quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Decisão presidencial esperada merece aceitação e reparos

 

Foram ouvidos os partidos políticos com assento parlamentar, o que tanto podia ser com vista à exoneração do atual primeiro-ministro (PM), cujo pedido de demissão vai ser aceite pelo Presidente da República (PR), como para dar ao chefe de Estado respaldo para a nomeação de outro PM, no atual quadro parlamentar – ver Constituição da República Portuguesa (CRP), artigo 187.º, n.º 1.

Foi também ouvido o Conselho de Estado, para efeitos da alínea a) / 1.ª parte e da alínea e) / 2.ª parte do artigo 145.º da CRP, respetivamente, “pronunciar-se sobre a dissolução da Assembleia da República [AR]” e “aconselhar o Presidente da República no exercício das suas funções, quando este lho solicitar”.  

O PR decidiu, era espectável, dissolver a AR e, consequentemente, convocar eleições legislativas. Nesse aspeto, é consequente com o que vem dizendo publicamente, a partir de 30 de março de 2022. No entanto, é de esclarecer que a AR não está ainda dissolvida e a demissão do PM ainda não foi aceite em termos formais, pelo que o governo está na plenitude das suas funções. E a comunicação presidencial ao país, na noite de 9 de novembro, presta-se a equívocos.  

O PR verifica um facto inquestionável, mas cuja verificação é excrescente: “Pela primeira vez em democracia, um primeiro-ministro em funções ficou a saber, no âmbito de diligências relativas a investigação em curso, respeitante a terceiros, uns seus colaboradores, outros não, que ia ser objeto de processo autónomo, a correr sob a jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça [STJ].” Resta saber se este facto revela regular separação de poderes ou falta de lealdade institucional da parte do poder judiciário. Aliás, a 3 de novembro, o presidente do STJ teceu, publicamente duras críticas ao governo, pelo alastramento da corrupção na administração pública e por nada fazer para a travar, embora, na sua catilinárias, tentasse tirar do baralho a ministra da Justiça.

Diz o PR que, de imediato, o PM “apresentou a sua exoneração, invocando razões de dignidade indispensável à continuidade do mandato em curso”. Ora, António Costa apresentou o seu pedido de demissão, pela razão invocada. A exoneração compete ao PR, nos termos da alínea g) do artigo    

133.º da CRP, na data da nomeação e posse do novo PM (ver n.º 4 do artigo 186.º da CRP).

O chefe de Estado sublinhou – e bem – “a elevação” do gesto e da “comunicação” do PM aos Portugueses e testemunhou o seu “serviço à causa pública, durante décadas, em particular nos longos e exigentíssimos anos de saída do défice excessivo, saneamento da banca, pandemia e guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, na chefia do governo de Portugal”, como agradece, “a disponibilidade para assegurar as funções, até à substituição, nos termos constitucionais”.

Como é curial, espera que “o tempo, mais depressa do que devagar, permita esclarecer o sucedido, no respeito da presunção da inocência, da salvaguarda do bom nome, da afirmação da Justiça e do reforço do Estado de Direito Democrático”.

Porém, o teor do desenvolvimento da sua comunicação ao país merece reparos.

Diz o PR: “Chamado a decidir sobre o cenário criado pela demissão do governo, consequência da exoneração do primeiro-ministro, optei pela dissolução da Assembleia da República e a marcação de eleições em 10 de março de 2024.” Ora, como disse há pouco, nem o PR está exonerado, nem o governo demitido. Se isso fosse verdade, a discussão parlamentar do Orçamento do Estado teria de parar, pelo menos, na ótica de alguns constitucionalistas. E não seria útil um orçamento suspeito de inconstitucionalidade. Além disso, se a demissão do PM tivesse sido formalmente aceite e a dissolução da AR formalmente decretada, as eleições teriam de realizar-se a 7 de janeiro.      

O PR tomou a sua decisão, “depois de ouvir os partidos com assento parlamentar e o Conselho de Estado, como impunha a constituição”. Verificou: “Os primeiros, claramente favoráveis, o segundo com empate, e, portanto, não favorável à dissolução. Situação, aliás, que já ocorrera no passado com outros chefes de Estado.” E vincou tê-lo feito “por decisão própria no exercício de um poder conferido pela Constituição da República Portuguesa”, o que já sabíamos.

Depois, enumerou as razões, como se explicita, a seguir.

O voto nas eleições de 2022, personalizado no PM, com base na sua liderança, candidatura, campanha eleitoral e esmagadora vitória. Sendo este motivo válido, se um PM morresse ou ficasse incapacitado, teria de haver sempre eleições, pois todas as campanhas eleitorais têm líderes partidários e as listas de deputados são apresentadas pelos partidos políticos. A interrupção de mandato por esta razão não é compatível com a regularidade democrática.  

