individual, 50 personalidades influentes da União Europeia (UE).

“Todo o participante trouxe uma visão única, essencial para a construção de uma Europa resiliente e inovador”, disse Guillaume Klossa, presidente executivo da EuropaNova, ex-conselheiro do grupo de reflexão sobre o futuro da Europa presidido por Felipe González, e iniciador do Conclave. O objetivo é identificar os assuntos conexos com o horizonte 2040 que não são fontes de prioridades europeias ou que são ainda insuficientemente considerados. O Conclave constitui, assim, um marco na reflexão estratégica sobre o futuro da Europa, para evitar que não seja replicada a atonia europeia de 2014, na Ucrânia, ou, de 2019, com a covid-19, duas crises em que não estava disponível uma política europeia suficientemente concreta. Por outro lado, o evento é uma ocasião única para reunir alguns dos espíritos mais brilhantes e influentes da Europa para, em conjunto, esboçarem os contornos de um “futuro comum”, contribuindo para “identificar e resolver bem as questões estratégias para uma Europa forte, unida e próspera no horizonte de 2040 nos domínios geopolítico, tecnológico, democrático e dos bens comuns”.

Maria João Rodrigues, membro do comité de organização, negociadora final da Estratégia de Lisboa, do Tratado de Lisboa e do Pilar europeu dos direitos sociais, avançou: “O Tratado de Lisboa e a Estratégia de Lisboa, dois marcos da História europeia recente, foram preparados durante as reuniões na região de Lisboa. Portugal continua a ser um país muito pró-europeu, e a região de Lisboa é uma fonte de inspiração, sempre que são necessárias novas visões para o projeto europeu.”

O Conclave proporcionou aos participantes uma reflexão, em ambiente sereno, com vista a elaborar um conjunto de propostas estratégias concretas e essenciais para o futuro da Europa. Como disse Daniela Schwarzer, “é muito fácil contar a história das crises permanentes na UE”, mas a Europa tem ideias, inovação e disposição assentes em bases económicas e democráticas sólidas. Assim, “devemos prevenir e combater as crises, libertar a energia positiva e construir projetos de futuro para os Europeus”.

No final do ano, os resultados do Conclave serão publicados em relatório detalhado, com vista a contribuir para debates antes das eleições europeias de junho de 2024 e fazer a agenda estratégia da UE. E Guillaume Klossa esclareceu que a missão do Conclave é contribuir para o debate no sentido de a Europa estar em melhor posição para antecipar os grandes desafios que se perfilam, mais do que sofrê-los ou do que reagir, como tem feito nos últimos 20 anos.

Na sessão de arranque, a conferência internacional do Primeiro Conclave reuniu líderes de fora da UE – da América, da Ásia e da África – para partilharem as suas perspetivas sobre a UE e oferecerem uma panorâmica global sobre os países europeus. Com efeito, o Conclave começou por avaliar a posição e o papel da Europa no Mundo, numa abordagem de fora para dentro, tida por necessária para identificar os desafios que os europeus enfrentam. “O diálogo intercontinental é vital. Enriquece a nossa compreensão da dinâmica mundial e deve reforçar a posição da Europa no mérito internacional”, precisou Philippe Etienne, embaixador de França na Alemanha (2013-2017) e dos Estados Unidos da América (EUA) (2019-2023) e antigo conselheiro diplomático do Presidente da República francês.

Philippe Étienne abriu a primeira sessão. “O futuro da UE não pode ser imaginado sem ouvir os nossos aliados e parceiros”, disse.

Maja Piscevic, vice-presidente do East West Institute e membro do Atlantic Council, frisou que o alargamento é investimento geopolítico na segurança europeia e que é preciso demonstrar os benefícios aos cidadãos. Na insegurança geopolítica, a influência da Rússia nos Balcãs poderá diminuir. A UE detém o potencial para a paz na região. As promessas feitas aos Balcãs Ocidentais devem cumprir-se; a vontade de aderir à UE persiste, mas pode não perdurar.

Anthony Gardner, antigo embaixador americano na UE, deixou claro: “Para os EUA, e esta é uma opinião partilhada por ambos os lados do Congresso, a nossa relação girará em torno do seguinte: a UE está connosco para enfrentar os desafios colocados pela China.”

