segunda-feira, 6 de novembro de 2023

O compromisso com Deus exige seriedade, verdade e coerência

 

A liturgia do 31.º domingo do Tempo Comum no Ano A interpela-nos quanto à solidez do nosso compromisso com Deus e com o seu Reino, que postula seriedade, verdade e coerência. São interpelados, em especial, os animadores das comunidades cristãs acerca da verdade do seu testemunho, da retidão e da pureza dos motivos, do efetivo empenho na construção de comunidades comprometidas com os valores do Evangelho, na atenção aos sinais dos tempos.

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No Evangelho (Mt 23,1-12), Jesus fala à multidão e aos discípulos sobre a postura dos fariseus e dos escribas, cuja pretensão à posse exclusiva da verdade critica violentamente, denunciando-lhes a incoerência, o exibicionismo e a insensibilidade ao amor e à misericórdia. Mais do que informação histórica, o texto evangélico é interpelação aos crentes no sentido de as suas atitudes de hoje serem semelhantes, pois, introduzindo-se tais atitudes na família cristã, destroem a fraternidade, fundamento da comunidade.

A passagem proclamada nesta dominga introduz um extenso discurso de condenação, que Jesus pronuncia contra os líderes religiosos de Israel. Nesse discurso, surgem as sete famosas invetivas “ai de vós, escribas e fariseus…”. É a resposta de Jesus à intransigência dos Judeus em acolher o desígnio de Deus. Mateus põe na boca de Jesus uma apreciação extremamente negativa dos fariseus e dos escribas (especialistas da Escritura, muitos dos quais eram fariseus).

Este retrato dos fariseus não é totalmente justo, pois, regra geral, eram crentes entusiastas, que procuravam conhecer e se esforçavam por cumprir escrupulosamente a Lei de Moisés. Presentes em todos os passos da vida religiosa dos Israelitas, procuravam instilar no Povo o respeito pela Lei, a fim de que Israel fosse, cada vez mais, o Povo santo. Era um grupo sério, bem-intencionado e empenhado na santificação da comunidade israelita. Contudo, o seu fundamentalismo em relação à Lei foi criticado por Jesus, visto que, afirmando a superioridade da Lei, desprezavam o homem e criavam no Povo o sentimento de pecado e de indignidade que lhe oprimia as consciências; esqueciam o essencial – o amor e a misericórdia. E, ao terem-se a si próprios como os “puros” que viviam de acordo com a Lei, desprezavam o “‘am aretz” (povo do país) que, pela ignorância e pela dura vida que levava, não podia cumprir integralmente os preceitos da Lei.

A opinião de Jesus sobre os fariseus não terá sido tão dura como a que se refere aqui. Com efeito, há textos em que a relação de Jesus com os fariseus é simpática. No entanto, é de recordar que o Evangelho de Mateus apareceu na parte final do século I, quando os fariseus eram a corrente dominante no judaísmo e apareciam como o rosto do adversário judaico com que os cristãos se confrontavam no quotidiano. Talvez mais do que expor a opinião de Jesus sobre os fariseus, está em causa a imagem que os cristãos da época tinham do judaísmo e dos seus líderes.

O trecho em apreço divide-se em duas partes. Na primeira, vem um retrato dos fariseus (vv. 1-7); na segunda (vv. 8-12), conselhos aos discípulos para que não se transformem em fariseus.

Os fariseus e os escribas sentam-se na cadeira de Moisés, ou seja, arrogam-se autoridade exclusiva para interpretar a Lei de Moisés. Porém, a acusação assenta melhor nos fariseus da época de Mateus, do que nos da de Jesus. Na época de Mateus – no judaísmo pós-destruição de Jerusalém –, os fariseus eram a corrente dominante e funcionavam como a autoridade exclusiva na interpretação e na aplicação da Lei, facto que não sucedia no tempo de Jesus.

Eles são acusados, aqui, de se terem apropriado da Palavra de Deus e de a terem desvirtuado com regras, normas, obrigações e interpretações legalistas e casuísticas que, em vez de favorecerem o encontro do homem com Deus, serviam para afastar os dois compartes da Aliança.

São incoerentes, pois “dizem e não fazem”. O seu comportamento não é coerente com as suas palavras e ensinamentos. É “a distância entre o dizer e o fazer”, que o Papa denuncia. Assim, os cristãos são convidados a escutar os seus ensinamentos – o que muitos cristãos de origem judaica faziam – mas a não imitar o seu exemplo.

Carregam os homens com fardos insuportáveis. De facto, as suas exigências tornavam impossível a vida dos crentes, tantas (impossíveis de conhecer e de cumprir) eram as obrigações e proibições que faziam derivar da Lei, que se criava nos crentes a consciência de impureza e de pecado que lhes oprimia as consciências e lhes matava a alegria. Era a autêntica escravatura da Lei.