Disse-o a 30 de março de 2022, o que não quer dizer que a sua verdade seja justa.

Apontou a fraqueza da formação de novo governo com a mesma maioria, mas com qualquer outro PM, para tanto não legitimado política e pessoalmente pelo voto popular. Não se elegem primeiros-ministros, mas deputados apresentados pelos partidos. Que se diria se o líder de um partido que ganhou eleições, não conseguisse ser eleito no círculo eleitoral que o candidatou? Não podia ser PM? Teria de haver novas eleições? É óbvio que o PR não gosta desta maioria que rotulou de gasta e requentada.   

Aponta o risco, “já verificado no passado, de essa fraqueza redundar num mero adiamento da dissolução para pior momento”. O caso passado enfermou da falácia agora apontada pelo PR. Jorge Sampaio não gostava do novo PM, no discurso de posse, colocou o seu governo sob vigilância, em determinadas áreas, e os correligionários do PM apressaram a vontade de dissolução da AR. E isso criou um precedente: a dissolução da AR com uma maioria parlamentar.

Agora, Marcelo Rebelo de Sousa diz uma coisa que nem ao diabo lembrava: “Vivendo o governo até lá como um governo presidencial, isto é, suportado pelo Presidente da República e o Presidente da República como um inspirador partidário. Tudo enfraquecendo o papel presidencial, num período sensível em que ele deve ser, sobretudo, uma referência interna e externa.”

O papel presidencial enfraquece-se com os comentários impensados, a tempo e a destempo, não pelo apoio ou pela crítica ao governo.

O governo só é presidencial se o quiser ser e/ou se o PR desejar condicioná-lo. Aliás, foi o que Jorge Sampaio tentou fazer, pelos vistos, para ganhar tempo de o seu partido se preparar para eleições. Outro galo teria cantado, se Pedro Santa Lopes, após o discurso do PR de então, houvesse apresentado, de imediato, o seu pedido de demissão.   

O chefe de Estado diz que “a garantia da indispensável estabilidade económica e social, que é dada pela prévia votação do Orçamento do Estado para 2024, antes mesmo de ser formalizada a exoneração do atual primeiro-ministro, em inícios de dezembro”. O atual PM só é exonerado com a nomeação e posse de um novo PM que resulte das eleições. Não creio que o PR nomeie um PM interino para liderar o atual governo, quando estiver formalmente demissionário. Esse é que seria um governo de iniciativa presidencial, que não está, claramente previsto nem afastado na CRP.    

“A aprovação do Orçamento permitirá ir ao encontro das expetativas de muitos Portugueses e acompanhar a execução do PRR, que não para, nem pode parar, com a passagem de governo a governo de gestão ou, mais tarde, com a dissolução da Assembleia da República”, sublinha o PR.

Com tal confusão comunicativa, como é que sustenta esta tese, que divide os constitucionalistas? Era melhor ter deixado para o dia seguinte a comunicação ao país e ter apurado o texto.

As eleições contribuirão “para maior clareza” e para “mais vigoroso rumo”, para superar um vazio inesperado, que surpreendeu e perturbou tantos Portugueses, afeiçoados, que se encontravam, aos oito anos de liderança governativa ininterrupta”. Nisto, estaremos de acordo, mas não era preciso invocar as outras razões, nos termos em que tal invocação foi feita.

“É essa a força da democracia. Não ter medo do Povo.” Totalmente de acordo.

Era possível nomear novo primeiro-ministro na atual configuração parlamentar. O PR não aceitou essa hipótese que o PM lhe apresentou. Preferiu a dissolução. E está no seu direito, nos termos constitucionais. Bastaria que observasse os trâmites que ela impõe.

Tentou encurtar o mais possível o tempo da decisão. E, “se não foi possível torná-lo mais breve, isso tem a ver com o processo de substituição na liderança no partido do governo, como aconteceu no passado”. O Partido Socialista (PS) que agradeça, já que o único a merecer a confiança do PR parece que é o ainda secretário-geral. Não creio que Jorge Sampaio tenha equacionado a preocupação de o partido de Santana Lopes se refazer e se preparar para as eleições.

Porém, agora, do que se trata é de, olhando em frente, “escolher os representantes do Povo e o governo que resultará das eleições”, que seja “um governo que procure assegurar a estabilidade e o progresso económico, social e cultural, em liberdade, pluralismo e democracia”. Certíssimo!

Assim, a 10 de março de um ano bissexto, lá iremos votar em consciência, sem ligar muito aos ditames presidenciais. Atenção: Escolhamos um partido, não um líder, porque, à primeira oportunidade, podemos ter eleições!

2023.11.09 – Louro de Carvalho

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