Pedro Miguel da Costa e Silva, embaixador brasileiro na UE, sublinhou: “Aspiramos ter a UE como um parceiro de valores, um colaborador qualificado na construção de consensos.”

Aart de Geus, antigo ministro dos Assuntos Sociais dos Países Baixos e secretário adjunto da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), apresentou a segunda sessão. “O sentimento em alguns países europeus pode não favorecer a migração, mas é um desafio que deve ser gerido de forma justa”, insistiu.

Trisha Shetty, presidente do Comité Diretor do Fórum da Paz de Paris, disse que a Europa é a maior democracia do Mundo e que democracia é reconhecer a autonomia e a soberania de todos. Por isso, a UE deve ver os Indianos não só como clientes, mas como cidadãos detentores de direitos. “As trocas com a Índia devem prosseguir, mas num quadro de fair play democrático.”

Rukia Bakari, Oficial Sénior de Programa do Instituto Gorée, recordou que a UE é tida como antiquada e paternalista. É hora de mudar de abordagem e de atitude, rumo à igualdade.”

Na sessão de encerramento por empresas, Jean-François van Boxmeer, presidente do Conselho de Administração da Vodafone e presidente da Mesa Redonda Europeia dos Industriais (ERT), referiu, no âmbito da dinâmica industrial, que, em 2000, a China representava 5% da produção industrial mundial, enquanto os EUA e a UE se mantinham estáveis ​​em torno de 20% e 21%, respetivamente. Em 2023, assistimos a uma transformação profunda: a quota da Europa diminuiu para 14,5%, a dos EUA para 16,5%, enquanto a China avançou.

Em termos de lacunas críticas, apontou que não há um mercado único para energia ou capital, quando “a dinâmica em evolução exige uma resposta estratégica e colaborativa”.

Quanto à ação, disse que a Europa, conhecida pela sua sociedade de bem-estar, precisa de base industrial sólida para financiar as suas aspirações, pelo que urgem esforços concertados para revitalizar e reforçar as nossas capacidades industriais”.

Olhando para 2040, vozes de diversas perspetivas ofereceram insights sobre o cenário em evolução que moldará o futuro da UE. 

Para Nadia Crisan, diretora executiva do Instituto Liechtenstein da Universidade de Princeton, os acontecimentos que se desenrolarão nos EUA em 2024 influenciarão os próximos quatro anos e deixarão duradoura marca no cenário global. “O poder dos nossos valores partilhados torna-se o nosso farol em tempos de mudança”, acentuou.

Jan Krzysztof Bielecki, economista, antigo primeiro-ministro da Polónia, alertou: “Os riscos na Ucrânia são elevados. Se a Europa não conseguir prevalecer, as ambições da Rússia poderão alargar-se ainda mais, representando uma ameaça aos próprios valores que prezamos. O resultado na Ucrânia é fundamental para a preservação dos nossos princípios partilhados.”

Stjepan Oreskovic, coproprietário do Grupo M+, preconizou: “Devemos envolver-nos uns com os outros, promovendo o diálogo não apenas sobre questões atuais, mas também sobre tecnologias emergentes que moldarão o nosso futuro coletivo.”

Oliver Röpke, presidente do Comité Económico e Social Europeu, perguntou: “Ainda partilhamos o mesmo conceito de democracia na UE? A inclusão é fundamental; não podemos comprometer os direitos fundamentais. Vamos participar em debates sobre a construção de uma união social e encontrar um terreno comum para garantir uma base democrática resiliente e inclusiva.”

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Os Balcãs têm o processo de adesão à UE atrasado, porque não fizeram o trabalho de casa e a UE tem sido negligente ou indecisa. A sérvia Maja Piscevic, membro sénior do grupo de reflexão Atlantic Council, defende que, com a invasão russa da Ucrânia, o alargamento passou a ser “um imperativo para a UE, porque a segurança se tornou um novo paradigma”. Em entrevista ao Expresso, por ocasião do arranque do primeiro Conclave da organização EuropaNova, apontou como o maior entrave à adesão do seu país de origem ao bloco comunitário “a falta de vontade política para aplicar o Estado de Direito e a democracia”. Belgrado tem dado sinais contraditórios a Bruxelas, quando continua em cima da mesa a adesão da Sérvia à UE.

