quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Santos “são os que deixam a Luz passar”

 

A 1 de novembro, celebramos a Solenidade de Todos os Santos. Não se festeja somente a memória daqueles e daquelas que têm oficialmente a honra dos altares pela canonização ou mesmo pela beatificação – que pululam no calendário litúrgico e no martirológio –, mas veneram-se também solenemente todos aqueles e todas aquelas, que, em vida discreta e até sob anonimato, viveram em conformidade com o Evangelho das Bem-aventuranças, que a liturgia da solenidade faz proclamar, explicar e meditar ou, na falta de melhor, seguiram, com sinceridade, os ditames da consciência retamente formada, desejando reparar os erros e acertar na rota do bem.   

Na verdade, a Igreja sente-se vocacionada à santidade. E, nessa vocação, incluem-se todos os batizados e quem vive com retidão de vida, conforme a sua consciência. Em suma, santos de raiz são todos os cristãos; e, se frustram a marca da santidade que os assinala, resta-lhes corrigir a rota, em obediência ao divino timoneiro, Jesus Cristo, o Santo por antonomásia.         

Há uma definição de Santos colhida de um episódio anedótico. Durante uma visita a uma igreja de Turim, um aluno pediu à professora explicação sobre alguns luminosos e belos vitrais do templo. E ela respondeu: “Representam os Santos, homens e mulheres, que viveram, de forma especial e forte, a amizade com Jesus”. Poucos dias depois, em Dia de Todos os Santos, um sacerdote perguntou àquele mesmo grupo de alunos: “Alguém sabe explicar quem foram e o que fizeram os que a Igreja venera como Santos?” O menino que havia pedido explicações à professora sobre os vitrais, levantou a mão e, com voz firme e confiante, respondeu: “São os que deixam a Luz passar!”. Na verdade, os discípulos de Jesus (os batizados) são a luz do Mundo, por isso iluminam e a luz passa; e, como, necessariamente são apóstolos e missionários, fazem passar a luz. Funcionam como vitrais. É bom que não se tornem opacos pelo erro, pelo pecado, pelo fingimento, pela hipocrisia, pela mentira da vida.  

No início, as testemunhas oficiais da fé eram os santos mártires, a que foram logo assimilados os apóstolos. Porém, nos fins do século II, era já grande a veneração dos demais Santos. Com efeito, depois das grandes perseguições do Império Romano, começaram a tornar-se, paulatinamente, exemplos de veneração homens e mulheres que viveram a vida cristã, de modo belo e heroico. O primeiro santo, não mártir, foi São Martinho de Tours.

Em fins do ano mil, face à incontrolada veneração dos santos e ao comércio em torno das suas relíquias (os dentes de São Januário utilizados para conforto das parturientes: mandados recolher, juntou-se um alqueire de dentes), iniciou-se o processo de canonização até se chegar à comprovação dos milagres. Cada santo ou santa tem a sua memória litúrgica, tendo as de alguns (São José, São Pedro e São Paulo) a categoria de solenidade e a de outros, de festa.

A Solenidade de Todos os Santos começou no Oriente, no século IV. Depois, difundiu-se em datas diferentes. Em Roma, a 13 de maio; na Inglaterra e Irlanda, a partir do século VIII, a 1 de novembro, data que também foi adotada em Roma, a partir do século IX.

Esta Solenidade é celebrada quase no fim do Ano litúrgico, quando a Igreja mantém o seu olhar fixo no término da vida terrena, pensando nos que atravessaram as portas do Céu.

Para a santidade, exige-se que se viva no Mundo, mas sem ser do Mundo; que se ame o Mundo, mas que se renuncie ao mundanismo. E o mundanismo tenta invadir os diversos setores da Igreja. Olhamos para o Alto, mas, a cada passo, a tentação nos puxa para a chinela.  