Finalmente, gostam de fazer da fé e da piedade espetáculo e exibição. Fazem as coisas para que todos percebam a sua grandeza e superioridade, não se esquecendo nunca de publicitar a sua fé e piedade. Por vaidade, alargam as filactérias (caixinhas de couro contendo trechos da Torah, que os israelitas usam, a partir dos 13 anos, nas orações matinais) e as borlas (franjas das quatro extremidades do manto – tallît – que o judeu piedoso punha aos ombros durante a oração). O que lhes interessa é imagem, reconhecimento dos homens e títulos de honra. Querem os primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes, rezam e querem ser saudados nas praças, vangloriam-se da sua prática religiosa e orgulham-se da sua pureza, nem sempre efetiva. É o abstruso “primado do exterior sobre o interior”, que o Papa Francisco põe em evidência em muitos cristãos de hoje. Exibicionistas, opressores e hipócritas!

É importante que o farisaísmo não invada a Igreja de Jesus, quer da parte do laicado, quer da parte da hierarquia. E, se a invade, que seja denunciado e repelido. Não vale a pena entrar na guerra de título académicos ou parentais. Não há lugar a tratamento por pai, mestre ou doutor. Com efeito, um só é o nosso Pai, que está nos céus; um só é o nosso mestre; um só é o nosso doutor, Cristo.

A comunidade cristã é a pátria da fraternidade, não da sociedade classista: “Vós sois todos irmãos”. A Igreja não é constituída por superiores e súbditos, mestres e seguidores, pais e filhos, doutores e alunos, mas por irmãos iguais, que têm um Pai comum e que seguem o mesmo Cristo. Na Igreja não pode haver quem queira mandar nos outros, ou quem se considere a si próprio mais importante, mais digno, mais honrado, mais preparado do que os outros. Na Igreja não pode existir, à imagem da estrutura hierárquica judaica, um esquema complicado de graus, de acordo com a diferente dignidade dos membros da comunidade. Na Igreja, não fazem qualquer sentido os títulos de honra, os lugares reservados, a luta pelos primeiros lugares. Na comunidade de Jesus, só o amor e o serviço devem ter o primeiro lugar: “O maior de entre vós, será o vosso servo”. Os que têm o múnus da paternidade ou o mister do ensinamento, que amem, sirvam, guardem e cuidem, sob a égide de Cristo. Não vá acontecer que a sede de poder e a veleidade de se apresentarem como sábios os levem a porem-se no lugar de Jesus e a empurrá-Lo pela porta fora! 

A comunidade cristã deve anunciar profeticamente o Reino de Deus. Ora, nesse Reino disponibilizado aos homens por Deus e inaugurado por Jesus, só o Pai (Deus) e o Filho (Jesus) ocupam um lugar de honra. Os crentes, iguais em dignidade, são irmãos; entre si, devem amar-se e fazer-se servidores uns dos outros.

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Na primeira leitura (Ml 1,14b-2,2b.8-10), um mensageiro de Javé interpela os sacerdotes de Israel. Convocados por Deus para serem mensageiros do Senhor do universo, para ensinarem a Lei e guiarem o Povo para Deus, deixaram-se sufocar por interesses egoístas, negligenciaram os seus deveres, desvirtuaram a Lei. São, pois, os responsáveis pelo divórcio entre Israel e Deus. E Javé anuncia que não pode tolerar tal comportamento e que os vai desautorizar e desmascarar.

O termo “malaquias” não é nome próprio. Significa “o meu mensageiro”. É o título de um profeta anónimo, do qual pouco sabemos e que se apresenta como mensageiro de Javé. Atuando em Jerusalém, no período pós-exílico, é aguerrido defensor dos valores judaicos, fervoroso pregador de reformas, zeloso defensor do culto autêntico, favorável ao Templo, à pureza dos sacerdotes e dos levitas, defensor dos sacrifícios e contrário aos matrimónios mistos (entre judeus e não judeus). No seu tempo (entre 480 e 450 a.C.), o Templo estava reconstruído e o culto já funcionava, embora mal. Contudo, estava apagado o entusiasmo pela reconstrução.

Desanimado, via que as antigas promessas de Deus não se tinham cumprido e que o Povo, caído na apatia religiosa e na falta de confiança em Deus, duvidava do amor de Deus, da sua justiça, do seu interesse por Judá. Este ceticismo repercutia-se no culto e na ética: desleixava-se o culto e multiplicavam-se as falhas, a injustiça e a arbitrariedade. E o mensageiro de Deus reage contra a situação em que o Povo de Judá está a cair. Confronta cada um com as suas responsabilidades para com Javé e para com o próximo e exige a conversão do Povo e a reforma da vida cultual, na lógica deuteronomista. Se o Povo se obstinar em caminhos de infidelidade à Aliança, voltará a conhecer a morte e a infelicidade; mas, se se voltar para Javé e cumprir os mandamentos, voltará a gozar da vida e da felicidade que Deus oferece aos que seguem os seus caminhos.