Os movimentos de afastamento e de reaproximação da Rússia não ajudam a Sérvia, “nem ajudam a UE a considerá-la um membro credível”. Neste caso, “há muito trabalho a fazer, o que inclui, ou deveria incluir, a resolução da questão com o Kosovo”, destaca Piscevic.

Nos Balcãs Ocidentais, estão na fase de negociação quatro países – Macedónia do Norte, Montenegro, Sérvia e Albânia –, enquanto a Bósnia-Herzegovina é candidata desde 2022 e o potencial candidato Kosovo não é reconhecido por cinco Estados-membros da UE (incluindo Espanha), nem pela Sérvia.

Se a Sérvia aderisse à UE em 2030, quando é suposto a UE estar pronta para o alargamento, isso significaria começar ontem com as reformas, com os cortes drásticos que têm de ocorrer e com as medidas contra a corrupção e o crime organizado, além de questões bilaterais que têm de ser resolvidas. Mas a Sérvia não tem estado alinhada com a política externa da UE. Há, pois, muito trabalho a fazer pelos países dos Balcãs Ocidentais, se quiserem aderir até 2030.

Belgrado ainda não decidiu se pode acreditar na UE e no seu compromisso com o alargamento, na sua promessa de se preparar para ele. Ora, estas coisas já deviam ter sido feitas há muito tempo – se não a 25 de fevereiro (após a invasão russa da Ucrânia), então logo a seguir.

Segundo Volodymyr Zelensky, a Rússia tudo fará para “garantir que um país dos Balcãs lute contra outro”. Porém, Maja Piscevic não hipervaloriza esse aviso, pois a discussão vem da há muito. É do interesse da Rússia manter este tipo de situações. Por isso, a adesão deve ser resolvida, não só devido à influência russa, mas também a uma séria crise de segurança na Europa. Os Balcãs fazem parte da Europa, não da UE, mas fazem parte da Europa.

O exemplo da Croácia, membro da UE há 10 anos, não colhe, pois já passaram 20 desde a Cimeira de Salónica (que definiu a política de alargamento), com promessas não cumpridas. A culpa é dos dois lados: dos Balcãs e, em concreto, da Sérvia, que não fizeram o trabalho de casa, mas a UE tem sido negligente ou indecisa. A Sérvia e outros países da região enfrentam problemas graves, sobretudo nos domínios do Estado de Direito e dos princípios da democracia, que são as fundações da UE. No entanto, quando lemos o relatório anual, a linguagem mais forte fica-se pela referência a progressos limitados, eufemismo da situação no terreno, que não ajuda.

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A UE sabe que há problemas e tensões nos Balcãs, incluindo o problema do Kosovo, cuja independência não é aceite por todos. Bem pode a presidente da Comissão Europeia pregar a bondade da adesão da Ucrânia ou dos Balcãs à UE, que a adesão não acontecerá enquanto a guerra não chegar ao fim. O contrário é que seria de estranhar. Também os Balcãs não serão integrados na UE, enquanto não resolverem os problemas de vizinhanças e não forem todos considerados Estados soberanos. Assim, a UE faz o jogo do “empata”. Quanto à democracia e aos direitos humanos, espera-se que as coisas evoluam pela positiva. Mas isso é um risco. Há vários países da UE em que a democracia regrediu e outros em que a UE impôs a troca da democracia pelos fundos europeus (a Grécia, por exemplo). Triste sina, a de uma Europa que se diz fundada na democracia!

2023.11.28 – Louro de Carvalho

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Kiev fala em longo plano russo para apelar à urgência no Ocidente

 

Em tom grave, mas vago, Volodymyr Zelensky avisou que os Balcãs serão a próxima “distração” num “longo plano” da Rússia. Face aos ataques do Hamas e à guerra subsequente, o presidente ucraniano vem-se esforçando por manter o país entre as prioridades da agenda mediática e das lideranças mundiais. Porém, a fadiga da guerra, as mudanças pós-eleitorais nalguns países e a guerra entre Israel e o Hamas atenuaram o apoio a Kiev.