O código neotestamentário das bem-aventuranças (ver Mt 5,1-12a) foi proclamado para todos, mas focado nos discípulos: “Vendo as multidões, Jesus subiu ao monte. Sentou-se e os discípulos aproximaram-se dele. Então, abriu a boca e ensinava-lhes, dizendo:”

Os parâmetros deste código são diferentes dos do Mundo: não a riqueza, que nos daria o domínio dos povos ou da economia, mas a pobreza voluntária e do íntimo, que nos dá o Reino dos Céus; não o folguedo ou a diversão até à saciedade, que nos daria o prazer terreno, mas as lágrimas pela salvação e pelo bem-estar de todos, que nos darão o consolo divino, a verdadeira alegria, a alegria missionária, a alegria de quem ama; não a soberba e a violência, que destroem, mas a mansidão e a humildade, que nos darão a posse da terra (nada temos, mas tudo possuímos); não a avareza do pão ou do dinheiro, que nos fariam temidos e prestigiados, mas a fome e sede de justiça, que nos saciará, porque nos torna solidários com os que sofrem e com os pobres, fazendo-nos lutar por um mundo mais justo, igual, humano e fraterno.

No centro do código, temos não a justiça sob vingança ou punição, mas sob a modalidade da misericórdia. Assim, em vez do prazer por termos castigado quem nos ofende ou caiu em erro grave, oferecemos o nosso perdão e o perdão de Deus, a nossa misericórdia e a misericórdia de Deus. Por isso, Deus nos perdoará e terá compaixão de nós. E a justiça que for necessário aplicar será mais humana e respeitadora da dignidade da pessoa humana.           

Se aceitamos ser testemunhas do rosto misericordioso do Pai, olharemos o Mundo com os olhos de Deus: não olhamos as pessoas com malícia, mas com simplicidade, não como objeto de pecado, mas como compartícipes na caminhada para Deus. E olharemos a Natureza não como algo a esventrar ou a malbaratar, mas com o fim para que Deus a criou, pondo-a ao nosso serviço justo e proporcionado. Dominar a terra, não é dar cabo dela.  

Somos filhos de Deus, pelo que somos irmãos. E os irmãos fazem a paz, não a guerra. Diz o anedotário que a guerra começou quando as zebras de riscas brancas se zangaram com as de riscas pretas. Ora, todas as zebras são riscadas de branco e de preto. Também os que fazem a guerra são seres humanos e põem outros seres humanos a matar e a morrer.  

Os pobres em espírito aceitam a perseguição por amor do Evangelho e da justiça, mesmo sem terem praticado o mal, e perdoam a quem os ofende e os maltrata. Por conseguinte, terão o Reino dos Céus como herança.      

Por fim, a bem-aventurança é para os que são caluniados, perseguidos, infamados e difamados por causa de Jesus. Que se alegrem e exultem, pois será grande a sua recompensa nos céus.

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Os Santos e as Santas – amigos de Deus – a quem a Igreja nos convida, hoje, a dirigir o olhar, são homens e mulheres, que se deixaram atrair pela proposta divina, aceitando percorrer o caminho das Bem-aventuranças; não, por serem melhores ou mais intrépidos do que nós, mas por saberem que todos somos filhos de Deus e assim viveram; sentiram-se pecadores perdoados. Eis os verdadeiros Santos e as verdadeiras Santas! Aprenderam a conhecer-se e a canalizar as suas forças para Deus, para si e para os outros, sabendo, nas fragilidades, confiar sempre na Misericórdia de Deus. Os Santos animam-nos a apontar para o Alto, a olhar para longe, para a meta e o prémio que nos aguardam; exortam-nos a não nos resignarmos ante a dificuldade, pois a vida não só tem fim, mas tem, sobretudo, uma finalidade: a comunhão eterna com Deus. Com esta Solenidade, a Igreja propõe-nos os Santos, amigos de Deus e exemplos de vida feliz, que nos acompanham e intercedem por nós e nos incitam a viver com maior intensidade esta última etapa do Ano litúrgico, sinal e símbolo do caminho da nossa vida.

Trata-se de percorrer o caminho, ou melhor, as nove condições traçadas por Jesus e indicadas no Evangelho: as Bem-aventuranças. O ponto forte não é tanto ser bem-aventurado, mas o “porquê”. Por exemplo, a pessoa não é bem-aventurada por ser pobre, mas por ter, como pobre, a condição privilegiada de entrar no Reino dos Céus. A explicação de tudo encontra-se no “porquê”, pois revela onde os mansos encontrarão confiança, onde os pacíficos encontrarão alegria. Logo, a bem-aventurança, não se deve entender como simples emoção, se bem que importante, mas como o auspício para se reerguer, não desanimar, não desistir e seguir em frente, pois Deus está convosco.