O trecho veterotestamentário em referência integra a longa perícopa em que o profeta lamenta a falta de respeito e o desprezo da comunidade judaica pelo nome de Javé, situação de que os culpados são, sobretudo, os sacerdotes. Deviam potenciar a relação entre o Povo e Deus, mas, preocupados com os interesses pessoais e movidos pela sede de lucro, oferecem no altar alimentos impuros e sacrificam animais doentes, cegos ou coxos, fazendo com que os atos cultuais sejam a expressão, não do amor, mas da indiferença e do desrespeito do Povo por Javé. E, além de culpados da perversão do culto, são acusados de falsificarem, gravemente, a Palavra de Deus.

Malaquias tem consciência de que Javé fez “uma Aliança com Levi”, pela qual os sacerdotes receberam a missão de ensinar a Lei a Israel e de apresentar os sacrifícios no altar de Deus. E, constituídos “mensageiros do Senhor do Universo”, deviam rejeitar a iniquidade, conhecer a Lei e apresentá-la fielmente ao Povo, caminhar com Javé na paz e na retidão e afastar o Povo do mal.

Ora, ao invés, desviam-se do caminho da Lei e dos mandamentos e fazem o Povo vacilar, ensinando a Lei de forma deturpada. Em vez de orientarem o Povo na rota da Aliança, desviam-no para longe de Deus. Não consideram todos iguais e fazem aceção de pessoas. Dão tratamento desigual a ricos e a pobres, a poderosos e a humildes. Como não pode pactuar com tais atitudes e comportamentos, vai desautorizar e desqualificar estes sacerdotes indignos, tornando-os desprezíveis e abjetos aos olhos de todo o Povo. Todos verão que eles já não têm a confiança de Deus e que lhes foi retirada a autoridade de testemunhas de Deus.

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A segunda leitura (1Ts 2,7b-9.13) apresenta em contraste com a primeira, o exemplo de Paulo, Silvano e Timóteo – os evangelizadores da comunidade de Tessalónica. Do esforço missionário feito com amor, humildade, simplicidade e gratuitidade, nasceu uma comunidade viva e fervorosa, que acolheu o Evangelho como dom de Deus, que se comprometeu com ele e que o testemunha com verdade e coerência.

Nos três primeiros capítulos da carta, Paulo agradece a Deus a sua ação em prol da comunidade. A comunidade nasceu e consolidou-se de forma tão prodigiosa e em tão pouco tempo, o que só se justifica pela intervenção de Deus.

Após clássica oração de louvor a Deus Pai e ao Senhor Jesus Cristo, que tornaram possível em Tessalónica o milagre do Evangelho, Paulo evoca, em ação de graças, os inícios dessa jovem, mas entusiasta comunidade cristã. Começa por descrever o amor e o afeto de Paulo, Silvano e Timóteo pelos Tessalonicenses, recorrendo à imagem da mãe. Os missionários foram “como a mãe que acalenta os filhos que anda a criar” e manifestaram aos Tessalonicenses, em todos os momentos e situações, o seu amor, a sua ternura e o seu afeto. Feitos pequenos, humildes e simples, os evangelizadores nunca trataram ninguém com aspereza ou sobranceria; manifestaram a todos a sua afeição, amaram todos com um amor serviçal e desinteressado; puseram-se ao serviço da comunidade, aguentando os trabalhos e canseiras sem lamento nem queixume; e partilharam com a comunidade o Evangelho e a própria vida.

Paulo releva a gratuitidade da atuação dos missionários. Pregaram o Evangelho e trabalharam, noite e dia, para não serem pesados a ninguém. No referente a Paulo, este trabalho referir-se-á ao ofício de tecedor de tendas, que terá aprendido na meninice, com o pai. Esse ofício ajudá-lo-á a ganhar o sustento e torna-o identificado com todos os outros homens. O que interessa é que Paulo e os companheiros não pregaram o Evangelho por interesse pessoal, com vista à remuneração material, mas apenas no interesse do Evangelho e da salvação de todos os homens e mulheres.

O texto termina com a referência ao modo como os Tessalonicenses acolheram a Palavra: “não como Palavra humana, mas como é realmente, Palavra de Deus”, que permanece ativa no coração dos crentes e os transforma. A comunidade cristã é fruto da Palavra proclamada e da Palavra escutada, acolhida e vivida. Os Tessalonicenses tiveram, desde início, a perceção de que a Palavra que lhes foi anunciada era Palavra de Deus e não a palavra de Paulo ou de outro pregador. No processo de anúncio, de acolhimento e de transmissão do Evangelho, todos devemos ter a consciência de que o importante não é o instrumento humano que anuncia a Palavra, mas a proposta que Deus nos faz através desse instrumento.

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É esta humildade igualitária de base assumida por pregadores e por destinatários da pregação que lança e relança a autenticidade da seriedade, da verdade e da coerência do nosso compromisso pessoal e comunitário com Deus e com o seu Reino, na Igreja, mas com a referência essencial a Jesus Cristo. Que o Senhor nos guarde junto de Si, na sua paz, com vista a que o compromisso dos crentes seja a mola propulsora da vida em abundância para todos.

2023.11.05 – Louro de Carvalho

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