É neste contexto que Zelensky assegura que “a Rússia investirá para que um país dos Balcãs lute contra outro”. E Vuk Vuksanovic, investigador sénior do Centro para a Política de Segurança de Belgrado, reforçando a importância do contexto, diz que a Ucrânia, como está a passar um difícil momento no campo de batalha e porque a atenção do Ocidente se desvia para o conflito em Gaza, tenta criar algum sentido de urgência. Porém, o investigador sustenta que é remota a possibilidade de algo semelhante ao conflito em Gaza nos Balcãs. Com efeito, para Moscovo causar problemas ali, precisará do apoio das elites locais, que “não são representantes obedientes do Kremlin”, embora usem a Rússia como alavanca junto do Ocidente e para se promoverem domesticamente, mas sem correrem riscos em nome de Moscovo.

O sociólogo sérvio Ivan Zivkov, socorrendo-se da memória histórica, interpreta as declarações de Zelensky. Nos Balcãs, onde há sempre tensões, facilmente se desencadeiam guerras entre as suas pequenas nações. E a região é usada, ocasionalmente, pelas grandes potências ao serviço dos próprios interesses. A desintegração da Jugoslávia não terminou com a formação de Estados estáveis. Por exemplo, as tensões e fortes divisões internas perduram na Bósnia-Herzegovina, na Macedónia do Norte, na Sérvia e no Montenegro.

As palavras de Zelensky, na opinião do sociólogo, visam alertar que a Rússia pode servir-se desta situação nos Balcãs para provocar novos conflitos em solo europeu, pelo que a Europa Ocidental deve dar passos mais decisivos para integrar todos os países da ex-Jugoslávia na União Europeia (UE). Nos Balcãs Ocidentais, estão na fase das negociações quatro países (Macedónia do Norte, Montenegro, Sérvia e Albânia), enquanto a Bósnia é candidata desde 2022 e o potencial candidato Kosovo não é reconhecido por cinco Estados-membros, incluindo Espanha, nem pela Sérvia.

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A 22 de novembro, Vladimir Putin afirmou a necessidade de pensar em como travar “a tragédia” da “guerra” na Ucrânia. Usou a palavra “guerra” para descrever o conflito, em vez da expressão adotada desde o início: “operação militar especial”. São declarações mais apaziguadoras do que o registo habitual do presidente russo, mas Pavel K. Baev, analista de Ciência Política do Instituto para a Paz de Oslo, teme que pouco ou nada tenha mudado.

Foi a primeira vez, desde o início da guerra, em fevereiro de 2022, que Putin se dirigiu ao G20, grupo em que se insere o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, com quem Moscovo mantém relações amigáveis. Altos representantes de diferentes países disseram-se chocados com a agressão na Ucrânia. “Sim, claro, as ações militares são sempre uma tragédia”, admitiu Vladimir Putin. “E, claro, deveríamos pensar em como parar esta tragédia. A propósito, a Rússia nunca recusou negociações de paz com a Ucrânia.”

Reconhece que esta guerra e a morte de pessoas “não podem deixar de ser chocantes”, mas continua a apontar que autoridades ucranianas perseguiram pessoas no Leste da Ucrânia e a vincar a duplicidade de critérios dos Estados Unidos da América (EUA) e dos seus aliados. Por outro lado, questionou: “E o extermínio da população civil na Palestina, na Faixa de Gaza, agora, não é chocante?” No entanto, manifestou-se disposto a sentar-se e a negociar com Zelensky, desde que seja aceite a anexação de mais quatro regiões ucranianas, uma linha vermelha intransponível para Kiev. Aliás, acusa o presidente ucraniano de travar o processo de paz, vincando que ele proibiu, por decreto, as conversações com a Rússia, que poriam fim aos combates.