Portanto, a questão consiste em ver Deus, estar do seu lado e ser objeto das suas atenções; contemplar Deus, não só no paraíso, mas já aqui e agora.

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As perseguições tinham feito cruéis destruições nas comunidades cristãs, ainda jovens. Iriam desaparecer as comunidades acabadas de fundar? As visões do profeta cristão são a mensagem de esperança na provação, em linguagem codificada, que evoca a Roma perseguidora, sem a nomear, mas aplicando-lhe o qualificativo de Babilónia. A revelação hoje proclamada (ver Ap 7,2-4.9-14) é a vitória do Cordeiro, o Cordeiro que foi imolado. É o Cordeiro da Páscoa definitiva, o Ressuscitado, o que transformou o caminho de morte em caminho de vida para a multidão: todos os que o seguem, em particular pelo martírio “branquearam as suas túnicas no sangue do Cordeiro”. São numerosos e participam doravante no seu triunfo, em festa eterna.

Assim, em resposta à 1.ª leitura, cantamos: “Esta é a geração dos que buscam a face do Senhor” – não porque somos melhores do que os outros, mas porque Deus assim o quis.

Já a 2.ª leitura (1Jo 3,1-2) enfatiza a maravilha e a alegria de sermos filhos de Deus porque Ele nos ama com amor eterno. Ainda não o percebemos totalmente, mas já o vamos entendendo.

Com as bem-aventuranças, Jesus faz-nos o convite a seguir o Evangelho e os seus critérios. É óbvio, o Mundo vai em direção oposta e convida à felicidade de vida opulenta e economicamente tranquila, diferente da dos pobres em espírito; à vida de diversão, em todos os sentidos, a todo custo e com todos os meios, diferente da dos que choram; a ter sempre razão e a prevalecer sobre os outros, mas não a ser mansos; a satisfazermo-nos com tudo, sem objeção, mas não com a paz e a justiça; a pensarmos só em nós, mas não em sermos misericordiosos; a irmos para onde nosso coração nos levar, satisfazendo as nossas paixões, mas não a sermos puros de coração; a defendermos nossos muros, mas não a sermos pacificadores; e a prevalecer e a perseguir os outros, ao invés de nos deixarmos insultar.

As bem-aventuranças podem parecer absurdas, mas são apenas algumas condições para uma vida melhor, feliz e bem-sucedida ou uma vida santa. Não se trata só de palavras ou ideias, pois, se observarmos bem, as bem-aventuranças são um retrato do próprio Jesus: pobre, manso, dócil, misericordioso, animado pelo desejo de se ocupar das coisas do Pai (cf Lc 2,49).

O ponto forte não é tanto ser bem-aventurado, mas o “porquê”: a felicidade ou a bem-aventurança depende do sentido que dermos à vida, da direção que tomarmos, da nossa razão de viver, mas também do valor que dermos ao sentido de perder a vida: “Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas do meu Pai?” “…porque delas depende é o Reino dos Céus”.

Portanto, a bem-aventurança não depende das condições externas, como o bem-estar, o prazer, o sucesso, etc., que são experiências frágeis e efémeras (cf Mt 7,24-28: “a casa construída na areia ou na rocha”), mas depende da felicidade prometida por Deus a quem adota certo comportamento em seu coração e o manifesta na vida de cada dia. Assim, esta solenidade confirma que uma vida beata (beatitude, não de beatice de sacristia ou de rotina), bela, bem-sucedida e santa – possível, hoje como ontem, para nós e para todos. Podemos tornar-nos os “santos da porta ao lado”, a que Francisco se refere: homens e mulheres reconciliados connosco, com os outros e com Deus, capazes de fazer brilhar a luz do amor misericordioso de Deus no quotidiano, na família, no trabalho, no tempo livre, sabendo viver “Jesus” e confiando nas suas “Bem-aventuranças”.

Somos santos ao recebermos o Batismo, mas muitos não sabem. Muitas vezes, nem nos damos conta da santidade que o Batismo nos proporciona. Porém, ela existe, porque Jesus o quer.

2023.11.01 – Louro de Carvalho

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