“O discurso de Putin ao G20 é um exercício da sua habitual hipocrisia”, salienta Pavel K. Baev. O que o chefe de Estado russo quis fazer não foi “pressionar por negociações”, mas “fingir prontidão”, para poder “definir a determinação ucraniana de lutar pelo direito de construir um Estado independente e de viver nele em paz como uma teimosia irracional”. Continua a “postura agressiva” e nada mudou nos intentos. Apenas as suas palavras criam uma realidade alternativa. Aliás, este não é o melhor momento para a Rússia avançar para as conversações. Com um impasse na guerra e as atenções internacionais e o apoio público à Ucrânia a esvaírem-se, para se concentrarem no conflito no Médio Oriente, Moscovo não sente o apelo de retomar as negociações. O melhor, para Putin, seria aguardar as presidenciais nos EUA, que poderão redefinir os contornos da geopolítica.

E, quanto à oposição de Zelensky à ideia de negociar um acordo, Pavel K. Baev admite que Zelensky está empenhado em restaurar a integridade territorial da Ucrânia, objetivo que pode ser atingido por conversações de paz, e não necessariamente por meios militares. O problema é a impossibilidade de negociar com Putin. Contudo, o investigador salvaguarda: “Na manhã seguinte à sua partida abrupta – que pode acontecer surpreendentemente em breve –, serão, sem dúvida, abertas conversações, em vários formatos e por vários canais.”

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Zelensky fez diminuir o apoio a Kiev com declarações sobre Israel e pode chegar a hora da negociação. Por isso, Gerard Toal, de origem irlandesa, autor de “Bósnia Refeita: Limpeza Étnica e Sua Reversão” e de “Perto do mundo exterior: Putin, o Ocidente e a Disputa sobre a Ucrânia e o Cáucaso”, reflete sobre os processos que possam levar à paz no território ucraniano, aduzindo que a guerra na Ucrânia criou “uma fissura que inibe a ação coletiva contra as alterações climáticas, que é a crise existencial mais importante que a Humanidade enfrenta”.

Além dessa crise regional, o Mundo confronta-se com a guerra no Médio Oriente. Por isso, pode ser recomendável ponderar se a causa ucraniana, que é justa, começa a ser “ruinosa”.

Em 2005, Gerard Toal testemunhou, perante o Congresso dos EUA, sobre os desenvolvimentos políticos da Bósnia-Herzegovina, após haver realizado trabalho de campo no país recém-formado, investigação que alargou à Geórgia, à Arménia, à Moldova e à Ucrânia. Para Toal, é preciso distinguir territórios: os anexados em 2014, pela Rússia, e que desenvolveram um sentimento pró-russo, e aqueles em que a “limpeza étnica” subjugou os ucranianos à força. Em entrevista ao Expresso, Gerard Toal, o professor de Assuntos Internacionais no Instituto Politécnico e Universidade de Virgínia, analisa o ponto em que está a guerra na Ucrânia e sustenta que, às vezes, um comportamento justo e uma causa justa podem ser “ruinosos”.

Entende que dificilmente acontecerá a invasão dos Estados Bálticos pela Rússia, pois envolveria, de imediato, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e causaria grande impasse nuclear. Na verdade, nos mapas que Lukashenko mostrou na televisão bielorrussa, vê-se que os planos iniciais para a invasão envolviam seguir pelo sul da Ucrânia e entrar na Transnístria, atingindo a Moldávia, diferente dos Estados Bálticos.

No atinente à Geórgia, a possibilidade era mais remota. No entanto, em março de 2022, grande parte da população georgiana temia que a Geórgia fosse invadida.

O impasse na guerra começa a desmoralizar as autoridades ucranianas, como indicou o Estado-Maior, em termos militares. Porém, como o termo “impasse” tem conotação política, Zelensky resiste ao seu uso. E o impasse não significa estaticismo. Os ucranianos querem a paz, querem que a guerra acabe, mas não sob quaisquer condições. E há os que veem a causa como justa, mas ruinosa, e os que veem a causa como justa e necessária – uma divisão compreensível num país em tempo de guerra.

Face à questão “se um acordo de paz ocorresse agora, haveria grande perda de território, em relação a 2014”, Toal considera: É preciso distinguir entre a Crimeia, anexada em 2014, e o Donbass e as Repúblicas Populares, onde há um sentimento pró-Rússia.

Para muitas pessoas, a Crimeia, embora ilegalmente invadida, está perdida. Porém, os novos territórios invadidos são uma questão diferente. Os territórios invadidos em 2022 eram hostis à invasão. O que a Rússia fez foi uma limpeza étnica nesses territórios, aterrorizando todos os que não se queriam subjugar aos comandos dos militares russos. Muitas pessoas ficaram deslocadas, mas há uma população que sobrou. Entre esta população, havia pessoas pró-Rússia convictas de que, absorvidas por Moscovo, teriam prosperidade, pois a economia da Rússia era, pelo menos, três vezes mais forte do que a Ucrânia; e havia quem não pudesse deslocar-se, ou porque estaria a cuidar dos pais idosos, com deficiência, ou porque tinha um sentimento de obrigação para com a sua comunidade.

Os territórios ocupados não são o que eram: foram destruídos. Quando a Ucrânia os recuperar, terá um trabalho moroso e muito difícil: lidar com as pessoas que colaboraram com a ocupação.

É compreensível a fadiga com a Ucrânia, pois a guerra dura há muito tempo e há uma crise mundial a que se juntam crises localizadas, bem como o sentimento de pressão sobre os mercados de arrendamento, sobre as escolas e serviços e uma perturbação intensificada pelo facto de vários Estados europeus terem tido de acolher refugiados ucranianos.

A decisão de Zelensky, que é judeu, de apoiar a firme posição pró-israelita dos EUA no conflito de Gaza, também feriu as bases de apoio com que a Ucrânia contava. É contraditório condenar uma ocupação e apoiar ou tolerar outra. E Rússia pode alegar que os EUA têm padrões duplos. E este é um argumento de longa data usado pelo Estado russo. Na verdade, Poal faz referência a um livro sobre os padrões duplos de que a Rússia fala, e os EUA demonstram-no muitas vezes. É um presente que prejudica a Ucrânia: deveriam ter tido cautela para não o entregar.

Quanto a Zelensky, Gerard Toal diz que “tem sido magnífico como líder da Ucrânia, galvanizando e inspirando”, mas “também é messiânico” e “obcecado por rivais”, o que pode impedir a forma de “melhor servir o povo”. Pode acontecer-lhe com a Churchill: ser um excelente líder de guerra, mas sofrer uma derrota eleitoral em momento posterior.

O índice de aprovação de Zelensky antes da guerra era muito baixo, o que foi mal interpretado pelo Estado russo, que pensava que isso refletia a atitude das pessoas em relação ao seu Estado. Os Russos confundiram a fraca aprovação da personalidade com sentimento antiUcrânia. Estar infeliz com o governo não significa que se odeie o país.

Pode suceder-lhe um líder que venha a subjugar-se mais perante Moscovo. Os Ucranianos e a liderança ucraniana decidirão isso. Tudo o que o Ocidente pode fazer é apoiar a Ucrânia, para que recupere, quanto possível, os territórios perdidos.  

Sobre os planos da UE de iniciar negociações de adesão de Kiev alterarem a fadiga em relação à Ucrânia, o analista aponta a enorme dimensão da Ucrânia, pelo que o alargamento terá de ser diferente de qualquer outro. Tem de haver uma transformação institucional massiva, para que isto ocorra. Isso, por si só, pode agudizar a fadiga em relação à Ucrânia. Houve um referendo nos Países Baixos sobre associação da Ucrânia, e os resultados não foram animadores.

A guerra ucraniana não é a única coisa a acontecer no Mundo. Já não está nas manchetes dos jornais. Todavia, por quantos mais dias esta guerra continuar, maiores serão os custos para os Ucranianos, para os Russos e para o planeta. Está a criar-se “uma fissura que inibe a ação coletiva contra as alterações climáticas, que é a crise existencial mais importante que a Humanidade enfrenta”.

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Efetivamente, tenho dito e escrito que as guerras são o maior óbice ao combate contra as alterações climáticas, à minimização do recurso aos produtos de origem fóssil e à luta contra os diversos tipos de poluição. Mas desistir é morrer na praia. E isso não acontecerá.

2023.11.27 – Louro de Carvalho